Evolução estagnada.

Digamos que você percebeu a necessidade de fazer uma mudança na sua vida. Se grandiosa ou não, nem é exatamente o ponto. Presumamos apenas que é algo que exige não só mudança de pensamento como mudança de atitudes. O comum para quem se encontra numa situação dessas é buscar motivações, certo? Dizer que é possível, definir metas, planejar-se, colocar a mão na massa… a solução para conseguir algo frequentemente é essa: motive-se e faça. Parece tão simples… mas por que então existe um mercado tão grande para isso?

Todo mundo passa por essas situações na vida, da dificuldade em modificar o próprio status quo e conquistar algo que lhe soe positivo. Existem milhares de livros, palestras e tratamentos que se propõem a criar essa ponte entre o querer e o poder, quase todos com diversos exemplos de sucessos com as fórmulas seguidas. Sempre tem alguém pra esfregar na sua cara como basta se esforçar seguindo algum caminho para alcançar seus objetivos. É mentira? Não necessariamente. Mesmo com uma visão cética (e por vezes até cínica) da vida, está claro que o mundo é de quem vai lá e faz, que mesmo que os caminhos difiram entre si, há uma lógica costurando junta toda a ideia da mecânica de transformação da própria vida.

E essa lógica não parece ter segredo algum: deseje, acredite, trabalhe. Basicamente tudo segue esse caminho. Ok, entendido. Mas… por que é tão difícil de funcionar? Se fosse apenas questão de conhecer esses passos básicos, a indústria da auto-ajuda faliria, levando seus gurus junto. A grande questão não é justamente por que mesmo as pessoas que sabem que tem que resolver seus problemas usando essa lógica não o fazem consistentemente? O que não falta por aí é gente que busca gurus, um atrás do outro, meio como se apostasse numa loteria do sucesso e fosse incapaz de parar.

Ei, até rimos disso todo começo de ano, com as pessoas fazendo resoluções que frequentemente não cumprem. É extremamente comum também ter conversas com outras pessoas onde todos admitem estarem tentando fazer algo de diferente, mas não conseguindo. Conversas que tratamos com discursos motivacionais, ou os mais habituais de compreensão e desistência implícita. Argumento, e não de hoje, que essa é a natureza humana: a tentativa de mentirinha, o truque interno de converter desejo em esperança e contentar-se com aquele prazer momentâneo. O ato em si, menos valioso.

Pudera, se todo mundo fosse do tipo que vai e se vira pra conseguir o que quer, acredito que não existiriam recursos suficientes para todos. Nem todo mundo pode ter as coisas que a maioria deseja, e num animal que assim como os outros deste planeta baseia toda sua realidade na luta contra a escassez, faz muito sentido. A maioria de nós busca abundância e descanso, porque somos descendentes daqueles que lutaram pra conquistar isso. E numa lógica pra lá de anti-intuitiva da evolução, foi isso que deu certo na larga escala: o desejo de comodidade e a conquista dessa comodidade para manter o processo em funcionamento.

Normalmente quem te aconselha sobre suas dificuldades para alcançar seus objetivos vai te dizer para parar de pensar nos problemas e botar o foco no que você quer conquistar. O que faz muito sentido partindo do princípio que evoluímos para detestar a dificuldade e valorizar a recompensa. Mas que também gera uma dissonância entre o mundo interno e o externo. O ser racional trabalha em diversas camadas de consciência, e talvez essa ideia de focar na solução seja apenas um falso positivo. Quem tem sucesso não está necessariamente ignorando as dificuldades, mas moldando-se a elas.

E isso eu nunca vi em discursos motivacionais. A ideia de que há algo dentro de cada um de nós que quer desesperadamente assentar-se e aproveitar o que já está disponível. Tirar o máximo de cada situação -ficando confortável no processo – parece o Santo Graal dessa mentalidade. O desequilíbrio entre risco e recompensa favorecendo a segunda. Não queremos em geral o melhor, queremos o melhor possível dentro de uma zona de conforto mínima. E basta olhar pra sociedade moderna pra entender como essa estratégia permeia toda sua construção.

Vivemos num mundo cheio de problemas que só são resolvidos quando as coisas ficam insustentáveis ou quando a solução cai dentro da zona de conforto da maioria. O ser humano começou a se aglomerar em centros urbanos por ver mais conforto lá do que no campo, para escapar da escassez de recursos e contato. Os sistemas políticos vigentes são baseados no mínimo que a humanidade está disposta a trabalhar para ter um padrão de vida possível. Não aceitável, não agradável, mas possível.

E cada povo coloca nessa equação as recompensas que consegue. Países ricos perdem-se em internet e comida, países pobres em exploração e drogas. O sistema é suficientemente possível para que as pessoas tenham suas recompensas (baseadas essencialmente em lidar com escassez), e só deixa de ser quando uma parcela dele rebela-se por perder o conforto, ou quando fica suficientemente fácil mover-se para um nível mais elevado de conforto.

Sempre sou criticado pelo meu excesso de otimismo com a humanidade, e sempre rebato dizendo que sou realista: as pessoas não são boas e esforçadas, as pessoas não gostam de perder as vantagens que conquistaram. Não fosse por isso, não viveríamos numa era onde somam-se praticamente todos os avanços conquistados pela humanidade desde seu começo. O povo que se acostuma com uma zona de conforto vai defende-la com unhas e dentes. Não é sobre o sistema, as metas futuras ou mesmo um senso de justiça, é sobre não perder o que tornou-se o mínimo aceitável para que as recompensas continuem fluindo. Mexeu nisso, todo o resto explode. Não foi o Cunha que derrubou a Dilma, foi o preço do tomate.

E isso pode ser trazido para cada um de nós, é certeza que em um ou mais aspectos da vida estamos fazendo justamente isso: negociando o mínimo aceitável para ter o DESequilíbrio entre esforço e recompensa pendendo para o lado da recompensa. O senso de justiça é uma construção ideológica que gostamos de acreditar, mas raramente temos força de vontade para aplicar. Eu entendo que é problemático que as pessoas façam o mínimo possível na maioria das vezes, mas há método nessa loucura.

O que ninguém parece dizer que é que não é errado ter essa visão sobre a realidade. Fomos programados para ela. O que pode ser errado é deixa-la assumir o controle das suas decisões sem sequer questionar. Não, por incrível que pareça, não é intuitivo ralar pelo o que se quer. Não era pra ser mesmo… a humanidade provavelmente nem chegaria onde está sem esse mecanismo de proteção de conforto conquistado. Nossa natureza parece conservadora mesmo, querendo manter as coisas como estão porque essa estratégia venceu na nossa história acumulada até aqui.

Há sim um inimigo dentro de cada um de nós contra a mudança, contra a evolução pessoal. Mas esse inimigo torna-se ainda mais poderoso quando ficamos com a mentalidade torta de ignorá-lo ou ressentir-se por ele estar lá. Como diz a sabedoria popular: tá difícil pra todo mundo. A dificuldade de fazer algo de diferente não é um problema curável, ela é simples fato da vida, resultado do funcionamento da nossa mente. E é ela que vai defender suas conquistas depois. É meio como ter um parlamento com partidos de esquerda e direita na cabeça, a esquerda vai ficar buzinando que tudo está errado e precisa ser modificado, mas a direita, que evolutivamente tornou-se mais e mais poderosa no cérebro humano, vai ficar derrubando os projetos vez após vez porque esse é o trabalho dela: manutenção de conforto mínimo.

As coisas parecem mais naturais e até mesmo possíveis quando se entende que é inevitável mesmo ter rejeição a mudanças e a sacrifícios, que não é uma falha única e pessoal, e que provavelmente nem falha é. É um fato, que por incrível que pareça, é irrelevante na hora da ação. O partido da estagnação raramente perde uma votação, mas pelo visto, nem nossa mente é uma democracia de verdade…

É claro que as pessoas não querem o caminho difícil. Nem defeito é. Quem faz o difícil só faz o difícil, e ponto. Mas, novamente, falar… falar é o caminho fácil.

Para dizer que adora ser desmotivado, para dizer que entendeu que está certo em não fazer nada (talvez esteja), ou mesmo para dizer que… ah, deixa pra lá: somir@desfavor.com

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Comments (3)

  • A crença num ente exterior mina a disposição de ‘ir lá e fazer’ algo. A crença num outro mundo imaginário também torna as realizações neste mundo real quase que desimportantes.

    Fugindo um pouco do tema, o ateísmo tem esta vantagem: você toma as rédeas de sua própria vida. Voce não ora e pede simplesmente a um deus externo, mas vai lá e faz voce mesmo.

  • Então o segredo é sair da zona de conforto e sofrer mesmo ? Quer dizer quando você não tem nada pra se agarrar e aquela ultima gota de esperança ja acabou faz tempo, talvez seja o melhor momento pra agir quando você chega no limite e não tem pra onde correr

    • Me metendo: o melhor momento para agir é antes disso. Pessoas transtornadas, pressionadas, no limite ou sem esperanças não tomam boas decisões ou não tem a força e estrutura para bancá-las. Melhor escolher o caminho que vai seguir com um dia ensolarado ou com uma puta nevasca de te cegando?

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