Palhaçada.

+Aparições de palhaços aterrorizantes causam histeria em massa no planeta. Nos Estados Unidos, no Canadá, na Inglaterra, na Austrália e até no Brasil, relatos de pessoas fantasiadas vistas nas ruas deixa população apavorada.

A babaquice da internet e da vida real começam a se misturar num entidade indiferenciável, e cada vez pior. Desfavor da semana.

SALLY

Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo: há informações meio desencontradas de testemunhas pelo mundo todo que teriam sido perseguidas ou intimidadas por homens vestidos de palhaço. Seriam fantasias assustadoras e os palhaços fariam coisas aterrorizantes. Não há provas muito concretas de que isso esteja efetivamente acontecendo em massa pelo planeta, temos apenas relatos em redes sociais e uma que outra denúncia formalizada. Sequer temos certeza do que está acontecendo, mas, o que quer que seja, é um tremendo desfavor.

Muitos cogitam que seja uma espécie de ação publicitária para o lançamento de um filme chamado “31”. Se for isso, tremendo desfavor. Primeiro por mexer com o pavor das pessoas (muita gente tem fobia de palhaço por si, quem dirá palhaço aterrorizando pessoas). Segundo porque dá ideia para idiotas que podem começar a se vestir de palhaços para efetivamente colocar a lenda em prática. Então, se era apenas uma ação, saibam que saiu do controle e que os primeiros casos de palhaços que efetivamente fizeram um mal concreto a alguém já estão aparecendo.

Há quem diga que nada está acontecendo, que são apenas relatos plantados na internet para promover o mesmo filme ou qualquer coisa do tipo, em uma espécie de ação de publicidade viral. Igualmente desfavor, pelos mesmos motivos do parágrafo acima. Dos 50 estados dos EUA, em 40 foram reportadas aparições de palhaços ameaçando pessoas. Será que todos eram verdadeiros? Será que todos eram falsos? Nunca saberei. Somir com certeza sabe, ele anda com a banda podre que faz essas coisas, então, deixo essa parte para ele.

Fato é que as pessoas estão entrando em pânico de verdade e alguns idiotas estão tirando essa ideia do papel. Nos EUA, pessoas chegaram a ser presas por espalhar falsos boatos de palhaços aterrorizando a população. Todos teriam confessado esta espalhando boatos quando interrogados e acabaram presos. Tarde demais, mesmo começando como boato, está criando vida e de fato palhaços estão atacando pessoas. Não se sabe ao certo se começou com um fundo de verdade e aproveitaram para inventar mais casos do que realmente existiam ou se, ao contrário, começou como uma mentira e depois se concretizou. Efeito Tostines na criminalidade, o ser humano está de parabéns.

Independente de como começou essa palhaçada (sem trocadilhos!) a população está começando a ficar alarmada, e com razão. Em outros países isso pode significar não andar sozinho nas ruas ou avisar as autoridades se avistar um palhaço. Mas não no Brasil. Nããããão… aqui o nível é outro, amigos! Não preciso nem dizer que já começaram a enfiar a porrada em palhaços, né? Só para citar um caso: um estudante de direito foi agredido quando estava a caminho de um trabalho voluntário, por estar vestido de palhaço. Aqui é assim: na dúvida, enfia-lhe a porrada.

O pior é que, ainda que a raiz disso seja um boato ou uma ação promocional, agora provavelmente já tem babaca vestido de palhaço na rua pronto para cometer um crime. Há relatos no exterior de palhaços na beira da estrada mostrando notas de dinheiro, tentando atrair crianças para dentro da floresta. Claro que no Brasil a coisa é um pouco mais animalesca, né? Palhaço perseguindo pessoa com serrote na mão, por exemplo. Não me admira se aparecer palhaço montado em jegue, palhaço usando abadá e palhaço com adesivo “Não ao Golpe. Fora Temer”. Aqui é a capital mundial da esculhambação, nem assustar se faz direito.

Mas este desfavor pode ser visto de uma forma mais ampla: como é fácil plantar qualquer merda a nível global hoje em dia. Preocupante! É um poder que até então a internet só usava para coisas inofensivas, como criar Memes, expressões, hashtags ou modismo. A chave virou. A globalização, as redes sociais, a interconectividade full time começa a ser usada para o mal, para o crime, para o medo. E se presta muito bem para isso, grandes chances de ser um sucesso.

Babacões paumolengas com uma necessidade interna enorme de se auto afirmar ganham um megafone do tamanho do mundo para inventar suas mentiras e se sentirem poderosões por conseguir tamanho impacto. O que eles talvez não percebam (ou apenas não se importem, ainda estou na dúvida) é que seus personagens estão ganhando vida e tomando o mundo real. Isso prejudica até os próprios autores e sai do controle rapidamente.

É um nicho que tem tudo para prosperar: é grátis, é fácil de fazer (as pessoas acreditam em tudo e já vivem assustadas de antemão) e dá uma sensação de poder muito gratificante para as mentes doentias que precisam disso. Lamento isso mais do que vocês possam imaginar, mas a tendência é que esse tipo de coisa se repita – e muito. Bem, quem quer otimismo certamente não bate ponto por aqui, então, me sinto no direito de dizer que eu acho que está por vir uma grande onda de realidade virtual se transformando em real, tal qual um roteiro de filme de ficção, onde personagens escritos por um autor ganham vida.

Hoje a realidade é que inspira a vida virtual: se um time ganha, vem as piadas e Memes com o perdedor. Se um político comete uma gafe, tome piadas e deboche. Mas parece que o pêndulo está virando. Talvez estejamos diante do primeiro caso que transforma algo virtual em real com esta eficiência e magnitude mundial. Sim, campanhas boas já viraram realidade graças à internet, mas nunca foi nada tão expressivo e que mexa tanto com a vida dos não envolvidos. Essa nova modalidade de realidade oriunda do virtual afeta a todos, até mesmo a quem nunca topou participar do mundo virtual.

Por ser o primeiro caso, tudo é novidade. A forma como se vai lidar com isso pode ser o determinante para que este mecanismo seja bem sucedido ou não. O Brasil, é claro, sempre lidando da pior forma possível: enquanto outros países procuram não fomentar boatos e alarmar a população ou focam seus esforços em punir exemplarmente quem dissemina essas lendas urbanas, aqui neguinho já assimila como verdadeiro qualquer bosta que lê e sai estancando a porrada no objeto da fofoca. Já lincharam mulher no Guarujá achando que ela era bruxa, imagina se não vão amarrar palhaço em poste e fazer justiça com as próprias mãos!

E o brasileiro o faz achando que isso vai coibir a prática! Meus queridos, o idiotão que está ali de palhaço não é o mesmo idiotão que plantou um boato na internet. Tem o idiota mentor (e este fica em casa são e salvo comemorando como manipula os outros) e o idiota executor (um lunático louco por atenção ou meio maluco, que faria basicamente qualquer coisa). Bater no executor recompensa enormemente o mentor, encorajando ainda mais sua atitude errada. Vão perceber isso? Jamais. Sutil demais. O brasileiro simplório vai continuar enchendo palhaço de porrada “para aprender”. Lamentável.

É justamente isso que boateiros querem. Quando mais seu boato repercute, quanto mais ele entra na vida real, mais poderosos eles se sentem. Já cansamos de falar aqui: não se dá voz para idiota, pois quando um idiota fala para muitos, ele permite que outros idiotas que estavam sozinhos e neutralizados, devidamente segregados, se unam a ele e junto, ganhem força. E se tem coisa que o brasileiro gosta é de empoderar idiotas.

É isso. Não sabemos com certeza o que é, mas sabemos no que se transformou. Como quer que tenha começado, já saiu da ficção e se tornou realidade. Tende à repetição e ao descontrole e, só por esta análise em abstrato, merece ser desfavor da semana.

Para dizer que no Congresso tem centenas de palhaços perigosos, para dizer que isso é o inferno em vida para quem tem fobia de palhaços ou ainda para dizer que vai começar a se vestir de Batman para combatê-los: sally@desfavor.com

SOMIR

Se eu sei exatamente o que está acontecendo? Não. Dessa vez parece que não há coordenação nenhuma na ação, nem mesmo um site (dos suspeitos habituais) de onde estão vindo essas ideias. Até porque não se parece com algo bolado pelas mentes “brilhantes” de trolls querendo bagunçar com a sociedade e passar uma mensagem, parece apenas uma adaptação besta do conceito de meme na vida real.

A ideia de usar um palhaço assustador aparecendo aleatoriamente para incautos não é nova, principalmente porque a ideia do medo de palhaços tem um status de fabricação da internet. Sim, a fobia verdadeira de palhaços existe e Sally já escreveu um texto sobre isso, mas é meio como a depressão: a condição real existe, mas a maioria das pessoas que se diz ter isso na verdade está exagerando. Medo de palhaços com máscaras assustadoras surgindo do nada em lugares isolados qualquer pessoa com bom senso deveria ter. Aliás, qualquer combo de fantasia e isolamento funcionaria: se eu visse um cidadão vestido de Sininho saindo do meio do mato de noite sem mais ninguém por perto de nós, eu me preocuparia também.

E eu estou chamando de meme – muito embora a maioria das pessoas ainda ache que meme é sinônimo de piada na internet, meio como trollar acabou sendo a palavra pra ofensas genéricas – pelo conceito original da palavra: meme vem do livro O Gene Egoísta, de Richard Dawkins (sim, aquele que ficou famoso pelo livro dizendo que deus não existe), e de forma simplificada, é um conceito de replicação parecido com a dos genes, mas para a cultura humana. Assim como um gene, uma meme vai sendo modificada a cada vez que se duplica, e apenas as mais bem adaptadas ao ambiente conseguem prosperar. Meme é uma informação que cresce organicamente, contando com o fato que a cultura humana vai modificá-las seguidas vezes.

O desfavor é que essa história dos palhaços assustadores teve um gene forte o suficiente para espalhar-se pela sociedade humana. Tudo bem que não disputa com coisas brilhantes para começo de conversa, mas é um dos primeiros sinais da mistura entre o virtual e o real com essa escala de alcance. Embora dê para traçar paralelos com outras que exigiam participação real para funcionar, como aquela do desafio do balde de gelo, dessa vez a meme funciona de sua forma mais pura: sem objetivo, sem lógica, sem um ponto central de organização.

O que provavelmente aconteceu: a cena do palhaço assustador não é nova, eu mesmo lembro de alguns vídeos de pegadinhas com esse tema há alguns anos atrás. Fotos assustadoras com palhaços também são mais velhas que andar pra frente. Tivemos várias oportunidades para começar com isso em anos anteriores, mas há um fator de confluência necessário para a informação tornar-se meme. Precisa de adesão. Essa onda recente começa nos EUA, no estado da Carolina do Sul. Relatos de palhaços ou grupos de palhaços assustando crianças, surpreendendo pessoas… tudo entre Agosto e Setembro. O importante aqui é que o ponto central das aparições, pelo menos no começo deles, foi na parte caipira dos EUA, aqueles lugares que votam no Trump. E esse ponto é importante por causa de um elemento cultural típico dos EUA que eu duvido que os estagiários do Fantástico foram pesquisar: os juggalos.

Hein? Calma que piora: juggalos é uma autodenominação dos fãs de uma banda americana chamada ICP (Insane Clown Posse). A banda, fazendo um mix de rap ruim e rock ruim, tem uma legião de seguidores entre os caipiras americanos, que vestem mesmo as camisa. O ICP é literalmente uma banda de palhaços malignos, todos usam maquiagens do tipo e cantam sobre esfaquear pessoas e sobre o orgulho de serem burros. Talvez o melhor paralelo aqui no Brasil seja a “cultura funk”. O conceito cultural do palhaço maligno é muito forte nos lugares onde as aparições começaram.

Não era de se estranhar que alguém fizesse algo do tipo por lá, as crianças que relataram as primeiras aparições podiam muito bem estar vendo um grupo desses fãs, embora eu não bote minha mão no fogo contra uma campanha publicitária de filme. A ideia espalhou-se primeiro pelas áreas com fortes influências desses grupos que já se fantasivam de palhaços do mal por afirmação cultural (eu sei, triste…), e aí a internet se encarregou de espalhar a ideia daquele jeitão habitual: pessoas querendo atenção começam a armar vídeos e fotos, gente imbecil inventa que viu, gente influenciável vê mesmo… e como sempre, tem os malucos que realmente gostam da ideia e saem para assustar os outros na rua.

E ao invés de ver as coisas como realmente são, um efeito bola de neve que vai cansar como quase toda meme cansa, a mídia aproveita-se da chance para tornar tudo muito mais histérico do que é. E a bola de neve vai aumentando. E aí começam os casos de pessoas sendo espancadas por estarem vestidas de palhaço, porque o cidadão médio mundial continua sem a capacidade de pensar um pouco antes de agir. O problema é que isso vai saindo de controle com violência cada vez maior: quem quer se misturar na meme para cometer crimes já tem a fantasia perfeita. Com o ser humano caindo tão fácil na histeria, é capaz de ficar mais focado na ideia de que existe um grupo de palhaços malignos atacando pessoas no mundo do que no mais óbvio que é filho da puta genérico aproveitando para se esconder na multidão.

E assim, a linha entre realidade e fantasia sofre mais um golpe, com a internet vazando para a vida real na sua parte mais lúdica, suas histórias assustadoras e memes borrando a percepção das pessoas sobre a vida fora das telas. Já dizia isso em 1999, continuo dizendo agora: maldita inclusão digital!

Para dizer que o título combina com meu texto, para dizer que esperava mais da minha nerdice, ou mesmo para dizer que foi pesquisar os “juggalos” e agora odeia ainda mais a humanidade: somir@desfavor.com

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