Exorcismo.

Parece coisa do passado, mas não é. Em 1999 foi atualizado, redesenhado e continua sendo utilizado, ainda que em segredo, pois quem faz uso dele não quer espalhar que isso acontece na sua vida. Não, não é coquetel contra HIV. Desfavor Explica: Exorcismo.

Exorcismo consiste basicamente em uma autoridade superior forçando uma entidade inferior a abandonar um corpo, local ou um objeto no qual tenha se alojado. Muitas religiões praticam alguma forma de exorcismo, porém o mais popular é o clássico exorcismo da Igreja Católica, imortalizado em livros e filmes e, pasmem, ainda em prática nos dias de hoje. Sim, exorcismos ainda são realizados, e não necessariamente em republiquetas pobres. Como a família procura manter tudo em sigilo (não é muito bom para o currículo ter hospedado o Demônio), poucos casos vem à tona, mas esses poucos que vem são revoltantes.

O Exorcismo está previsto no Rituale Romanum (Ritual Romano, em latim), um livro que contém os rituais que podem ser executados por um padre. Um livro muito moderno, escrito em 1614. O capítulo sobre Exorcismo foi atualizado em 1999, mas, como vocês verão, não adiantou muito. Apesar de ser algo escrito, não é amplamente divulgado, não basta ser religioso para estudá-lo. Seminaristas, por exemplo, não aprendem a fazer Exorcismo durante o curso, é preciso um curso posterior, específico sobre o assunto. Exorcismo é como uma pós ou uma especialização, dada a suposta importância que tem.

Graças a esse elitismo, houve uma carência de exorcistas no mercado. Para combater essa escassez cada diocese teve que designar um exorcista oficial a partir de 2004, quem não tinha, deveria capacitar alguém para ocupar o cargo. Em 2005 a Associação Internacional de Exorcistas, criou o primeiro curso de nível universitário em Exorcismo. No currículo havia aulas de teologia focada em demônios, medicina, psicologia e sociologia dos cultos satânicos. Sim, há exorcistas no Brasil. Talvez não o suficiente, já que no Rio de Janeiro existe apenas um para cuidar deste grande inferno, mas eles existem e estão atuantes.

O Exorcismo, tal qual o Habeas Corpus, tem modalidades preventivas e repressivas. Existe o Exorcismo Baptismal, para dar uma limpa nas crianças que ainda não foram batizadas e podem ser alvo fácil do Capeta. Tem o Exorcismo Simples, feito para “limpar” da influência maligna um local ou objeto e finalmente o Exorcismo Real, praticado em pessoas possuídas pelo Demônio. Francamente eu me pergunto qual é a razão de ser do Exorcismo Simples: se o Diabo aparece e diz que um objeto meu é dele, eu vou dizer “Pode levar Sr. Satanpas”. Eu já dou sem pensar meus pertences para um ladrãozinho na rua, não vai ser o Capeta que eu vou peitar. Exorcismo Simples é a prova de como tem gente pão dura no mundo.

O Exorcismo inicia com a suspeita de que o Demo está tocando o terror em um objeto ou em uma pessoa. Quando a família constata comportamentos estranhos e procura ou se confessa com um padre e este suspeita que seja coisa do Capeta. Antes de fazer qualquer coisa, a orientação da Igreja é que o padre procure uma opinião de um médico ou um psicólogo… desde que eles comunguem com a fé católica. Aí complica, né? Um psiquiatra que acredita no Demônio dificilmente será um bom psiquiatra. É como dizer “só pode aplicar a cura gay se um evangélico concordar que ela existe”. Por causa dessa regrinha escrota até hoje pessoas com severos problemas mentais passam maus momentos em rituais bizarros.

Em alguns países onde a lei é levada mais a sério, também se exige que o exorcizado assine um termo de consentimento, para resguardar de futuros processos. Parece um tanto quanto contraditório, pois quem assina na verdade seria o Demo, já que a pessoa está possuída, mas eu não duvido de mais nada do Judiciário. No Brasil não se exige essa assinatura, apesar de que, se depender do nosso Judiciário Satanás faz até crediário na C&A.

As causas mais comuns às quais eram atribuídas possessão demoníaca eram comportamento agressivo e uso de linguajar obsceno, porém, isso começou a ficar recorrente na sociedade, assim, novos sintomas foram acrescidos: aversão a objetos “sagrados” (como água benta e crucifixos), fala de idiomas que a pessoa não conhecia e força física muito além da capacidade normal do ser humano. O que acontece na prática é uma puta sugestão de ambos os lados que culmina na identificação de ao menos um dos sintomas, estejam eles ali ou não. A verdade é que a maioria dos casos de possessão demoníaca tem a mesma origem: esquizofrenia.

Depois de descartar eventuais causas médicas (com o parecer apenas de médicos católicos, vale lembrar), presume-se que o problema seja de fato Satanás. Aí o padre deve solicitar autorização ao bispo ao qual está subordinado, para só então fazer o Exorcismo. Novamente, um ignorante recorrendo ao outro, não adianta de nada esse sistema de freios e contrapesos. Autorizado o ritual, agenda-se uma data e o padre comparece ao local onde está a pessoa ou o objeto possuído, geralmente acompanhado por alguém que o ajude. Os mais sérios levam também um médico para monitorar o possuído durante o Exorcismo.

Ao contrário do que se viu no filme “O Exorcista”, o padre deve usar uma rouba branca, uma espécie de batinha, por cima da batina chamada “sobrepliz” e uma estola roxa. Antes de enfrentar o Capeta, ele e todos os que vão participar se confessam, para serem absolvidos de seus pecados, assim o Coisa Ruim não pode usar nada contra eles durante o ritual. Dificilmente um padre realiza um exorcismo sozinho, geralmente ele vai acompanhado de outro padre mais novo (tipo um estagiário de Cristo), pois o ritual pode ser demorado e cansativo. Assim, se ele se encontra exaurido, seu auxiliar assume. Tá pensando o que? Espancar os outros cansa!

O padre vai até a vítima ou local onde o Diabo se alojou e se isola com ele em um cômodo. Caso a vítima esteja exaltada, ela deve ser imobilizada, havendo inclusive permissão para segurá-la ou até amarrá-la (que geralmente é o que costuma acontecer). Depois que a pessoa está devidamente imobilizada, começa o ritual. É comum que se façam uma últimas perguntinhas para confirmar que se trata mesmo do Demônio naquela ocasião, apesar de toda a análise prévia. Um recurso muito utilizado é o padre levar ou colocar algo em seu bolso que só ele sabe o que é e perguntar à vítima o que ele tem ali. Se a pessoa adivinhar, bem, só pode ser o Diabo.

Aqui vale uma ressalva: nem sempre é o Demônio em pessoa que se apropria de um objeto, lugar ou pessoa. Há prepostos. Admite-se a possibilidade de espíritos malignos que não sejam o Dito Cujo necessariamente. São forças do mal que certamente estão ligadas a Satanás mas podem ser bem inferiores em força e hierarquia. Isso é que é ser ralé, nem o Demo se digna a tomar seu corpo, manda um estagiário do mal.

O ritual começa com uma preliminar: o padre abençoando a pessoa que está com o Diabo no corpo benzendo-a e com água benta. Normalmente o possuído não curte muito essa parte. Depois repete o processo consigo mesmo e com todos os presentes no cômodo. Só depois começam efetivamente os trabalhos. A primeira parte do ritual busca forças no bem, rezando a “Ladainha de Todos os Santos”, onde se pede ajuda a basicamente todos os santos para que intercedam e ajudem. Depois de pedir ajuda aos santos, rola um upgrade para o salmo 53 e pede ajuda ao próprio Deus, para que salve a pessoa de “inimigos malignos”. Acreditam que a eficiência seja maior quanto a fala for em latim, logo, se houver esta possibilidade, latim é o idioma oficial do ritual.

Só depois disso começa o verdadeiro confronto. O padre pede que o Demo declare seu nome e deixe o corpo da pessoa, seja dito ou externado por sinais, que podem ser batidas ou qualquer outra forma de comunicação. É uma espécie de Gato Mia, só que um pouco mais assustadora. Satanás, por sua vez, costuma lutar: grita, tenta atacar o padre, se debate. Também pode estar em uma pegada mais filha da puta, e aí usa os medos e informações pessoais de cada um dos presentes para manipulá-los, mais ou menos como o Somir faz com vocês nos comentários. Eventualmente ele também finge que vai embora apenas para ser deixado em paz e retorna depois.

Aí entra a etapa perigosa: o padre tem uma missão, que é tirar o espírito maligno dali. Se o primeiro ritual de Exorcismo não é bem sucedido, outro se inicia, até que o padre consiga cumprir sua missão. Isso pode demorar horas, dias ou semanas. Há um caso onde a possuída recebeu o nome fictício de “Marta”, na Espanha, onde o exorcismo durou mais de oito anos, conduzido por um dos então maiores especialistas do Vaticano em exorcismo, o Padre José Fortea. É possível imaginar o grau de estresse que uma pessoa com problemas mentais passa se sujeitando a este ritual, muitas vezes amarrada, por um longo período de tempo e é de se esperar que ela não melhore.

As medidas para expulsar o Demônio não são um rol taxativo, ficam em aberto, o que faz com que alguns se excedam no calor do momento e, achando que estão fazendo um bem, acabam machucando e até matando a pessoa, “para o seu próprio bem”, pois há a falsa percepção de que se o Demônio sair daquele corpo todo o mal causado desaparece. Por sua vez, o exorcizado não gosta nada de estar passando por aquilo (nenhum de nós gostaria, com o seu o Diabo no corpo) e agride, antagoniza, luta. Isso pode levar a excessos por parte do exorcista, já que quando a pessoa tem a certeza de estar praticando um bem as amarras éticas ficam mais fracas. Coisas como violência física e verbal, maus tratos e tortura psicológica facilmente acontecem, pois aos olhos dos presentes não estão fazendo mal a uma pessoa e sim ao Demônio.

Supondo que a pessoa seja apenas portadora de uma doença mental ou esteja sugestionada, (o que é muito comum, pois geralmente quem sofre um Exorcismo é uma pessoa muito católica), os sintomas continuarão, não vão desaparecer, pois não são fruto do demônio, muito pelo contrário, podem piorar diante do estresse e da agressão. Assim, mais e mais medidas são tomadas para expulsar o Satanás imaginário, chegando a extremos como deixar a pessoa amarrada sem comida e água por dias, pendurá-la em uma cruz, espanca-la e outras coisas piores. É nessa que morre gente em Exorcismo e vira e mexe um caso desses acaba ganhando a mídia. Parece pré-histórico, mas acontece. Até hoje pessoas morrem em rituais de exorcismo pelo mundo. Ao olhar os números, podem parecer baixos, mas se comparados proporcionalmente à quantidade de exorcismos que são feitos, são na verdade altos.

Em 2003 um menino autista dos EUA morreu durante um exorcismo, com os padres jurando que não era doença e sim o Demônio. Em 2005 uma freira que teve um comprovado ataque de esquizofrenia morreu durante um exorcismo violento que durou dias. Acontece no mundo todo, inclusive em países civilizados. Em 2010 um menino morreu em Londres também vítima de um exorcismo. Em 2015 uma mulher morreu na Alemanha, em Frankfurt, vítima de um ritual de exorcismo no qual amarraram a coitada a uma cama e batiam em partes do corpo onde acreditavam que o Demônio estivesse alojado. Como a mulher gritava de dor, enfiaram uma toalha na sua boca, que a matou por asfixia.

Um dos casos mais famosos, que inspirou o filme “O Exorcismo de Emily Rose” foi o de Annelise Michael, uma menina alemã, que visivelmente tinha problemas psicológicos, diagnosticada com esquizofrenia. Quando os médicos não conseguiram resolver o problema (que não é algo “100% resolvível”), a família apelou para a Igreja, apesar de ter o diagnóstico médico de esquizofrenia. A menina sofreu quase 70 Exorcismos por mais de dez meses até que um dia que cansou desse tormento, desistiu da vida e parou de comer, o que lhe foi permitido por padres e por seus pais. Resultado: morreu por inanição e tanto seus pais como os padres foram condenados (homicídio) pelo comportamento negligente. Este caso foi amplamente registrado, há áudios disponíveis mostrando alterações de voz e outros sintomas que “comprovariam” a possessão, como este. (spoiler: se deixar para ouvir à noite é muito mais legal).

Aceitar que um ente querido tem uma doença mental que pode incapacita-lo para o resto da vida é muito doloroso, então, em vez de lidar com isso, famílias preferem atribuir a culpa ao sobrenatural, na esperança que esse “mal” possa ser totalmente expulso de uma forma mágica. Diante dessa moeda de troca, a solução imediata do problema, permitem abusos e crueldades acreditando ser para o bem, para salvar a pessoa amada. Assim, esta prática obsoleta continua até os dias de hoje, meio que escondida, afinal, sua filha ter o Demônio no corpo não é algo que se divulgue, que se coloque no Facebook. E, por ser escondida, é mais difícil de se combater.

Ainda que a medicina não explique o caso, isso não quer dizer que a não compreensão médica nos autorize a afirmar que se trata do Demônio. Deveriam fazer mais filmes sobre exorcismos equivocados que prejudicaram pessoas do que esses de ficção onde no final o padre herói salva a família, pois estão incutindo ignorância na cabeça das pessoas. Menos, gente, bem menos. Se o Demônio existisse, ele certamente teria mais o que fazer em vez de entrar no seu corpo ou no de alguém próximo a você – você não é tão importante, muito menos nos seus bens, que certamente tem gente com bens melhores. É hora de falar sobre isso, de acabar com a história errada vendida pelos filmes: Exorcismo é ignorância e, às vezes, homicídio.

Para dizer que eu estou possuída pelo Demônio, para observar que eu fiz questão de escrever “Demônio” com letra maiúscula durante todo o texto ou ainda para dizer que já viu gente postando possessão demoníaca no Facebook: deixe seu comentário.

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Comments (12)

  • Descobri que tem um canal no YouTube de um dito Católico que se diz parapsicologo, hipnólogo e discípulo espiritual do Padre Quevedo e destrincha essa bobagem de gente possuida a torto e a rodo pelo demo e dá alternativas que explicam de forma mais lógica as possessões,sessões mediúnicas ou até a ação do suposto espirito santo;vale a pena mesmo observar que existem religiosos que desmentem essas bobagens e ajudam os irmãos crentes a não se deixarem levar por essas besteiras histéricas.

    • Tem diversas roupagens, diversas alegorias, para qualquer misticismo religioso. Algumas alegorias são mais plausíveis, mais factíveis, enquanto outras são um completo devaneio. Para mim, não faz diferença o tipo de alegoria que se escolha, continua sendo fantasioso de qualquer forma.

  • Isso o e mentira não existe esse negócio de possessão. O diabo tem coisa mais importante para fazer do que isso

    • Suponho que o diabo escolheria umas pessoas mais alto nível para entrar no corpo em vez de caipiras e donas de casa…

  • Era só um bode peludo e feliz, boêmio e sensual…e eles transformaram num demônio.
    Pan foi o único “demônio” grego que não pôde ser transformado num santo.

  • A ignorância humana nunca para de me surpreender… Incrível como o que a medicina não resolve dá sempre aquela brecha maravilhosa-not pra religião!

    • QUE BIZARRO MESMO, QUANTA BOBAGEM , QUANTA MENTE VAZIA,E POBRES COITADOS QUE PASSAM POR ISSO… RELIGIÕES, RELIGIÕES… E IMAGINAR A EXISTÊNCIA DE MILHÕES E MILHÕES Q SÃO CAPAZES DE MORRER E MATAR POR ELAS ME DEIXA TRISTE COM A HUMANIDADE…MTOS ACREDITAM NO Q DIZEM PRA ELAS , NEM QUESTIONAM…

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