Inevitável mentira.

Que minta o primeiro que nunca mentiu. Aproximando-se de uma data onde a mentira corre solta, Sally e Somir discutem sobre a inevitabilidade dela. Os impopulares, esperamos, dizem a verdade.

Tema de hoje: é possível que alguém te coloque numa situação onde você seja obrigado(a) a mentir?

SOMIR

Evidente que sim. A não ser que você queira usar um sentido extremamente literal de obrigação, o que nem tem lógica de discutir, afinal, estamos excluindo exageros como ter sua vida ameaçada naquele momento. Quando falamos de ser obrigado a mentir, estamos falando de situações onde não é o seu instinto de sobrevivência mais primal guiando da situação. Ser obrigado a mentir, neste contexto, é ficar com virtualmente nenhuma solução racional para a situação a não ser contar uma mentira.

Espero que vocês sejam mais espertos do que cair no papo de que “você sempre pode falar a verdade”. Ter cordas vocais e um cérebro capaz de comunicação complexa te permite falar a verdade sempre que quiser, mas se estamos falando apenas de capacidade biológica para tal, do que adiantaria esta discussão? Claro que estamos falando de algo mais complexo do que isso, de alguma situação onde a mentira seja tão mais útil e vantajosa para a situação que a opção de falar a verdade é uma maluquice.

Todos nós temos pelo menos uma memória de uma situação onde ter mentido seria melhor do que dizer a verdade, não? Sim, o contrário é comum também, o que só prova como o assunto é mais cinza do que a Sally vai pintar. Se você consegue olhar para um fato passado onde sabe agora que mentir teria sido melhor para você e para outros, você consegue concordar comigo que eventualmente a mentira é a melhor resposta. Tanto que… foi. Jamais diria que a mentira é sempre a melhor opção, se for para generalizar, eu até concordo que a verdade é na média mais vantajosa para a nossa vida, mas… negar que em algumas situações falar a verdade vai ser tão pior que mentir ao ponto de ser racionalmente inevitável é viver num mundo de fantasia.

Vou usar uma analogia mais concreta para explicar a minha lógica aqui: imagine que você está sobre uma ponte. A ponte não é muito alta, mas uma queda errada pode ser fatal. Você está no meio da travessia, e percebe que na outra ponta, vem um carro em alta velocidade. Nessa analogia, o carro é o problema, óbvio. Você tem que tomar uma decisão, ou deixa o carro te atropelar, ou pula da ponte! Pense um pouco no que você faria e continue lendo quando tiver decidido.

Pensou? Se você tomou qualquer decisão, arriscou-se à toa. Quem disse que a ponte é estreita o suficiente para o carro te atropelar? Quem disse que não dá pra se pendurar na borda ou num dos cabos de sustentação? Quando você limita as escolhas de uma pessoa, até pular de uma ponte parece uma boa ideia. O que a Sally vai fazer com vocês é muito parecido com isso: criar uma falsa escolha. Você pode pular da ponte pelo motivo que quiser, independentemente do carro estar vindo ou não. Mas não é só porque você pode fazer uma coisa que ela tenha alguma lógica. Sim, podemos sempre falar a verdade, mas falar a verdade em alguns casos é pular da ponte sem precisar fazer isso. Oras, então, você pode ser obrigado sim a tomar outra decisão que não seja se jogar no vazio e arriscar se quebrar todo ou algo pior no processo.

Faz sentido, não? E agora, temos que ser menos objetivos: o que configura pular da ponte para uma pessoa não necessariamente é o mesmo que o faz para outra. Tem gente que vai enxergar um perigo incrível na resposta de um “você me ama?”, e tem gente que vai ver a mesma coisa num “eu estou gorda?” ou num “você gostou do seu presente?”. Direito de cada um escolher suas batalhas, e cada um sabe a altura da ponte que vai pular se falar a verdade. Quer ser corajoso e arriscar se quebrar todo lá embaixo? Parabéns, de verdade. Mas, não vamos fingir que as outras pessoas não tenham instintos de preservação, que, aliás, foi o que nos permitiu chegar até aqui como espécie. Podem apostar que somos descendentes dos melhores mentirosos.

A verdade é melhor sim. Não tem o que discutir nisso em linhas gerais. Mas, quando lidamos com as inevitáveis exceções de uma regra dessas, como ignorar que precisamos mentir de tempos em tempos não por vaidade ou covardia, mas por sobrevivência. Vivemos entre outros seres humanos, que tem esse péssimo hábito de não lidar bem com verdades dolorosas. E é muito por isso que mentimos, essa coisa de sempre ser para sacanear e fazer mal é algo que contamos para crianças para elas não abusarem do recurso. Na vida real, mentir por ser a única alternativa aceitável num problema.

Quem ainda não está pronto para ouvir a verdade tende a te colocar numa situação onde mentir é inevitável, quem pula em conclusões precipitadas e age muito impulsivamente costuma te deixar preocupado com o uso indiscriminado da verdade, quem simplesmente não quer viver num mundo onde sua verdade exista vai te punir exemplarmente por isso. Algumas vezes não sabemos como a outra pessoa vai reagir a uma verdade que, francamente, não temos nenhuma necessidade de revelar. Chamamos quem fala a verdade sem controle algum de sincericida por um motivo: a pessoa se coloca em risco frequente por causa disso, e nem sempre é um calculado.

Ok, não dá para evitar todos os problemas com mentiras, na verdade, mentiras tendem a piorar os problemas 99% das vezes, mas… falem a verdade… vão dizer que nunca sentiram na pele o 1% restante? Não é uma obrigação física e coercitiva, mas é toda a lógica do universo convergindo num ponto numa situação específica.

Só estou te dizendo o seguinte: pense um pouco antes de pular.

Para dizer que não acredita em argumento de mentiroso, para dizer que eu fiz disso minha profissão, ou mesmo para dizer que tem dedo e cu mas nunca achou uma boa escolha encaixar os dois: somir@desfavor.com

SALLY

Você acredita ser possível que alguém te coloque em uma situação onde te obriga a mentir?

Não. Mentir é sempre uma decisão pessoal nossa. Ninguém te obriga a mentir, salvo em alguma situação muito bizarra, que foge à normalidade, onde você é rendido com uma arma na cabeça e obrigado a dizer algo em que não acredita, a escolha da mentira reside em você.

Mentimos para salvar nossos pescoços, mentimos para não magoar, mentimos até para evitar problemas. Mas, mesmo com a melhor das intenções, mesmo quando fazemos o bem mentindo, é uma escolha nossa. Ponderamos a relação custo/benefício da verdade e da mentira e escolhemos aquela que nos parece mais conveniente. Chega desse papinho de que o outro te obrigou a mentir, hora de assumir responsabilidades pelas nossas escolhas.

O que quer que a verdade acarrete de ruim, é sempre uma opção. Você avalia e decide se vale ou não a pena dizer a verdade. Não quer contar para a bisavó cardíaca que o gato dela morreu esmagado pela roda de um ônibus com medo dela ter um troço e morrer? Beleza, porém é escolha sua por achar que a verdade faria mais bem do que mal, não obrigação. Sempre há uma escolha, não existe ser obrigado a mentir. Sempre podemos falar a verdade, por mais que ela custe caro no final das contas, a opção da verdade estava lá. Nem sempre vale a pena dizer a verdade, mas a opção sempre estará lá.

E eu já ouvi da boca da Madame aqui de cima essa frase: “Você não me deixou outra alternativa, me obrigou a mentir”. Oi? A verdade é sempre uma opção para aqueles que tem coragem. Mentir é uma escolha, a menos em casos severos de coerção criminosa, que não se aplicam à proposta deste texto. Mas, segundo o Somir, se ele sabe que a verdade vai causar problemas, ele está sendo obrigado a mentir, para não se aborrecer. Eu discordo muito que isso seja uma obrigação. É escolha, e das bem burras, por sinal.

Viver implica em aborrecimentos, desentendimentos e conflitos. É inerente à vida. Não dá para viver fugindo deles. É perfeitamente possível encará-los de frente, lidar com eles e até mesmo resolvê-los, aliás, essa é a coisa digna a se fazer. Fugir de problemas e aborrecimentos só gera mais problemas e aborrecimentos. Às vezes esses aborrecimentos, desentendimentos e conflitos são necessários e acabam até por melhorar a vida de todos depois que são solucionados. No dia em que aborrecimento for coerção inescapável meu peido tem cheiro de lavanda.

Chega a ser uma desculpa até meio infantil: “ela me obrigou”. É algo que uma criança de cinco anos diz no colégio quando quer se safar de algo. Adultos tem livre arbítrio, ao menos os que estão lendo este texto. Então, eu te pergunto, repetindo a proposta do texto, para que não aconteça aqui a mesma canalhice que aconteceu na semana passada: alguém TE obriga a mentir? TE OBRIGA. A VOCÊ. Alguém TE obriga a mentir? (não quero saber o que o brasileiro médio faz). Não. Ninguém te obriga a mentir. Você mente sabendo que existe a outra opção, apenas escolhe a mentira. E talvez, dependendo do caso, a mentira seja mesmo a melhor saída, não nego que às vezes é melhor mentir, mas sempre é uma escolha.

Mesmo que você pense em uma relação de subordinação, onde um chefe te “obrigue” a mentir, você verá que a verdade ainda é uma opção: você pode se recusar a mentir e arcar com o risco de ser demitido ou até mesmo se demitir. A opção existe, se é ou não o melhor a ser feito, só você pode avaliar, mas obrigado a mentir você não é. Podem até te pressionar para que o faça, mas a palavra final é sua.

A menos que você seja um inimputável (criança, deficiente mental e similares), você tem livre arbítrio para pesar as consequências de mentir e de falar a verdade e escolher aquilo que você entende ser melhor. E mesmo assim, quem tem filhos sabe que, mesmo tentando impedir, criança solta umas sinceridades, apesar de ter sido instruída a não fazê-lo. Todo pai carrega ao menos um vexame fruto do sincericídio de um filho pequeno, até criança acaba tendo a opção da verdade. O que quero dizer é que o fato da verdade ter uma consequência ruim não te obriga a contar uma mentira, existe a possibilidade de encarar de frente essa consequência e lidar com ela.

Ninguém te obriga a fugir de nada nessa vida. Encarar ou se esquivar é decisão sua. Além disso muitas pessoa depreendem desdobramentos que sequer existem: “se eu falar a verdade no trabalho vou ser demitido, se eu for demitido não ganho dinheiro, se eu não ganhar dinheiro meus filhos passam fome”. Não é bem assim. Falar a verdade nem sempre gera demissão (depende mais da forma como se fala) e ser demitido não implica que a família morrerá de fome. Não adianta fazer conjecturas absurdas para justificar uma mentira, como se ela tivesse consequências impossíveis de serem suportadas por qualquer ser humano. Mesmo pessoas que passaram por tortura escolheram entre mentir e falar a verdade, tenha vergonha nessa cara!

Não existe quem “não consiga” falar a verdade. A pessoa consegue sim, apenas não o quer, por uma série de motivos, justificáveis ou não. Não existe uma incapacidade física ou psicológica que te obrigue a mentir, o que existe é delegar para o outro uma responsabilidade que é sua, da qual você não quer se fazer cargo. Gostando ou não, a decisão está em você, não nos outros, não em fatores externos, não em motivos de força maior. Em última instância, mentir depende única e exclusivamente de uma avaliação sua, de uma escolha.

Para dizer que os outros te obrigam, para dizer que as circunstâncias te obrigam ou ainda para dizer que a vida te obriga: deixe seu comentário.

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Comments (5)

  • Mentir é uma escolha sim, claro! Tenho que assinar em baixo de tudo que você argumentou.
    O contrário é uma forma cômoda de justificação.

  • Muitas vezes fica mais fácil acreditar na metira. Ja falei a verdade e a pessoa não acreditou de jeito nenhum. Depois inventei uma história e deu certo. Nesse caso me senti obrigado a mentir.

    • Obrigado? Ué, foi escolha sua! Podia bancar a verdade e se a pessoa não acredita em você, sinceramente, não sei por qual motivo você deve continuar perto dela ou se importar com alguém que não confia em você.

  • Ninguém é obrigado a mentir, mas é bem mais comodo. Dezembro é o mês da mentira. Eu minto enxaqueca pra não ir no amigo oculto, eu minto que vou tá trabalhando pra não ir em festa de Natal. Eu anúncio produto mais caro pra poder dar ” desconto” e vender no preço real. Se falar a verdade causa polêmica e causa antipatia, mentira aí vou eu!

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