Depoimentos.

Matias Francisco Neves, 23 – Segurança

Juro que eu não sei de nada… faz mais de três anos que eu trabalho lá e ninguém me dizia porra nenhuma, cara. Dá… dá pra baixar a luz? Meu olho ainda tá mal… o brilho. Isso, melhor… eu… eu só batia os documentos, via se podia entrar. Carro, caminhão… até no meu turno sempre tinha bastante movimento. Pra você ter uma ideia, eu nunca passei da linha azul. Eu tava tentando ir pro time interno. Vou te falar a mesma coisa que falei pro pessoal que chegou lá logo depois… antes de explodir, ficou tudo quieto. Mas quieto mesmo, de escutar o César respirando do outro lado da guarita. Ficou assim uns segundos, e aí… bum! Cara, não tá dando a luz não, cabeça doendo ainda. Posso voltar amanhã?

César da Silva, 32 – Segurança

Fazia nem uma semana que eu tava lá. Fiquei mal… eu não cresci num lugar mole não… era quebrada mesmo. Devia ter uns dez quando vi meu primeiro defunto. Destruído, cabeça aberta, sangue pra caralho… eu não sou de ficar assim, mano. Não sou não. Não foi aqueles pedaços de gente não, se fosse isso eu encarava, não sou fresco, juro. Porra, foi antes daquilo acontecer… foi uma sensação que ia dar merda. O ar parou, eu senti um frio… eu comecei a respirar rápido, sei lá. Passou um segundo e eu só vi o clarão, barulheira, eu me joguei no chão. Eu já tava mal antes de explodir, entende? Começou antes. Desculpa, eu não consigo segurar, vem essa vontade de chorar… tem coisa errada, mano. Tem sim. Tinha alguma coisa na guarita comigo. Juro.

Joana Nogueira, 41 – Recepcionista

Só me promete que eu vou falar com o Paulo e os meus filhos depois? Eles sabem que eu escapei? Eu só quero ver os meus filhos e dizer que eu estou bem… morreu todo mundo? Morreu todo mundo, né? Eu vi tanto sangue quando me tiraram dali… eu estou… eu estou com alguma coisa? Eles estavam usando aquela roupa de contaminação… foi radiação? Era com isso que mexiam lá embaixo? Eu estou com câncer? Me diz! Eu vou fazer mal pros meus filhos se chegar perto deles? Me diz alguma coisa!

Tá bom, tá bom… eu lembro que eu precisei fazer madrugada, porque ia vir gente que precisava de cadastro e só eu tinha liberação pra linha amarela na escala. Eu liguei pro Paulo, disse que ia demorar… era umas oito da noite… ele sabe que só me avisam na hora quando tem que ficar mais, então disse que tudo bem, que ia fazer o jantar pros meninos. O pessoal novo chegou bem depois, já era começo da madrugada. Tinham uns dez, pareciam todos estrangeiros, eu não sabia a língua, parecia russo, não sei… eu fiz o cadastro, dei a liberação. Tinha um que não… um mais velho. Esse veio uma moça do setor laranja pra receber. Eles entraram, eu fiquei esperando me liberarem pra ir pra casa. Demorou mais ou menos uma hora, tudo bem quieto, acho que só vi a moça do laranja passando na sala nesse tempo todo. E aí eu escutei o barulho. Começou a desabar tudo, eu não sei como aconteceu… eu só acordei com o pessoal me tirando debaixo dos escombros. Posso ir agora? Oi? Oi!

Marcos Roberto de Almeida, 37 – Auxiliar de laboratório

A Carol morreu? Não… eu devia ter avisado ela, eu senti que estava errado. Foda-se, a gente estava junto sim… faz pouco tempo. Eu sei que eu tinha que ter avisado, mas era… a gente tinha só começado, podia não ser nada, sabe? Eu sei, eu sei… é um risco, mas no laranja a gente fica transtornado, não pode falar com quase ninguém. Quando desce pra lá, ninguém olha pra sua cara. Tudo muito escuro, quieto. Vocês acham que eu sou burro? Que não sei o que acontece com quem mexe onde não deve? Se eu tivesse dito pra Carol que as coisas estavam estranhas lá, sei lá, ela podia ter ficado mais pra cima, o pessoal de cima escapou, né? Se ela estivesse comigo na hora, estaria viva.

O que eu sei é que quando chegaram os cientistas, até a gente do laranja teve que ir pra área de contenção. Veio gente do vermelho receber. Sabe quando você vê gente do vermelho por lá? Nunca. Eu? Eu ajudo nas análises, a gente tinha… peraí, qual o código de segurança de vocês? Ok… palavra chave do dia? Entendi… então… eu já tinha me tocado que o pessoal de baixo tinha conseguido abrir a caixa. O material dos primeiros anos era sempre uma raspa daquele metal ou aquele líquido gelado. Sim, todo mundo sabia da caixa no laranja. Eu vi ela umas duas vezes.

Ninguém falava o que era ou de onde veio, mas toda aquela estrutura só pra lidar com aquilo? Só podia ser coisa grande. A Carol brincava que ou vinha do inferno, ou do espaço. Faz uma semana começou a vir outra coisa pra analisar, ficava isolado de tudo numa cabine reforçada, sempre com uns dez seguranças armados ao redor. Era orgânico, certeza. Primeiro uma geleia, que por falta de explicação melhor, parecia ter estado viva em algum ponto. Tinha células, tinha até DNA! Mas era todo quebrado. Cada dia vinha outra amostra, e cada vez mais sólida, cada vez com o código mais limpo.

Antes de explodir? Eu fiquei preso na descontaminação, acho que foi por isso que escapei. Tinha acabado de analisar uma amostra das mais inteiras em DNA até agora. Subi os resultados, assinei a papelada e estava indo embora… a Carol ia ficar mais. Tinha que pajear um gringo, ela estava tão ocupada que mal prestou atenção em mim na última vez que nos falamos, passou reto como se fosse um daqueles esnobes do vermelho, se eu tivesse segurado ela… podia ter dito pra tomar cuidado. Gente, eu estou enjoado… de novo. Fiquei muito tempo preso naquela sala…

Kuzma Azarov, 52 – Biólogo

*traduzido do russo*

Eu repito, temos que eliminar todas as testemunhas, inclusive eu. Vocês estão conduzindo isso de forma errada. O que aconteceu deve ser desfeito o mais rápido possível. Todos os sobreviventes estão em quarentena? Ótimo. Eu gostaria de ser eliminado após tomar um forte sedativo. Ok, se vocês precisam saber…

O objeto foi encontrado num leito ressecado de um rio desviado para a construção de uma usina hidrelétrica na Amazônia. Sabe-se lá quantos anos esteve por lá, é até um milagre que não tenha caído num oceano. Através de um caminho que não é relevante para esta conversa, acabou nas mãos das pessoas para as quais eu trabalho. Não, vocês não tem liberação para essa informação. O governo local aceitou compartilhar o objeto em troca da construção do laboratório e a mão de obra ser local.

Sim, soubemos logo que não era um pedaço de satélite nosso, ou dos americanos. A caixa tinha inscrições que não batiam com nenhuma língua conhecida. Metálica, e sempre muito gelada. Foram anos analisando o material e tentando fazer senso do que havia lá dentro. Parecia haver um líquido extremamente gelado protegendo algumas cápsulas dentro da caixa. O líquido não esquentava, a não ser que fosse muito diluído em água. E mesmo assim, demorava semanas para mudar um grau que fosse.

Seja como for, descobrimos que o que havia dentro das cápsulas era orgânico. Foram anos pesquisando até entender que não eram substâncias aleatórias, e sim blocos de construção de algo maior. Conseguimos montar o que parecia uma forma de vida muito primitiva, mas percebemos que ela era extremamente sensível à luz. Com a fórmula, fomos reproduzindo aquele DNA cada vez com mais precisão, a cada iteração, a luz sendo menos mortal.

Ontem? Ontem o DNA estava completo e estável, pela primeira vez. Fomos chamados às pressas, o laboratório entrou em quarentena completa até nós analisarmos. Eu acompanhava à distância até então. Estava empolgado pra ver com meus próprios olhos. Uma jovem local me acompanhou até a entrada do último nível, o que vocês chamam de vermelho… foi aí que eu me senti mal e tudo ficou escuro. Vocês sabem o que acontece depois. Melhor do que eu, até. Eu só acordei com tudo destruído ao meu redor.

Não era pra eu ter sobrevivido. Vocês estão me entendendo? Estava debaixo de toneladas de concreto e aço, passei seis dias lá, sem memória nenhuma. Eu não deveria estar vivo! Vocês viram! A explosão não deveria ter deixado ninguém vivo! É justamente pra isso que o sistema explode o local todo nesses casos! Era pra todo mundo morrer! Essa era a válvula de escape do sistema todo… nossa proteção contra algo perigoso.

Vocês deixaram algum sobrevivente ir embora? Vocês deixaram? Como assim não era importante? Reclamando da luz?

Para dizer que achou chato eu explicar tanto, para dizer que eu tenho que rever meu conceito de explicar, ou mesmo para dizer que só podia dar merda fazendo no Brasil: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas:

Comments (4)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: