Mas que droga?

Vivemos numa sociedade, que assim como a maioria do mundo, permite o consumo de álcool, mas proíbe a maioria das outras drogas que alteram percepção e comportamento. Somir ofereceu um exercício imaginativo sobre o assunto, Sally discordou, muito. Os impopulares traficam suas opiniões.

Tema de hoje: proibir álcool e liberar todas as outras drogas ou manter o sistema atual?

SOMIR

Sim, você pode achar que tem que proibir tudo ou liberar tudo, mas o tema de hoje trabalha com a ideia de que uma das duas coisas VAI acontecer, e cabe a você escolher o melhor dos dois mundos. De um lado, o mundo que temos hoje: onde o álcool é liberado e maconha, cocaína, heroína, crack e afins são proibidos. E do outro, como eu sugiro aqui, um mundo alternativo, onde só o álcool está proibido, mas as outras não.

Evidente que eu tenho um ponto aqui: o de que o álcool é mais danoso que todas as outras drogas juntas, mas não só porque ele é liberado. Eu sou da opinião de que todas deveriam ser liberadas (Não só uma que você gosta, hippie! Tudo ou nada.), o mundo virando uma cúpula do trovão até o problema estar resolvido, porque ele pode ser resolvido com muitas pílulas amargas de realismo. Mas nesse exercício imaginativo, ainda sou obrigado a lidar com o conceito de proibição. E evidente, estamos falando de proibições funcionais, não de como a humanidade sempre fez de proibir que nem o nariz e todo mundo continuar usando.

Portanto, já que é pra manter proibições, que tal invertermos a lógica, pra tentar algo novo? Álcool liberado e as outras pesadas proibidas não deu muito certo até aqui, deu? Você pode argumentar que isso é apenas o resultado dos métodos idiotas de controle das outras, tais quais ficar superlotando cadeia e enxugando gelo por décadas. Ok, é um bom argumento, mas vamos enxergar isso de uma forma mais “econômica”. Por que o álcool e não o ópio se tornou o grande vício da humanidade?

Ópio dá de dez a zero no álcool como droga. Entorpece mais, relaxa mais, vicia mais (bom pra quem vende)… se a vontade é fugir desse mundo, muito melhor, não? Deveria ter vencido a disputa se a humanidade fosse tão propensa assim a se perder com as drogas, como a Sally sugere. E eu nem vou disputar tanto assim o ponto dela: sim, a humanidade média é terrível com essa coisa de vícios. Mas o mercado ensina que o produto tem que ser comercialmente viável pra todas as escalas de consumo.

Álcool é comercialmente viável pra humanidade praticamente toda consumindo. Ópio não. Álcool se faz com basicamente qualquer cereal, existem milhares de receitas diferentes. Heroína, morfina e similares já dependem de uma planta bem específica, um tipo de papoula. Claro que existem similares sintéticos de opiáceos, mas não estão nem perto de ter viabilidade comercial para produção na escala do álcool, por exemplo. Aliás, pensemos: o álcool “natural” é tão barato que nem mesmo com o consumo incrível da humanidade criou-se mercado para sintéticos. Álcool é muito viável no mercado. As outras, muito, muito menos. Para produzir cocaína no nível necessário pra suprir o consumo de álcool, por exemplo, gastariam as reservas de petróleo do mundo em semanas, de tanta gasolina que precisa pra fazer a droga (sim, gasolina, mas em defesa da cocaína, nunca te disseram que fazia bem…).

Estou parecendo aqueles libertários dizendo que o mercado se regula, mas capacidade de produção e distribuição realmente limitam o consumo de algo. Esse é exatamente o conceito de raridade e variação de preços que define a economia. Se ouro fosse comum e cobre raríssimo, o que vocês acham que seria a medalha do primeiro lugar? Mesmo o ouro sendo mais “especial” como substância, só de ter muito já derruba o preço e torna a utilização tão comum que as pessoas se acostumam com ele. Com as drogas, não é diferente. Raridade e dificuldade de distribuição definem não só preço como base de usuários. Se estiver liberado e não conseguirmos produzir o suficiente pra suprir o álcool, o preço vai para as alturas e acham uma fast drug pra colocar no lugar. Como, aliás, é o crack. Mas mesmo o crack sofre com a necessidade de ter cocaína em sua composição. E o que acabamos de falar sobre cocaína? Eventualmente a cocaína fica tão cara que cidadão vai fumar só bicarbonato de sódio.

Mas é claro que tem mais do que o fator econômico: tem o social. O álcool é uma daquelas substâncias que tem níveis aceitáveis de consumo. O que é e sempre será uma grande armadilha. A não ser que você veja alguém enchendo a cara todo dia, não presume que ela esteja destruindo sua vida por isso. Agora, vai nessa com uma pedra de crack. Alguém vai te ver fumando uma pedra e achar que é só descontração depois do trabalho? Álcool é viciante, mas coitado dele em comparação com as outras que estão proibidas. As pessoas sabem que vicia, sabem e costumam ficar com medo de quem as usa. Liberar heroína não significa que você vai ter as mesmas chances de ser promovido se seus chefes souberem que você usa.

As drogas mantêm seus estigmas, até porque eles são baseados no grau de dano percebido a outros seres humanos. E, de boa? Álcool tem uma presunção de importância nas relações humanas tão fora de proporção que a maioria das pessoas começa a beber por pressão externa, porque com certeza não é pelo gosto. Depois de um tempo, tratam como norma. Mais do que outras drogas, a bebida não só se beneficia por ser permitida, mas se enfia no meio da estrutura social humana justamente por isso. Ela é inofensiva na maioria das vezes, mas é tão usada e incentivada que ainda sim é quem mais causa problemas diretos no mundo. Violência doméstica, violência no trânsito…

Vocês realmente acham que crack teria o mesmo tratamento? Ele é inofensivo quando? A pessoa se estraga rápido, é muito na cara. Ou vocês acham que a única coisa entre um vício de larga escala em substâncias pesadas como crack, cocaína e heroína são as leis que as regulam? Maconha goza de uma noção de inofensividade parecida com o álcool, e se você gritar “maconheiro” em qualquer aglomeração de pessoas, alguém vai olhar. Sim, leis são importantes, mas a humanidade se regula também. Só “pegam” as leis que refletem de alguma forma a mentalidade dos povos as quais se destinam a regular.

As pessoas, em média, já sabem que as atualmente proibidas fazem muito mal. Mas, duvido que algum dia vão aceitar ou mesmo admitir que o álcool também, porque tem um porém pro álcool: as merdas que ele cria não dependem de viciados em estado avançado do vício, até porque ninguém se esconde ou fica paranoico quando bebe um pouco demais. Se é pra proibir uma e começar no mínimo uma “manobra cigarro” numa delas, o álcool é a melhor alternativa. Pelo menos mexe em alguma coisa. As outras batem em barreiras econômicas e sociais muito mais cedo.

Então, nesse mundo hipotético, pelo menos estaríamos criando um fato novo.

Para dizer que eu devo ter escrito isso bêbado, para dizer que faz muito sentido mas parece muito errado, ou mesmo para dizer que quer proibido o que não usa e liberado o que usa: somir@desfavor.com

SALLY

O que é melhor para o mundo, liberar todas as drogas proibidas e passar a proibir o álcool ou manter todas as drogas proibidas e álcool liberado?

Olha, eu francamente não sei o que se passa na cabeça do Somir. Liberar cocaína, heroína, crack, LSD, metanfetamina, ecstasy e tantas outras não vai dar certo. Não estamos falando apenas da morte dos usuários e sim do estrago social que elas causam.

Uma pessoa drogada não faz mal apenas a ela mesma, também pode fazer mal ao entorno, muitas vezes em larga escala. Nem precisa ser algo drástico, como um acidente ao volante ou um médico que opere sob efeito de drogas. Mesmo uma tarefa doméstica simples pode colocar em risco toda a vizinhança se esquecer o gás ligado. Sim, isso pode acontecer com bêbados também, mas no geral, a quantidade de bebida que a pessoa precisa consumir para isso geralmente acaba por apaga-la, enquanto que as drogas ilícitas muitas vezes deixam a pessoa ainda mais ligada.

Não sou fã de álcool, não bebo. Mas sou ainda menos fã das outras drogas proibidas. Substancias altamente viciantes e alucinógenas que a humanidade certamente não tem preparo para usar de forma livre. Se hoje, mesmo com proibição, os problemas sociais causados são gravíssimos, imaginem com liberação. Dados da ONU indicam que hoje, pelo menos 250 milhões de pessoas usam drogas pelo mundo e já causam o estrago que causam, imaginem se for liberado. Quantos milhões de drogados são necessários para trazer o caos ao planeta?

Repito: o problema não é que eles se matem com o uso de drogas, é que matem os outros. Dos 250 milhões que usam drogas, segundo a ONU, apenas 200 mil morrem nesse ano por causa de consumo direito de drogas. Usuário de drogas mata mais a terceiros do que a si mesmo. Quem já conviveu com usuários de drogas pesadas como crack sabe que a pessoa fica totalmente alucinada, capaz de fazer qualquer coisa. Sério que você quer esbarrar com uma pessoa assim na sua vizinhança? Você acha que vai ter segurança pública suficiente para te proteger disso?

Esse é o problema, não há medidas públicas suficientes para conter viciados em drogas pesadas. Não há segurança pública que alcance e também não há saúde pública que baste. É colocar uma horda de pessoas descontroladas nas ruas, com o aval do Estado. Não, obrigada. Por mais que eu ache que os efeitos da bebida sejam nocivos, não tem nem comparação com o que poderia acontecer liberando todas as drogas ilegais.

Quantos inocentes teriam que morrer até a coisa se regular ou estabilizar? Isto se um dia acontecesse. Essa ideia que em determinado momento os drogados “desaparecerão” é falsa, morrem drogados, nascem novos drogados. Viciado não entra em extinção, muito menos se autorregula. É por isso que desde sempre existem leis que regulam de alguma forma o consumo da substância que causa mais mal social à época.

Um mercado desse aberto seria um convite para desenvolver cada vez mais drogas sintéticas baratas e acessíveis. Preço de droga cai quando você tira o tráfico da jogada, mesmo que entrem alguns impostos. Como impedir que um filho seu fique viciado se está disponível para venda em cada esquina, de forma lícita e muito barata? O ser humano não está preparado para ter amplo acesso a alucinógenos com alto poder viciante, lamentável que a história por si só não baste para provar isso.

E existem muitos outros pontos a serem considerados além da morte. Usuários de drogas pesadas não costumam ser produtivos. Teríamos uma imensa massa que não trabalharia e, já que o Estado permite a droga, teria também que dar algum suporte. Vicio é considerado doença oficialmente e pessoas doentes são afastadas do trabalho e bancadas pelo Estado. Quão rápido esse sistema quebraria, com poucos contribuintes trabalhando e muitos encostados por doença? Já está quase quebrando agora, pela grande quantidade de idosos, imagina nesse novo cenário?

E os filhos que nasceriam viciados? Ou você acha que uma mulher viciada em um alucinógeno fortíssimo tem preocupação de usar camisinha? Ou então de ficar longe das drogas na gestação? Tá cheio de mãe com bebê no colo na cracolândia. A coisa vai sair do controle.

Drogas adoecem e causam muito mais problemas sociais que o álcool, não teríamos hospitais para atender aos filhos das drogas nem a todas as vítimas colaterais das drogas. Também não teríamos ruas seguras, o numero de todos os crimes aumentaria ao ter transitando pessoas sem sendo de repressão que não tem nada a perder. Estupros, assassinatos e todo tipo de crime hediondo aumentariam significativamente.

Não sei o que aconteceria a longo prazo, e, sinceramente, nem acho que seja possível especular, mas estou certa de que todo o processo horroroso que se passaria pelo caminho não valeria a pena. E olha que eu nem ao menos deixo filhos neste mundo para me preocupar tanto assim com o futuro. Não me serve um caminho que leve a humanidade a se emburacar em uma barbárie para conseguir um resultado positivo a longo prazo, coisa que por sinal eu nem acho que fosse acontecer.

Álcool é ruim, mas a proporção de pessoas que ficam perigosamente viciadas nele e causam um dano social é muito menor do que o de drogas como crack ou heroína. Sinceramente, se quiserem proibir álcool também, estou cagando, só não liberem todas as drogas pesadas do dia para a noite porque a sociedade realmente não está preparada. Seria coisa mais próxima de um apocalipse zumbi que vocês já viram.

Para dizer que você topa correr o risco de ser estuprado com um cracudo para ver a humanidade melhorar, para dizer que não adiantaria nada pois drogas sintéticas poderiam simular efeitos do álcool ou ainda para perguntar o que se passa na cabeça do Somir: sally@desfavor.com

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Comments (9)

  • Sim, eu sempre achei que liberar é a solução.

    Mas acabei de mudar de idéia. Isto não vai dar certo.

    Deixe eu aqui com minha breja.

  • Alias nesse cenário industria farmacêutica adoraria a ideia de vender Prozac e afins sem indicação médica. Não acho que o mundo de conta de ter essas drogas liberadas.

  • Deixar como está. Não seria bom tirar emprego dos traficantes que iriam migrar pra atividafes mais nocivas contra as pessoas. Trabalhar de carteira eles não querem, já arrastão dá lucro porque não tem polícia. Só quem se fode com traficantes são os clientess que não pagam, mas arrastão fode com todos os pedestres.

    • Será que não querem? Até parece que trabalhar com tráfico é uma atividade 100% eletiva… cidadão sai da informalidade, só isso. O chefe do morro vai tomar processo trabalhista, e se for incompetente, alguém toma o mercado dele. As pessoas se mexem quando o sistema muda.

  • Passei o texto da Sally inteiro com essa ideia na cabeça: apocalipse zumbi. A ideia do Somir dificilmente daria certo, teríamos de lidar com a multiplicação por mil dos atuais problemas sociais causados por abuso de drogas. Acho que nossa sociedade ainda caminha bem longe do exemplo proposto pelo Somir

    • Multiplicar por mil os problemas criados por proibição, como o tráfico? Liberando? Não seria apocalipse zumbi, até porque na vida real ele nunca aconteceria. Nem a peste negra deu conta de exterminar a humanidade. Somos as verdadeiras baratas.

      Parece argumento anti-aborto: “se liberar, todo mundo vai ser OBRIGADO a fazer”.

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