Na madrugada de ontem para hoje, mais um massacre numa cadeia do Norte. O PCC aparentemente revidou as 56 mortes em Manaus com 33 mortes na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo em Boa Vista, Roraima. A guerra entre PCC e Comando Vermelho (e seus associados) não é notícia nova, já tínhamos até falado disso ano passado. Todo mundo já sabia, mas não fizeram nada para evitar. Mas… tinha algo para fazer?

Tinha sim, tinha que ter voltado no tempo e não deixado as facções do crime organizado chegarem nesse tamanho. Tinha que ter montado um sistema prisional minimamente eficiente que não incentivasse a piora daqueles que são presos, tinha que ter pensado melhor antes de entulhar as cadeias com gente que nem precisaria estar ali… tinha um monte de coisa pra fazer. Mas nenhuma delas foi feita. O que nos deixa na situação atual. Então, reconstruo a pergunta assim: agora, com a merda feita, tem o que fazer?

Eu sou partidário do “provavelmente não”. Tenho informações privilegiadas que mesmo no interior de São Paulo, nos anos 80 e 90, as cadeias já estavam totalmente perdidas pelo poder público. Carcereiros confessando que se não deixassem entrar drogas, a “cadeia caía”. Já vivendo a realidade de que aquele grupo de presos não estava sob controle de ninguém, talvez nem mesmo deles. E é isso que os cariocas sacaram primeiro e depois foi aperfeiçoado pelos paulistas e virou a norma pelo país todo: já que o Estado não é capaz de organizar porra nenhuma, que os presos o fizessem. E aí, o poder do caos que os presos tinham dentro cadeia começa a ficar menos e menos caótico.

Funcionários públicos levam presos recém-chegados para o líder da facção dominante na cadeia para que eles escolham seu destino. E esses líderes não precisam mais exercer apenas o poder da intimidação e do terror, como o sistema entregou o controel, as facções podem agir até de forma misericordiosa se quiserem. Muito cuidado com a ideia de que PCC, Comando Vermelho e seus parceiros e variantes são só esse grupo que causa massacres nas cadeias. São sistemas que vivem de seus membros, com mensalidades e serviços agregados. Mas como já partem de um princípio de marginalidade das leis “comuns”, não é problema nenhum mandar recados com dezenas de mortos.

Afinal, não é como se o mundo fora da cadeia se importasse mesmo. O discurso do governador do Amazonas não me deixa mentir. Curioso e sintomático como a sociedade brasileira terceirizou o sistema prisional para os próprios presos, e eles parecem ter liberdade total para tocar as coisas como quiserem. Sistemas muito falhos são fáceis de serem abandonados. É por isso que eu me pergunto se tem mesmo algo para ser feito para corrigir esse problema: porque o primeiro passo seria tomar de volta o controle de algo abandonado há várias décadas. Não é como se o Estado tivesse que agir de dentro do sistema para resolver alguma coisa.

O Estado teria que retomar o controle antes de ter o poder de fazer qualquer coisa. Caso não tenha ficado claro: o Brasil perdeu a capacidade de gerenciar os próprios presos, faz tempo. E é mais fácil fingir que isso não aconteceu. PCC e afins são secretarias não-oficiais que organizam e legislam sobre o que acontece com quem vai preso no país. Ser preso é meio que ser deportado para um novo país, com novas leis e estrutura de poder. E temos vários exemplos históricos de que povos adoram deportar seus presos para outros países, aconteceu com o Brasil na época da colônia, a Austrália era uma colônia prisional do império britânico…

Posso estar enganado, mas toda a reação que eu vi sobre o massacre de Manaus e agora em Roraima soa quase como se fosse uma tragédia em outro país, um atentado em solo estrangeiro que não gera identificação suficiente com a população local. Por que se importar com isso se os nossos presos não fazem parte do país? Até a droga é mais barata dentro da cadeia, meio que num esquema “duty-free” na fronteira entre Brasil e sistema prisional.

De uma certa forma, é como se nós aqui estivéssemos lidando com nossa própria crise de imigração: quem vai preso é mandado para o país dos presos e depois temos problemas sérios para integrar esses estrangeiros locais no Brasil. Do jeito que a coisa vai, nesse fracasso absoluto, seria até mais humano soltar 99% dos presos de uma vez só e tentar a sorte integrando eles de volta no país. Mas evidente que o brasileiro não quer esse influxo de “imigrantes” no seu mundinho. Eu, mesmo vendo a merda toda, não quero. Ninguém quer pagar o preço por décadas, quiçá séculos de descaso.

É como se os presos brasileiros estivessem presos mesmo porque ninguém sabe o que fazer com eles. Eles não deixam de ser a cara feia de uma sociedade escrotamente desigual, varridos para debaixo de um tapete imundo pelo máximo de tempo possível… mas cada dia que passa, o tapete fica mais alto e não conseguimos mais fingir que aquela sujeira toda não está lá. Aliás, na falta de qualquer apoio, o que estava embaixo do tapete também ficou incomodado e agora perdeu completamente o pudor de fazer sua limpeza interna. Se estamos superlotando esse novo país com nossos rejeitados, era de se esperar que seus governantes fizessem alguma coisa para reduzir a pressão. Uma carta poderia mandar uma mensagem, mas assassinar dezenas faz o mesmo e reduz a superlotação.

Oras, se é errado fazer isso aqui no Brasil, não é no outro país. Não deixamos eles decidirem como se organizar porque era mais fácil? Eles aprovaram sua Constituição, e ela não comunga com os conceitos de direitos humanos que fomos acostumados a entender como razoáveis. Pudera, naquele país infernal, superlotado e desigual… tem um Afeganistão dentro de cada cadeia brasileira, e sequer temos embaixadores tentando melhorar essa relação. No máximo acordos escusos como os da empresa que recebia milhões do governo para não cuidar dos presos amazonenses.

Por isso eu continuo achando que não tem mais o que fazer. Uma opção seria integrar os estrangeiros de volta ao país, mas a população não gostaria. Outra seria declarar guerra contra a nação que nos ameaça, mas aí é o governo que não gostaria, afinal, é mais fácil e lucrativo continuar os acordos comerciais com esse povo forçosamente estrangeiro.

Estamos à merce da solução que a guerra civil no país dos presos vai nos trazer. Quem não age fica na mãos dos outros…

Para dizer que eu roubei o desfavor da semana (ah, tem mais), para dizer que sempre achou Norte outro país, ou mesmo para dizer que quer que eles se matem mesmo: somir@desfavor.com

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Comments (13)

  • Que problema, hein!? Mas já estamos acostumados a abrir o novo ano com misérias, violência, tragédias… A gente já começou errado adotando um sistema prisional que tem o efeito reverso: ao invés de reeducar para reintegrar, aprisiona e oprime para formar (novos e cada vez piores criminosos). Porque não qualificá-los para o mercado, educa-los para a sociedade? Isto é possível!

  • A coisa ta num nível de foda se tão grande que o poder público nem está se dando ao trabalhando de deportar estrangeiros que cometem crimes e são condenados.
    Vi em algum noticiário que na rebelião de Manaus um dos envolvidos era um nigeriano que estava de posse de uma metralhadora e duas pistolas. Tinha sido preso por tráfico.
    Fiquei uns minutos pensando porque caralhos não deportaram esse cidadão? Nem dos nossos podemos cuidar, vamos gastar energia e dinheiro com estrangeiros?
    Claro que tem a questão de tratados internacionais de extradição, mas gente… Na nossa situação leva esse cara e larga lá no aeroporto da Nigéria.

    • Acho mais provável que seja desorganização mesmo. Ninguém tem controle de porra nenhuma, ninguém sabe nada, nem quer saber. Pessoas incompetentes, mal pagas ou apenas corruptas fazem um trabalho porco.

  • O pior é que eu acredito (não posso afirmar) que muitos desses presos nem tenham mais condições de serem reintegrados à sociedade. Como que um indivíduo que estupra, tortura, mata e esquarteja com uma serenidade assombrosa, como algo rotineiro, pode vir a ter uma vida normal (independente de ele ser “vítima da sociedade” ou não)? Não sei. Mas alguém consegue imaginar um dos líderes dessas organizações criminosas na fila para arranjar emprego ou na fila do pão? Sem chance. Eu no máximo consigo enxergar eles como pastores evangélicos pregando em algum presídio por aí.
    Tem mais.
    Toda tentativa de consertar um erro muitas vezes só o piora, mas essa é a única opção. Não dá pra começar tudo do zero. Não dá pra sair por aí implodindo cadeias com os presos dentro porque seria desumano — e porque o problema não se restringem só aos presídios…
    Tudo isso é um sintoma dos inúmeros problemas que temos neste país.

    • Não tem não. Pelo que passam lá dentro, ficam totalmente brutalizados, e qualquer um de nós ficaria. Estupro e tortura diários, falta de comida, privação de sono, agressão física, tortura psicológica… tudo isso como regra. Não há ser humano que possa sair são ou recuperável.

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