Ventre livre?

Difícil viver neste império destemperado, difícil. Não sei porque ainda tenho esperanças, se eu viver mais cem anos, este país ainda vai continuar me dando desgostos. Depois daquela bagunça maldita da guerra, seis anos sofrendo com um ditador paraguaio (agora vou chamar tudo o que é vagabundo de “paraguaio”) por não ter plano nenhum de defesa do território, parecia-me justo pelo menos corrigir alguns dos imensos atrasos que assolam nossa nação; mas se D. Pedro II cuidar de duas tartarugas, as duas fogem! Lei do Ventre Livre? Façam-me o favor, estamos em 1871! Já deu, né?

Não me contento com esse pouco. Alguns brasileiros medianos considerarão este dia 28 de Setembro como histórico. O dia em que a bondosa coroa concede liberdade aos filhos nascidos dos escravos. Como se este fosse um grande passo… o Império Britânico tem a escravidão proibida em todas suas formas desde 1807. Meu bisavô já vivia num mundo onde essa barbaridade com o ser humano era proibida oficialmente em algum lugar. Eu? Eu tenho que me contentar com a ideia de que embora algum negrinho nascido ontem ainda seja propriedade de alguém, o que nasce hoje é livre.

E nem podemos dizer que pelo menos estão tentando. Quase que a proposta não passa! O Partido Conservador ainda sofre contra o Libertário, cuja mentalidade está presa a tempos imemoriais! Saibam vocês que a Lei do Ventre Livre (ou, Lei do Engana-me Livremente) passou por apenas 20 votos. 65 favoráveis, 45 contrários. Os barões cafeeiros sendo os maiores culpados por ameaçarem o processo. O imperador observa tudo, estupefato como de costume, com mais medo de perder o poder por enfrentar os grandes fazendeiros do que com vontade de ver um país mais justo.

Vamos começar explicando que estamos atrasados, muito atrasados. Chile e Argentina fizeram essa mesma lei, respectivamente, em 1811 e 1813. Aquela tripa de terra e o país de uma cidade só nos bateram por sessenta anos. Compreensível estar atrás dos ingleses em desenvolvimento, mas perder pra Argentina é humilhante. Todos nossos vizinhos, com exceção daqueles malucos paraguaios, já aboliram de vez a escravidão! Nem na África é mais permitido. Sobramos nós, os brasileiros. Nós e os mais estúpidos dos Estados Unidos. Mas por lá eles não morrem de amores pelos ingleses, ouvi falar.

E se ainda o principal motivo da manutenção da escravidão por estas bandas fosse exclusivamente a crueldade contra os negros, eu até entenderia melhor, juro. Mais fácil ter um inimigo com objetivos claros do que um bando de preguiçosos sem lógica aparente. Os ingleses não são contra a escravidão por estarem cheios de amor no coração, evidente que não. Eles perceberam antes de todos que o modelo de manter uma grande parte da população sem condição nenhuma de consumir é péssimo para quem quer vender mais. E vamos concordar que um escravo não trabalha melhor que um assalariado? Como sempre aqui no nosso império, impera a leniência com a incompetência.

Oras, imagine só: se você é obrigado a trabalhar sem ganhar nada em troca, por mais que te maltratem, você nunca vai dar o seu máximo. Acham-me afrescalhado por me ofender com os maus tratos? Que seja, mas pense também como trabalha melhor quem quer estar onde está e percebe recompensas por seus esforços! O influxo assustador de africanos em nossas terras cria uma cultura de rejeição ao trabalho que pode demorar séculos para se desfazer. Ninguém recebeu mais escravos no mundo que nós. Gente roubada de suas terras para sofrer em nossas. Não parece óbvio que nunca vamos ter uma cultura de esforço e merecimento no país se nossa força de trabalho é forçada? Se não fazem parte da sociedade e não podem beneficiar-se de suas melhores coisas com o suor de suas testas, qual a mensagem que passamos?

Eu entendo Chile e Argentina com uma lei dessas, entendo mesmo. O Império Britânico acabara de proibir a escravidão, ninguém sabia direito como fazer ainda. Tentaram. Parecia uma boa ideia na hora, mas claramente não resolveu o suficiente porque algumas décadas depois, depois de sofrerem graves consequências da lei desastrada e paliativa, aboliram a escravidão completamente. Espanta-me que o Império Brasileiro ignore quase seis décadas de experiência estrangeira e implemente este desastre de lei. Ou faz as coisas direito, ou não faz.

E por que repudio tanto essa nova Lei do Ventre Livre? Simples, ela só cria a ilusão de liberdade, mantendo o sistema todo no mesmo funcionamento. O negrinho nasce livre, mas sua mãe é escrava. Vai mamar em quais tetas? As da princesa? Ainda vive numa fazenda, sem acesso a nenhuma vantagem da vida em sociedade livre, aprendendo nos seus mais tenros anos de vida que não é gente, que é propriedade, gado. Esses meninos e meninas vão para onde? Vão continuar debaixo das asas dos barões, trabalhando feito condenados até atingirem a idade adulta.

E aí, digo-lhes: o que ele aprendeu? Como vamos integrar um homem livre em teoria e escravo de fato numa sociedade onde não há lugar para ele? E repito: é um crime que o nascido no dia 27 não seja humano, mas o nascido no dia 28 seja. Vão crescer juntos os dois? Um sendo posse, o outro livre? Vão brincar juntos até que um seja expulso das terras por não poder ser mais explorado? E quem vai fiscalizar isso? Lembremos que a importação de escravos da África foi proibida em 1831, mas ninguém levou a sério a lei até 1850! Sim, coisas do nosso império: leis que não “pegam”.

E mesmo que hoje em dia seja mais difícil trazer novos para cá – embora não impossível se você molhar as mãos certas – ainda temos milhões de escravos em nossas terras. A maioria tendo filhos. Filhos que vão nascer de pais escravos, não terem oportunidades na vida, e nem mesmo onde caírem mortos quando expulsos das terras dos donos de seus pais. Esses escravos vão para onde? Subir nos morros da capital e esconder-se por lá? Evidente que isso vai dar errado.

Enquanto isso, Pedro, o segundo, está refestelando-se em palácios europeus, provavelmente esperando tapinhas nas costas de seus colegas de realeza sobre sua luta humanitária contra a escravidão. A pose que faz não corresponde aos seus atos, imperador do quê? Se é contra a escravidão, que promulgue a lei de verdade, a que abole a prática para sempre. O problema deste país é que não temos senso de excelência, medidas pela metade são elogiadas só por serem alguma coisa. Os abolicionistas não devem comemorar nada, foi apenas uma manobra para agradar ingleses sem ofender demais os estados cafeeiros. Ganhamos apenas um futuro ainda mais perigoso com a medida.

Vejam só o absurdo da lei: até os oito anos de idade os negrinhos supostamente livres são de responsabilidade da mãe. Depois disso, o dono da mãe pode escolher entre liberá-lo sob o poder da coroa em troca de uma indenização, ou utilizar-se de seus serviços até os 21 anos de idade. Ou seja, nem mesmo quem é livre está livre: ou pode ser separado da mãe contra a vontade de ambos aos oito anos de idade em troca de dinheiro, ou continua escravo até os 21 anos de idade! E só lembrando que o jovem ainda será escravo do governo até a idade limite mesmo que seja entregue aos 8 anos de idade. Quando escravos são longevos o suficiente para ter uma vida plena após tal idade? Não aconteceu nada. Somos tão escravagistas hoje quanto éramos ontem, mas princesa e imperador devem estar se sentindo muito bem, presumo eu.

Chega de fazer as coisas pela metade. Chega de fingir que estamos tratando de algum tema importante quando na verdade estamos apenas fazendo mais um teatro de péssima qualidade, que não agrada a abolicionistas e nem a escravagistas. Sabem o que vai acontecer? Vão continuar usando os falsos livres com cada vez mais força, para exauri-los até a idade limite. Adivinham os que serão doados à coroa? Sim, os deficientes e inválidos. O governo não só criou uma data limite para exploração mais severa dos serviços do escravo, como também um fundo de reparações para escravos pouco produtivos.

Meu único alento é que todas as partes parecem tão pouco interessadas em evolução que o império ficará cada vez mais fraco nos anos vindouros. E por outro lado, os barões do café perderão cada vez mais poder, mesmo que derrubem D. Pedro II. Não adaptam-se aos tempos. Vão fazer o quê sem melhorar a formação de trabalhadores para suas fazendas? Importar milhares de europeus para trabalharem em seus campos?

Certo estava a Cisplatina mesmo. A solução é sair do Brasil.

Para dizer que esta é a melhor pior coluna do desfavor, para dizer que estranhou eu não mencionar a Sally (ninguém sairia da Argentina para o Brasil nessa época), ou mesmo para dizer que o texto foi racista (não duvido mais de nada nesse campo…): somir@desfavor.com

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Comments (3)

    • D. Sir. V. Sª.

      Eu ainda não estava sentindo o mesmo, mas veio muito a calhar !

      Aliás, isso me lembra que houve o Partido Regressista (por volta d)essa época, se isso puder vir a ser útil como (outro) tema…

  • Este texto comprova algo que eu vejo a todo momento por aqui praticamente desde que me entendo por gente: que os anos passam, que as décadas passam, que os SÉCULOS passam, mas na essência, nada realmente muda… E daí surge uma acumulação de problemas dos quais todos reclamam quando a merda fica grande e fedida demais. Só que falar que tá tudo errado depois que a cagada já tá feita não adianta nada.

    Ah! E adorei ver vocês dizendo a verdade sobre o porquê do combate à escravidão: “Os ingleses não são contra a escravidão por estarem cheios de amor no coração, evidente que não. Eles perceberam antes de todos que o modelo de manter uma grande parte da população sem condição nenhuma de consumir é péssimo para quem quer vender mais.” Pois é. Não teve nada a ver com bondade ou altruísmo. A razão de tudo, como diria um velho clichê, “é a economia, estúpido!”

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