A mágica da meme.

Era meu plano na sexta passada, mas um Lula passou no caminho. Já faz algum tempo que a já maluca eleição presidencial americana ganhou mais uma personagem inusitada, um sapo. Não qualquer sapo, e sim o Pepe, o cartum de um sapo antropomórfico que ganhou milhares de reinterpretações como meme na internet. Todo mundo deve ter visto alguma vez, não sei em qual contexto você teve contato, mas sei como a campanha da Hillary está tratando: como um símbolo da nova direita americana, aliado de Trump e avatar de conceitos como racismo, xenofobia e misoginia. Sim, uma meme tornou-se relevante no cenário político da democracia mais poderosa do mundo.

O texto de hoje é quase um “Não disse?”, baseado em textos anteriores sobre minhas previsões da cultura das memes invadindo o mundo real, e principalmente sobre como o caráter de adaptação delas a qualquer contexto geraria uma série de confusões na cabeça das pessoas que não foram criadas com elas. E foi justamente o que aconteceu nos EUA. Há algum tempo atrás, a página oficial da campanha de Hillary Cliton à presidência soltou um artigo alertando seus simpatizantes sobre Pepe, o sapo.

Sobre como ele não era um inocente desenho da internet, e sim uma representação dos novos conservadores americanos, o movimento chamando de “alt-right”. Direita alternativa, numa tradução semi literal. A tal da direita alternativa é formada principalmente por jovens, desconjuntados e que mal concordam entre si. Sim, existem porta-vozes, grande parte na própria internet. Até falei algum tempo atrás sobre Milo Yannopoulos, um homossexual assumido que ficou relativamente famoso batendo na cultura do politicamente correto e defendendo os direitos dos homens. E como Milo, existem diversos outros que angariam simpatizantes e espalham a palavra da direita alternativa pelo mundo, sempre com uma pegada mais arrogante e irônica sobre os problemas da sociedade moderna.

Pois bem, identificando esse movimento e suas reações cada vez mais poderosas numa plataforma tão relevante quando a internet, os democratas sentiram a necessidade de jogar uma luz sobre o movimento e trata-lo como algo organizado para ajudar a eleição de Donald Trump. O que é uma meia verdade: faz muito tempo que eu acompanho alguns dos pontos de efervescência dessa cultura reacionária de internet, e organização passa longe de ser uma qualidade desse povo. A direita alternativa tem a mesma característica de descentralização de poder e caos interno que a maioria dos fóruns online onde seus simpatizantes congregam.

Até porque, se pararmos pra pensar, a ideia de que o chororô das minorias e politicamente correto estão fora de controle nos dias atuais está cada vez mais forte. Não precisava ter o nome de direita alternativa, porque esse tipo de reação (im)popular não é necessariamente reflexo de uma visão política e até mesmo moral muito específica. São pessoas de saco cheio dos excessos de um grupo tendendo a se amotinar no canto oposto. Pela lógica da campanha de Hillary, em muitos momentos o Desfavor mesmo seria considerado direita alternativa. Criticamos aqui muitas coisas que os supostos defensores do Trump criticam, e olha que tanto a Sally quanto eu concordamos que queremos ver o Trump ser eleito pra dar merda mesmo. Para que os imbecis de lá paguem o preço amargo de votar com a bunda e eleger um maluco para o cargo de maior poder do mundo. A verdade é que Trump virou a bandeira oposta à de Hillary e a cultura do vitimismo que é obrigada a defender para se manter relevante com os eleitores. Dá pra ser mais esperto que isso e ver que o candidato republicano não vale a dor de cabeça que promete dar só pra não pactuar com o politicamente correto, mas também dá pra entender como ele ganhou o suporte desse grupo todo.

Mas eu falava sobre a relatividade de entender a direita alternativa como um grupo real: o simples fato de que uma meme conseguiu o status de símbolo deles já deveria indicar como tem algo estranho nessa história. E aqui é necessário entender a diferença do que é simbologia para gerações pré e pós internet. Antes da cultura das memes, símbolos agiam como bandeiras: significando mais ou menos a mesma coisa por séculos. Os símbolos eram feitos para durar, até mesmo empresas usavam essa lógica, demorando décadas e décadas para mexer nos seus logos.

Hoje em dia, o conceito de símbolo diluiu-se no contexto. A meme tem o significado do momento que é vista, tem graça de acordo com sua adaptação ao que é recente e inusitado. É o conceito de remix que permeia a comunicação da era da internet. Eu já cheguei no ponto de ter uma visão completa sobre a evolução dessa forma de comunicação, por ter visto as coisas desde o começo. Por exemplo, o sapo supostamente nazista que assusta os democratas nasceu de uma tira de quadrinhos de humor meio nonsense que começou a ser postada em fóruns vários e vários anos atrás. A imagem do rosto do sapo começou como uma história onde ele é visto por um amigo urinando com as calças caídas até os pés. Quando perguntado pelo amigo no quadrinho seguinte o porquê de fazer isso, ele responde que a sensação é boa. O rosto recortado dessa personagem com a frase “Feels good, man.” foi a primeira iteração da meme. E por muito tempo foi usada nesse sentido.

Mas, sabemos como é a internet. Não demorou até alguém mexer na imagem e fazê-lo parecer triste. Aí, Pepe (o nome original da personagem dos quadrinhos) virou símbolo de depressão. Depois, alguém mexeu um pouco na expressão do desenho, fazendo ele parecer irônico. Pepe tornou-se símbolo de deboche. Mais tarde, foi transformado no símbolo de ser porco e desleixado e não ligar pra isso. Um grupo de internautas que vestiam essa carapuça começaram a usar Pepe como seu mascote, criando uma certa personalidade autista pra personagem, trabalhando com o humor auto-depreciativo comum nessas pessoas.

A meme começou a ficar famosa entre as pessoas normais, afinal, com tantas possibilidades, qualquer um conseguiria se identificar. Feliz, triste, irônico, preguiçoso… nesse ponto, os “autistas” que o adotaram começaram a ficar atacados e quiseram ligar Pepe a comportamentos realmente perturbadores, que eu nem faço questão de entrar em detalhes. Disso pra Pepe começar a aparecer com símbolos nazistas foi um pulo. Percebam essa sutileza: a caminhada da meme para imagens cada vez mais horríveis veio de um “ciúme virtual” dos desajustados que o adotaram como seu mascote. E aí, a coisa estava feita: Pepe tinha milhões de encarnações, das mais inocentes às mais horríveis depravações. Dentre elas, realmente coisas como racismo, xenofobia e misoginia.

E aí entra a parte que eu acho realmente linda: a internet trollando a campanha eleitoral americana. Pepe começa a ser usado cada vez mais ligado à imagem de Trump, o que provavelmente foi mais um tiro pela culatra de quem queria queimar o candidato republicado. Mas, Pepe tem carisma. Foi adotado de novo. Trump, sem a menor noção do que estava acontecendo, retuíta um vídeo de um anônimo cujo thumbail era a montagem do corpo de Trump com o rosto de Pepe. A internet, vulgo a direita alternativa (estão percebendo como ela “não existe”?), pira. E daí pra frente, com a chancela de uma pessoa famosa e midiática, não para mais de remixar Pepe e Trump.

Democratas e republicanos não entendendo nada e vendo significados profundos ali, mas as memes estavam engraçadas demais para quem as fazia e divulgava para se preocuparem com o efeito colateral. E aí eu digo até com certa confiança: eu conheço o tipinho da suposta direita alternativa que fica perdida na internet falando besteira e reclamando dos outros, eu estou muito próximo disso. A dica mais valiosa é: não acreditem no que eles dizem, porque a piada e a confusão são muito mais saborosas do que o convencimento dos outros sobre seus pontos de vista.

E há um grau de insanidade espetacular aí: percebendo que cada vez mais pessoas estavam dando atenção para a história, algum troll brilhante compila as piadas internas dos fóruns numa grande história sobre Pepe ser o avatar de um deus egípcio. E essa história começa a dar nó na cabeça de muitos incautos. As pessoas acreditam em tudo o que leem na internet, não acabamos de falar disso sábado passado? O que eu estou vendo acontecer agora é a cultura das memes entrar totalmente no mainstream SEM nenhum anticorpo do conhecimento das trollagens. Porque ainda mais nesses dias de gente extremamente sensível dando chilique na internet, todo mundo acha que o troll é só quem te xinga. Há quantos anos estamos dizendo pra você aqui no desfavor que a coisa é muito mais complexa do que isso?

Trollagem de alto nível é muito pior do que isso, é fazer a campanha de uma candidata ao governo do país mais poderoso do mundo gastar saliva para se defender de um desenho de um sapo! E gerar animosidade entre pessoas criando uma ilusão de seriedade e importância complemente desmedidas sobre o que realmente está acontecendo na internet. A direita alternativa até pode existir em figuras públicas e na mídia mais tradicional, mas no caos de onde saem as memes, nada existe além do prazer de ver o circo pegando fogo.

Recentemente alguém berrou “Pepe” no meio de um discurso da Hillary! O filho do Trump retuitou a imagem do pai com o sapo sentindo orgulho da associação. Não exatamente pela meme, mas por Hillary ter feito a besteira de dizer em público que metade dos que vão votar em Trump são deploráveis (e são, mas burrice dizer!). Ela mesma deu munição para a meme se enfiar na campanha oposta e virar o orgulho de ser rejeitado pelos “radicais politicamente corretos” do outro lado. E evidente que cada vez que alguém com visibilidade alimentar o troll, ele só vai ficar mais e mais forte.

E, se você souber o que está realmente acontecendo por trás de tudo isso, pode pelo menos rir, como eu ri, de ver uma senhora que pretende ser presidente dos EUA reclamando do desenho de um sapo, e de um maluco como o Trump aceitando de bom grado o apoio de uma meme para passar na frente nas pesquisas. Só digo uma coisa: Pepe é carismático. Pepe é muito carismático. Não duvidem do poder dele de ganhar pontos para o Trump.

É ruim, mas é hilário. Alguns sapos só querem ver o mundo pegar fogo…

Para dizer que americano é tudo retardado, para dizer que é direita alternativa (tem bastante nazista no meio, fica a dica…), ou mesmo para dizer que tem um Pepe raro pra me vender: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • Hã, podia ficar sem chamar a personalidade do Pepe de autista. Eu sou autista e não gosto dessas associações da minha condição com coisas que não têm a ver com autismo.

  • Olha, por mais que eu sempre espere ver temas inusitados e pontos de vista impopulares no Desfavor, tenho que dizer que eu jamais poderia esperar que o Somir abordasse uma meme como o Pepe de maneira tão detalhada.

    Se não me engano, um pouco antes do Pepe emergir na campanha presidencial americana, uma organização judaica já estava tentando traçar a origem e o significado do sapo, confusos porque encontraram tanto imagens do Pepe como um nazista maltratando judeus, como imagens do Pepe como um judeu tirando vantagem de outros.

  • Simplesmente inacreditável como essas coisas começam e a dimensão que acabam tomando em pouco tempo. E vocês já imaginaram como seria se logo mais algo semelhante também acontecesse por aqui?

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