O código.

Foi segredo por mais ou menos uns dois meses… quer dizer, não que tenhamos confirmado, mas já aparecia em fotos de astrônomos amadores e começou a inundar a internet. O pessoal soltou uma versão oficial sobre ser uma tempestade refletindo a luz do Sol, mas apareciam tantas imagens que eventualmente só ficamos quietos e contamos que a conspiração ridícula criada pela parcela mais lunática dos interessados criasse dúvida suficiente na população geral. E, enquanto estávamos nos preparando para mandar uma missão pra lá, funcionou bem. Depois, bom, todos sabem que depois ficou impossível esconder…

Mesmo Marte sendo menor que a Terra, um objeto grande o suficiente para ser visto por telescópios amadores orbitando sua superfície tinha que ser maior do que qualquer coisa jamais construída por nós. Uma esfera metálica de cem quilômetros de diâmetro? Era muito perfeita e redonda para ser um milagroso asteroide composto só por metais, alguém tinha feito aquilo. Teve gente dizendo que era a oportunidade perfeita para mandar a primeira missão tripulada, com algo interessante pra fazer por lá. Sim, claro que foram militares dizendo essa bobagem… um planeta é interessante só por ser um planeta, oras.

Por sorte ou azar, talvez ambos, logo a ideia foi descartada. Os custos de mandar gente pra lá sem poder fazer publicidade do evento desencantaram todos com o poder de assinar o cheque. Achei melhor, de qualquer jeito. Faríamos o básico e mandaríamos uma sonda preparada especialmente para analisar a esfera. Assim, qualquer problema era só uma missão de rotina, para analisar a atmosfera ou algo do tipo. Foram uns quatro meses para construí-la… poucas ferramentas de análise, muitas de imagem e captação de possíveis comunicações. A viagem durou mais seis meses, o de costume.

Os teóricos da conspiração continuavam nos ajudando falando incessantemente sobre alienígenas, programas governamentais e coisas do tipo. O público em geral continuou pouco interessado, tivemos alguma paz quando o primeiro evento ocorreu. A versão oficial é que uma falha no sistema de aproximação fez a sonda se chocar contra a superfície marciana, mas na verdade, ela foi abatida quando chegou perto demais da esfera. Presumimos isso porque recebemos como últimas imagens uma esfera bem menor, aparentemente do mesmo material da maior, saindo dela. E, claro uma comunicação recebida em código binário poucos minutos antes do final das comunicações.

Evidente que analisamos o que era aquele código, e… era mais código, um bem simples. Na verdade, a mesma linguagem de programação usada para criar o sistema da sonda. O mais interessante é que depois de algum esforço, conseguimos depreender que havia uma mensagem ali. De uma forma realmente interessante, a mensagem recebida pela sonda da esfera usava conceitos de programação para definir uma distância dela, criando uma condição a partir dessa distância para o término da execução do código e exigindo uma interação do nosso sistema para não iniciar a sequência. Basicamente, estava nos dizendo para ficarmos longe a não ser que tivéssemos algo para dizer. Aquela esfera menor provavelmente foi o que abateu a sonda, pela falta de resposta. Demoramos várias horas para conseguir receber e responder, pela distância.

Em questão de horas estávamos com nossos melhores programadores tentando achar mais informações, e já se adiantando para criar as nossas saudações e perguntas em cima dessa linguagem. A ideia de criar uma inteligência artificial para responder imediatamente a diferentes interações da esfera tomou força, e os nossos melhores cérebros debruçaram-se sobre o problema por mais três meses até termos algo que fosse capaz de conversar com o que quer que estivesse orbitando Marte.

Como é de se imaginar, perdermos a sonda e tão cedo mandarmos outra enlouqueceu aqueles que estavam sentindo algo de estranho. A opinião pública começava a desconfiar, pouco a pouco. Mantínhamos que era só uma tempestade e todas as missões estavam agendadas faz tempo. Nem nós tínhamos certeza se estávamos lidando com algo amistoso, não valia a pena vir a público confessar o que estávamos fazendo. Foram mais seis meses até a sonda chegar novamente.

Essa estava programada de forma diferente: ficaria na distância limite comunicada pela esfera e começaria mandando mensagens que, pelo menos ao nosso ver, fossem amistosas. O problema é que apesar de termos mandado essas mensagens na nossa língua natal, precisávamos mandar também, com significados parecidos, mas em linguagem de programação. Eu não sei exatamente o que foi escrito ali, mas imagino que tenha sido um desafio e tanto traduzir intenções e emoções humanas em instruções para uma máquina.

Seja como for, pareceu funcionar. Não perdemos o sinal dessa sonda, que continuou mandando fotos. A estrutura esférica parecia ser totalmente sólida, não abrindo fendas em sua superfície nem mesmo para lançar as esferas menores. E dessa vez vimos várias ao redor da principal. Os instrumentos também indicavam que naquela área ao redor do objeto não identificado, a atmosfera marciana parecia bem mais densa. E sim, conseguimos nos comunicar. As informações lançadas em nossa língua foram ignoradas, mas as em código começaram a ter respostas.

O sistema que mandamos deveria interpretar o código que recebia e devolver uma dentre centenas de respostas prontas que definimos com antecedência. Tudo muito simples, para evitar qualquer mal entendido. Começamos a receber tudo com as horas de atraso habituais, mas a cada minuto percebíamos que chegavam mais e mais dados, como se a conversa entre nosso sistema e a esfera estivesse se tornando mais rápida. As centenas de respostas prontas esgotaram-se em menos de uma hora, sendo que mais da metade no último minuto dessa hora. A esfera parecia ter entendido o nosso sistema e comunicava-se como se quisesse esgotar logo as respostas possíveis.

Passou-se quase um dia inteiro de comunicação intensa para a esfera notar que tinha esgotado o estoque. Deve ter recebido cada uma delas pelo menos umas dez mil vezes antes de dar-se por satisfeita. Ou, desistir. Vinte e duas horas depois do primeiro contato, ela entrou em silêncio. E assim permaneceu por mais umas seis horas. Mesmo com a quantidade incrível de dados que recebemos, não pudemos presumir muita coisa, a esfera não estava falando sobre si tanto quanto estava fazendo experimentos com a inteligência artificial enviada por nós. O pouco que pudemos presumir pelos códigos que recebemos dela era que ela estava lá para iniciar um programa e não podia dispensar mais do que aquela atenção para nossa curiosidade.

Presumimos que as leituras sobre a atmosfera ficando mais densa ao redor dela e essa mensagem significavam uma espécie de terraformação de Marte acontecendo. Claro, a palavra tem ligação com o nosso planeta, mas o conceito parecia o mesmo: transformar aquele deserto radioativo em algo habitável. E não sabíamos pelo quê. Depois daquele silêncio, recebemos mais alguns dados, difíceis de interpretar. Era como se o nosso sistema estivesse reiniciando diversas vezes e mandando dados cada vez mais confusos a cada iteração. Isso durou mais algumas horas, até que paramos de receber até mesmo os dados mais básicos.

A sonda ficou silenciosa. Um dia, uma semana, um mês… já estávamos produzindo mais uma e realmente considerando enviar uma missão tripulada, mesmo que sem a capacidade de pouso. Foi quando o assunto vazou na mídia, inclusive com as conversas que tivemos com a esfera. Mal deu tempo de lidar com as investigações internas, o mundo todo estava de olho em nós. O assunto explodindo na internet e na mídia tradicional, confirmando nossos medos com milhões de pessoas das mais diferentes esferas de influência incitando o pânico. Não foi tão terrível quanto prevíamos num caso desses, não tivemos caos nas ruas ou o colapso da sociedade, mas causou aquele efeito colateral que gerou tudo isso.

Marte não é tão longe que nossa comunicação de rádio não alcance. Ainda mais considerando o que agora sabemos: que a esfera mandou diversos repetidores e reforçadores de sinal no caminho entre Marte e Terra para nos monitorar. E foi essa facilidade de contato que fez com que praticamente qualquer pessoa pudesse conversar com a esfera. Bastava um computador e algum serviço de envio que alcançasse pelo menos o primeiro dos repetidores, não muito distante da nossa Lua. E a esfera respondia a todos. Sempre naquela linguagem de programação, que tornou-se extremamente popular do dia para a noite.

Não tínhamos mais controle algum sobre o que a esfera estava ouvindo sobre nós, sabíamos que muitos a tratavam como uma divindade, outros tantos como ameaça. No final das contas, aqueles que a viam como ameaça venceram. Primeiro foram as esferas pequenas chegando aqui, destruindo satélites, eliminando armamento nuclear, destruindo boa parte da nossa tecnologia militar. Mal tínhamos como revidar. Cada uma destruída era substituída por duas novas, e elas não paravam de chegar. Tentamos desesperadamente convencê-la a parar com os ataques estruturais, sem sucesso. As esferas impediam também qualquer lançamento de foguetes para o espaço. Ficamos isolados e com imensas dificuldades de comunicação.

Sem tirar nenhuma vida, a esfera aniquilou a maior parte do nosso poderio bélico e estrutura tecnológica em questão de poucos anos. Muitos comemoraram, vendo nela uma espécie de retorno messiânico com o objetivo de corrigir nossos erros. Teoria que ficou ainda mais forte quando começaram as abduções. Milhares de pessoas foram retiradas da Terra por esferas aparentemente criadas com esse propósito, para nunca mais serem vistas pelos locais.

Bom… e deu a nossa hora! Amanhã nós continuamos com o cometa que se chocou com a Terra e o começo da nossa nova civilização aqui em Marte. Eu sei que vocês estão curiosos, mas vamos tomar um ar fresco agora, classe. Até amanhã!

Para dizer que não sabe se foi twist ou preguiça, pra dizer que se a esfera viu as redes sociais não salvaria ninguém, ou mesmo para dizer que realmente está esperando a próxima aula: somir@desfavor.com

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