Kama Sutra

O nome é conhecido no mundo todo: Kama Sutra, o suposto manual de sexo da antiguidade. Escrito por Vātsyāyana, um filósofo hindu que viveu aproximadamente no século II – adivinhem só, na Índia – o livro na verdade não é puramente um álbum de figurinhas sobre posições sexuais; a maioria do seu conteúdo sendo sobre amor, casamento e afins, baseados em preceitos da fé hindu. Bacana como documento histórico, mas… extremamente superestimado.

Pra começo de conversa, vamos considerar a parte que não ficou tão famosa assim, algo em torno de 80% do conteúdo do livro: para os hindus, existem quatro grandes objetivos na vida, Dharma, uma vida virtuosa; Artha, prosperidade; Kama, prazer, inclusive o sexual; e por fim Moksha, a liberação. Esse último sendo mais conceitual, já que lida com a liberação da vida, ou, a morte. O que uma pessoa deveria buscar enquanto ainda respira são os três primeiros. Vātsyāyana escreveu um tratado sobre Kama, na língua original, Sutra significa algo como “compilação”.

Sendo realista, é bem provável que a versão que chegou até o presente seja bem diferente da original, se é que tivemos uma original e o Kama Sutra não é mais do que uma coletânea de diversos autores atribuída a uma pessoa que sequer existiu. Mas foquemos no que está disponível: o livro pode ser dividido em 7 partes, uma delas sendo a que todos conhecem (de uma forma ou de outra), descrevendo formas de preliminares e sexo. No original, não tínhamos ilustrações. O que parece só uma curiosidade, mas vai ser útil mais pra frente.

Os outros capítulos, a grande maioria do material, estão mais focados em aconselhar leitores sobre como realizar o processo de busca de uma esposa, o que fazer para se casar com ela, o que ela deve fazer se for única esposa, se tiver que lidar com outras esposas, se for apenas uma concubina, ou mesmo a etiqueta de fazer sexo com escravas… essas coisas super bacanas sobre a inferioridade da mulher que a antiguidade nos ensinava e as pessoas iluminadas dos dias atuais admiram tanto. Tanta sabedoria, tão pouco tempo…

Mas não escolhi esta coluna à toa: vamos pra parte sexual da coisa, o manual de práticas e posições que tornou-se referência mundial em conhecimento sexual. Vamos aos números: o livro apresenta, teoricamente, 64 posições. Baseado no fato que Vātsyāyana define 8 formas básicas de fazer sexo, cada uma com 8 variações. Mas o ser humano adora um remix, e com o tempo o número foi aumentando sem parar, atribuindo-se tudo à obra original. Há algum tempo surgiu um aplicativo dizendo ter mais de 400 posições do Kama Sutra… o que provavelmente quer dizer que mais de 300 delas foram criadas por revistas femininas como a Cosmopolitan.

Aposto que no imaginário popular o livro sempre teve as famosas ilustrações (terríveis, parece que ninguém conhecia perspectiva ou anatomia até metade do milênio passado), mas na verdade todas elas foram descritas em texto, e ainda por cima em versos. O que realmente dá margem pra especulação sobre o que realmente há de conexão entre o escrito e as imagens. Porque, sejamos honestos, a maioria delas não parece ter sido desenvolvida pensando em prazer, ou mesmo considerando o funcionamento do corpo humano. As inúmeras posições acrobáticas deveriam fazer uma pessoa se perguntar na hora qual a vantagem de fazer aquilo. Mas, é claro, o ser humano não funciona assim: muita gente apenas se acha uma inepta sexual ao observar aquilo.

E talvez nisso resida todo o poder da marca Kama Sutra: ser distante o suficiente da realidade para deixar as pessoas confusas sobre sua eficácia na busca pelo prazer a dois. E onde há confusão e inadequação, há mercado. Historicamente, pelo menos fora da Índia, o material sempre foi considerado uma curiosidade de uma cultura exótica, longe de ter a fama dos dias atuais. Vivemos num tempo tão maluco nesse ponto de disseminação de informação que até parece que todo mundo conhecia o livro e as posições há milênios. Na verdade, o grosso da fama do livro vem do capítulo de posições sexuais pirateado num grupo de mensagens na infância da internet.

Mas sejamos mais específicos em desmistificar o Kama Sutra: mesmo que seu contato com as famosas posições tenha sido através de remixes da mídia moderna, tem que ser meio “virgem da cabeça” pra não notar uma coisa bem simples: são mesmo no máximo umas 10 posições diferentes. Cada vez que um dos dois descritos mexe um dedo do pé, a posição muda de nome. Chega ao ponto da mesma posição apoiada na perna esquerda ou na direita terem nomes diferentes!

E um sem número delas parece algo que se faz só por fazer, tornando um encaixe confortável num desconfortável sem nenhuma vantagem aparente na sensação. Parece que é só para fazer um novo desenho e criar um nome pra ele. E é aí que eu volto naquela informação do original não ter as ilustrações… muito esperto colocar desenhos no livro, mas duvido que o autor tenha supervisionado os artistas contratados. E, novamente, em tempos muito antigos as pessoas eram bem ruins de ilustração. Um senso bizarro de proporções e anatomia em geral, era extremamente comum desenhar pessoas cujos corpos dobravam-se em posições impossíveis, por incapacidade mesmo de fazer melhor.

E isso acabou indo pra frente, com pessoas tentando desenhar melhor, e vários incautos tentando reproduzir na prática. O que realmente mudou o conceito visual das posições até hoje, mas quem nos garante que as posições do Kama Sutra atual não passam de tentativas frustradas de fazer senso de desenhos mal feitos da antiguidade? Com o tempo as pessoas acham uma forma suficientemente parecida com o desenho de encaixar no sexo, e acham que acertaram. Eu aposto que se Vātsyāyana aparecesse nos dias de hoje e visse o que chamam de posições que ele descreveu, daria risada de todos nós.

Até porque se é um guia do prazer, tem uma certa dificuldade de entender elementos básicos como estimulação clitoriana… nem precisava saber sobre ponto G, mas é impossível que nenhuma mulher fosse capaz de dar feedback sobre posições realmente estúpidas e acrobáticas sugeridas ali. Bom, vou me desmentir: impossível não era, considerando que o livro menciona haréms, escravas e múltiplas esposas, talvez o prazer delas não estivesse realmente fatorado no resultado final. O que resta é a noção de um guia de sexo feito por quem não parece entender muito de sexo, como se chamássemos um garoto de 8 anos de idade pra desenvolver designs de carros. Sim, com certeza ele inventaria coisas completamente fora do padrão, mas… a maioria sem a menor capacidade de ser colocada em produção.

Até porque pensando no lado masculino da coisa, muitas das posições presumem um pênis tão acrobático quanto elas. Ou, gigantesco, dependendo do contexto. Eu provavelmente estou indo longe com essa ideia, mas: em várias pesquisas mundiais sobre tamanho de pênis, os indianos ficam na lanterna. Não nego que pode ser só um povo mais honesto nesse ponto, mas se for verdade mesmo, o Kama Sutra começa a parecer uma compensação. E como eu disse antes, não é como se o material fosse muito focado nas vantagens para a mulher. Talvez a posição acrobática e irreal seja o “carrão” da realidade da época da escrita do livro. Não é novidade que homens compensando pelo pífio conteúdo das calças causam boa parte dos problemas da humanidade.

E aí surge a informação, não confirmada, é claro, de que Vātsyāyana era celibatário. Com certeza explicaria muita coisa. Nem estou dizendo que o livro é completamente inútil, afinal, pelo menos lembra de preliminares e até sugere a importância delas. Talvez com um foco exagerado em unhadas e mordidas, mas, há de se elogiar a lembrança. Ainda mais se a teoria da compensação do parágrafo anterior estiver correta.

Seja como for, acredito que a “mágica” do Kama Sutra já esteja fazendo hora extra nesse mundo. Causa uma ilusão de inadequação e falta de aproveitamento do sexo nas cabeças das pessoas, principalmente em mulheres tendo em vista como revistas e sites femininos adoram o assunto. Kama Sutra virou quase que horóscopo, algo que se repete sem dó nem pena com minúsculas variações para preencher páginas. Aí, acabamos com 400 posições basicamente iguais entre si, centenas praticamente inúteis para uma vida sexual plena entre um casal. A não ser, é claro, que alongamento seja o fetiche de ambos…

Engraçado como um livro escrito por homens para homens acabou tão popular entre as mulheres. Às vezes parece que o principal problema sexual do mundo são elas nem sabendo como funcionam da cintura pra baixo. Se eu tivesse um clitóris, eu desconfiaria muito de um guia sexual como o Kama Sutra.

Pra dizer que eu só tenho Enveja da sua vida acrobática plena, pra dizer que não tem graça sem mostrar as posições, ou mesmo para dizer que eu só não vi a luz da sabedoria ancestral ainda: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • A coisa que eu mais queria quando era virgem era Kama Sutra. Depois que li foi decepção. Não me deu tesão trepar plantando bananeira.

  • Somir, bato palma pro seu texto. Tá mais do que na hora de toda essa febre pelo Kama Sutra passar e ele ser visto como mais um livro que registra a história de mais uma sociedade extremamente patriarcal – a indiana, ela mesma, que ainda tem o poder de encantar a todos com o seu exotismo, mas que poucos percebem os podres. Hora de todos pararem de se guiar por livros como ele e começar a procurar o próprio prazer por si mesmo, pois cada um sente de forma diferente. Não vejo porque um livro que ensina homens a lidar com mulheres (que eles achavam seres inferiores) daquela forma ser um sucesso assim. Só sendo mesmo muito editado e remixado. Muito bem!

  • Muito interessante a história da origem do Kama Sutra que você contou, Somir. Não conhecia todos esses detalhes. Ao mesmo tempo, eu também nunca entendi muito bem porque tanta falação em cima disso… E, que eu saiba, sexo não tem que ser acrobático pra ser prazeroso.

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