A discussão sobre o doping no esporte de alto rendimento está no seu ponto mais alto, historicamente. Muito se questiona quem está usando, mas dessa vez Somir propõe algo diferente, que Sally discorda veementemente. Os impopulares correm suas opiniões.

Tema de hoje: deve-se liberar o doping no esporte competitivo?

SOMIR

Sim. Vamos destruir todos esses recordes e deixar o esporte ainda mais divertido de ver. O conceito de substâncias proibidas e vantagens injustas decorridas delas cria uma linha arbitrária e incoerente nos limites da capacidade humana. Não nego os efeitos nocivos à saúde dos atletas, mas esporte de alto rendimento é basicamente isso: destruir o corpo em busca de resultados melhores. Eu só proponho parar de gastar energia nos lugares errados e assumirmos logo que o ser humano tem que ser mestre da própria evolução.

Mas vamos por etapas. A primeira coisa é diferenciar esporte como saúde e esporte como desempenho. Atletas profissionais que disputam títulos e medalhas detonam o próprio corpo no decorrer da carreira; o corpo humano foi feito para ficar em movimento, mas não para correr cem metros em menos de dez segundos, constantemente. Ter resultados dignos de nota significa lidar com muitas dores e lesões, na maioria dos esportes. Mesmo que cidadão faça isso todo dia, para o corpo uma coisa não muda: está usando recursos e sistemas internos feitos para correr de predadores e defender a própria integridade física. Momentos de enorme estresse.

O programa que vem instalado no corpo humano nos diz para acumular e economizar energia sempre que possível. Foi criado em tempos onde ficar em casa enchendo a cara de comida nem era uma possibilidade… pra nossa genética, a atividade física é algo garantido e a “vitória” é estar de barriga cheia e acumulando gordura. A vida moderna não combina mais com isso, na verdade, ela é exatamente o contrário. Portanto, saúde é fazer um esporte de forma constante sem abusar muito dos limites do corpo, porque é pra isso que ele foi feito. Quando você começa a disputar medalhas com o resto da humanidade, o corpo entra numa zona de “puta que pariu, deve ter um leão por perto!”, e manda pro espaço a preocupação com o longo prazo: deixa você se estourar todo se for o necessário para conseguir o resultado.

Tanto que nesse nível de competição, atletas tem todo um estafe de profissionais e um coquetel de substâncias legalizadas para combater os danos que fazem ao próprio corpo, e claro, diminuir as limitações que ele impõe. O que eu proponho é profissionalizar de vez o mercado de substâncias que são proibidas atualmente. A própria Sally já disse em textos sobre o assunto que anabolizantes são muito menos nocivos se aplicados por profissionais sérios, com acompanhamento constante. É aquela velha história da diferença entre veneno e remédio: a dose.

É basicamente o mesmo problema da repressão às drogas recreativas: gasta-se tantos recursos e energia para proibir algo que as pessoas vão usar de qualquer jeito que o cobertor fica curto do lado de reabilitar os viciados e reduzir o consumo. É energia gasta onde ela não faz diferença. As pessoas vão usar. VÃO usar. Vejam a lista dos últimos dez recordes dos 100m rasos: o único que nunca foi pego com substâncias proibidas foi o Usain Bolt. E é praticamente impossível que o jamaicano não tenha usado também, mesmo as aberrações genéticas precisam de um empurrãozinho para chegar nesse nível absurdo de resultados. E não sou eu que digo: muitos atletas depois que aposentam falam a mesma coisa, que praticamente todo mundo usa.

Proibições desse tipo só valorizam quem tem mais capacidade de esconder o uso, não quem fez tudo sem as proibidas. Essas pessoas ficam nas últimas colocações ou nem entram no esporte de alto rendimento. Esporte sem doping é um conceito utópico, até porque existe uma linha meio borrada entre o que é uma vantagem injusta na preparação. Se todas as substâncias proibidas desaparecessem por mágica da noite pro dia, sabe quem estaria nos primeiros lugares? Quem teve mais dinheiro e estrutura para se preparar. Não adianta só ter força de vontade. Se você nasce num país como os EUA, não tem uma vantagem injusta contra quem nasceu no Brasil, por assim dizer?

Eu defendo então parar de tentar enxugar gelo e concentrarmo-nos em reduzir os efeitos nocivos dessas substâncias e encontrar níveis e processos mais seguros para sua utilização. Pune quem deixar o atleta com falência renal, por exemplo. Pune quem empurra as drogas de forma inconsequente, e não quem acabou enfiado nesse modo de vida e precisa do doping para concorrer de uma forma minimamente digna (e lucrativa, porque é o trabalho dessas pessoas) entre seus pares. O sistema atual não funciona. Bate no usuário e deixa o traficante solto. Com tudo liberado, o laboratório que produzir a substância menos nociva com melhores resultados vai vender mais. Clandestinidade anda de mãos dadas com irresponsabilidade.

E claro, eu quero ver recordes. Quero ver cidadão fechando os 100m rasos abaixo de nove segundos, quero ver jogador de futebol chutando bola do meio do campo no gol, quero ver jogador de basquete dando mortal antes de enterrar a bola… esporte de alto rendimento anda de mãos dadas com entretenimento. E os melhores sabem disso. Eu acredito de verdade que para o ser humano, a evolução natural já deu o que tinha que dar. Estamos muito rápidos pra esperar por ela. Está na hora de assumir isso e começar a substituir o natural pelo artificial.

Porque isso muda o mundo, pra todo mundo. O uso liberado do doping vai escorrendo para a população normal, usando os conhecimentos adquiridos ali para melhorar nossas vidas. Se uma droga aumenta nossa capacidade de fazer o que queremos, que se estude-a o suficiente para liberar para todo mundo. A medicina faz isso para combater doenças, porque não para melhorar nossas habilidades? E outra, já estou adiantando essa: quando tivermos implantes biônicos e chips para aumento de performance, vou ser igualmente favorável à liberação total deles nas olimpíadas.

Se a humanidade for esperta mesmo, vai se tornar totalmente artificial assim que possível. A linha entre o orgânico e o artificial é metafísica, masturbação mental de quem quer se sentir importante por algo que não escolheu ser. Temos não só o direito como o dever de tomar a evolução nas mãos e fazer o máximo possível para melhorar nossas capacidades. E sem a coragem de liberar o estudo e o avanço em áreas como a do doping, vamos continuar nessa ilusão de “máquina perfeita” do corpo humano e ignorar o que pode ser melhorado. Não odeio o ser humano, só não acho que estamos presos no que o DNA definiu. Podemos mais, por que não fazer?

As pessoas vão abusar e comprometer sua saúde de qualquer jeito, então que isso seja divertido e útil no longo prazo.

Para dizer que eu não respeito a criação divina, para dizer que esse idealismo que é uma droga, ou mesmo para dizer que quem cresce natural é planta: somir@desfavor.com

SALLY

Devem ser liberadas substâncias proibidas, como anabolizantes, nas competições olímpicas?

Não. Vocês estão malucos? Tem ideia do que aconteceria?

Vocês acham que todos os atletas que estão ali, estão por escolha? Tem gente que não teve escolha não. Foi enfiado nesse mundo pelos pais, muitas vezes desde a infância, quando não tinham voz ativa para opinar. Tem gente que entra no mundo das competições esportivas para ter o que comer, fugir de guerra ou até de uma família abusiva. Escroto expor essas pessoas em condição de vulnerabilidade a abuso de substâncias nocivas ao organismo para seu deleite pessoal.

Um atleta não se forma de um ano para o outro. Ele começa a ser moldado ainda na infância. Imaginem o que aconteceria se, para ser bem sucedido, fosse necessário usar substâncias proibidas e nocivas à saúde? Porque, não se enganem, se for permitido, só vai ganhar quem usar. Na verdade, hoje só ganha quem usa, mas ter que usar escondido coloca uma certa trava na intensidade do doping.

Deixaria de ser uma competição esportiva e passaria a ser uma competição química, onde atletas seriam grandes cobaias de drogas novas cada vez mais potentes para melhorar seu rendimento. Trataríamos o ser humano de forma similar ao que tratávamos séculos atrás, em shows de horrores. Exporíamos aberrações para agradar uma plateia mórbida, explorando suas super habilidades artificialmente conseguidas. A ideia me parece tenebrosa.

Além disso, toda a proposta, toda a essência dos jogos olímpicos se perderia de vez. Não sou inocente de achar que hoje o importante é competir, mas ainda há um resquício do espírito que deu início aos jogos. A ideia de superação, de hardwork e de disciplina vai toda por água abaixo quando a base do resultado é o doping. Deixa de ser um evento esportivo e passa a ser uma arena para mero entretenimento da plateia. Deixam de ser atletas e passam a ser animais de exposição provando quem é o mais forte ou o mais rápido. Deixa de ter mérito, vence aquele cujo organismo consegue suportar sem morrer uma dose maior de química.

Além disso, que exemplo seria transmitido para gerações que estão com a cabeça em formação? No Brasil, pior ainda, pois até adultos são massivamente influenciados por aquilo que é visto na TV e na internet. Mas mesmo em países desenvolvidos, crianças e adolescentes tendem a olhar com bons olhos qualquer um que é glorificado com uma medalha no alto de um pódio. Olha a aspiração que se estaria criando: querer abusar de substâncias artificiais que fazem mal à saúde para ser um vencedor.

Passaria uma imagem de que para ser o melhor, o determinante não é esforço ou disciplina e sim um atalho químico. Acho perigoso e contraproducente. Até para uso em frangos e vacas há limites nos anabolizantes, não faz sentido institucionalizar em uma competição mundial o abuso de esteroides pelo ser humano. Na verdade, nem seria uma competição, seria um mero entretenimento onde o foco principal é a diversão da plateia e não a superação do atleta.

Caso vocês ainda não tenham percebido, qualquer norma futura deve ser no sentido de coibir abusos por parte do ser humano. Não se dá liberdade ao ser humano, ainda mais em escala mundial, de fazer algo que vá causar o mal a outros seres humanos. Dá merda. Basta olhar para a história para saber que dá merda. Já posso ver governos autoritários treinando presos ou crianças para levarem glória olímpica a seu país com base em todo tipo de substância perigosa.

E, quanto mais desenvolvido o país, mais limites ele teria para abusar do doping e da saúde de seus atletas, por suas leis. Assim, os países vencedores seriam justamente aqueles que não zelam pelos direitos humanos e injetam até urânio nas veias de seus atletas. São esses países e essa política de desrespeito aos direitos humanos que queremos prestigiar? Kim Jong-un enviaria atletas tão radioativos que brilhariam no escuro. Revoltante premiar a nação que mais caga para saúde e bem estar do seu cidadão.

E, acreditem, se em um primeiro momento parece divertido ver recordes sendo quebrados, seria deprimente a longo prazo. Ver aberrações humanas sofrendo todos os efeitos colaterais do abuso de substâncias, até mesmo morrendo durante as competições, não divertiriam qualquer pessoa que não fosse morta por dentro, como a Madame aqui de cima. Eu não topo que se cause mal a seres humanos para que eu possa ver feitos notáveis e me divertir. Você topa?

Esse absurdo proposto pelo Somir vai de encontro a décadas de luta por um tratamento digno a todos os seres humanos. É de um retrocesso ético sem precedentes, remete às experiências realizadas com nazistas pelos seres humanos. Repito: não se dá poder ao ser humano para fazer mal institucionalmente a outros seres humanos. Não acaba bem.

Quer ver pessoas fazendo coisas além do limite humano? Vai assistir a um filme dos X-Men, em vez de jogar pelo ralo anos de regulamentos, leis e normas que protegem e zelam pelo bem estar das pessoas. Não se abre essa porta. Não se glorifica nem se recompensa o abuso químico, muito menos quando ele custa a saúde e o bem estar dos envolvidos. É muita falta de empatia gostar de um evento que presume morte, abuso e destrói a saúde dos protagonistas desde a infância.

Não concordo e ainda digo mais: acho que as normas atuais que regulam o doping merecem uma boa revisão, pois quem compete sabe que ele existe em larga escala. Pelo fair play, pela preservação da saúde e dignidade dos envolvidos e por uma vida mais ética, liberar o doping jamais!

Para dizer que eu posso saber muito sobre ética mas sei pouco sobre diversão, para dizer que em tese concorda comigo mas na prática com o Somir ou ainda para acreditar inocentemente que seria escolha dos atletas: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Arbitrário e incoerente é obrigar um atleta a se dopar, porque ele vai ter de se dopar, caso contrário pode pensar em outra profissão! É a mesma coisa que obrigar um não-fumante a fumar ou uma pessoa que não gosta de sexo anal, a dar o cu. Sem falar no impacto desse tipo de mensagem para a sociedade em geral em outros quesitos!
    Imagina que divertido seria assistir quebras de recorde e ataques cardíacos ao vivo! Massa demais, hein? Fala sério!
    Por mais que, se administrado por profissional, há menos riscos, quem não tem dinheiro para bancar profissional vai tomar por conta própria, e sabemos que cada organismo é um e as pessoas às vezes querem resultados instantâneos.
    Além de tudo, abre grande brecha para o mercado negro de venda de órgãos, já que atletas ferrados por anabolizantes vez ou outra precisarão de um transplante de rim, fígado ou coração.
    Tá bom, nessa última eu forcei a barra. Argumentos interessantes porém improcedentes do Tiago, nessa questão, estou 100% com Sally.

  • Está na hora de assumir isso e começar a substituir o natural pelo artificial.

    Certeza que o Somir leu “À rebours” e concordou com as premissas do decadentismo francês! ;)

    BTW, recomendo imensamente a atenta leitura deste livro, do maluco do Joris Karl Huysmans. No mínimo, perturbador.

  • Acho que deveria ser liberado. Esporte de alto rendimento não é saudável. Não tem jogador de futebol de grandes clubes, corredor de maratona, nadador olímpico que não treine lesionado, que não compita com dor em algum lugar, que não tenha um joelho / cotovelo / ligamento monitorado. Passou do ponto do saudável.

    A maioria (para não dizer todos) os grandes nomes do esporte usam EAs de alguma forma ou em algum momento da carreira. Para treinar, para se recuperar e, alguns, até para competir.

    Acho válido o argumento da pessoa ser “usada”, mas isso já acontece hoje, vide caso da Rússia (exploradora de criancinhas ginastas) que foi quase banida por doping financiado pelo próprio governo.

    A liberação poderia ser uma forma até de regulamentar e controlar esse uso. Hoje as mais conhecidas, estudadas e seguras substâncias são as banidas. O que os atletas fazem? Testam as “novas”. Dado que eles vão usar, melhor que seja algo conhecido / controlado…

  • Bom, quem sabe não poderia ser criada uma nova competição a “ultra olimpiada” uma competição só para aprimorados, não acho q seria de todo ruim para a população em geral, fazendo um paralelo com a formula 1 por exemplo, muitas das melhorias que temos nos carros hoje vieram de lá. Quem sabe se existisse uma competição onde o dopping fosse liberado, quanta coisa boa nao poderia ser criada para a população em geral?

  • Ao invés de liberar, temos que proibir ainda mais e controlar, verificar e investigar mais profundamente.

    Quem compete é o atleta, não o químico. Se é para ver concurso de química, então a gente organiza um festival de ciências mundial e coloca na TV.

    Todos os benefícios do doping podem ser adquiridos se a gente só… estudar o doping. Deixa o esporte pra lá, não precisa de “incentivo” pras pessoas entrarem nessa.

  • Show, bem a cara do Somir mesmo liberar geral! Teria mesmo que ter além de olimpíada e paralimpíada, agora a drogalimpíada! hahaha Senão os dopados iam faturar em cima dos caretas. Obs: Menos o Bolt, porque dele nunguém ganha. O cara deve ser ET mutante pqp!

  • Tive a mesma reação da Sally ao ler essa pergunta: “Não. Vocês estão malucos? Tem ideia do que aconteceria?”

    Porque eu penso que tenho uma ideia do que aconteceria. As Olimpíadas se tornariam algo muito parecido com a fórmula 1. Em vez de vermos atletas ou países competindo entre si, vislumbro um cenário em que laboratórios competiriam entre si (como as escuderias) a fim de ver qual droga deu os melhores resultados. Algo como “Zeloren cápsulas: 12 medalhas de ouro!”, “Goldafan injetável: sete medalhas de ouro!”.

    Sem qualquer limite, a coisa ia ficar, como anteviu a Sally, cada vez mais próxima de um show de horrores, com os atletas se mutilando cada vez mais com drogas cada vez mais pesadas para alcançar resultados cada vez mais irreais em nome de um entretenimento. Tudo isso até que os atletas, com os corpos cada vez mais ferrados, começassem a morrer ao vivo, aos montes. Paradas cardíacas, AVC’s, etc. Aí, quem sabe, pensassem em proibir novamente o doping.

    Essa história de melhorar a nossa própria evolução, de ficarmos cada vez mais artificiais é uma bela utopia sci-fi. Mas precisamos ter os pés no chão e pensar na realidade.

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