Relatos de um médium cético.

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Relatos de um médium cético.

Em uma das postagens do blog que não me lembro qual, alguém comentou que queria ter presenciado um debate entre o Somir e eu sobre algum assunto espiritual. Sou amigo do Somir desde o primeiro dia que pisei em Campinas e de lá pra cá foram horas e horas conversando sobre religiosidade, ateísmo, ceticismo e assuntos do gênero. Ele já deve ter ouvido a maior parte dos relatos que escreverei aqui, mas de um debate em específico me lembro bem até hoje. É sobre isso que escreverei.

II – A cigana

O ano era 2005 e eu estava no segundo ano da faculdade de jornalismo. Sinceramente, foi um dos piores anos da minha vida já que passei boa parte dele indo e voltando de hospitais por causa do meu pai. Meu pai era obeso e havia desenvolvido diversas doenças por causa disso, uma dessas doenças se chama diverticulite. A diverticulite causa graves sangramentos ao longo do aparelho digestivo e no meio daquele ano meu pai teve uma crise hemorrágica. Ele quase faleceu e minha família ficou muito abalada por causa disso, mas aos poucos nós íamos nos adaptando com a situação. Meus irmãos só vinham para Campinas para ficar no hospital com meu pai, então eu passava longos tempos sozinho em casa, esperando notícias dele. Como a casa ficava perto de um shopping, eu frequentemente me encontrava com Somir. Quando eu precisava encher a cara para desabafar, Godzila e Alicate vinham de tiracolo e juntos varávamos a noite bebendo e jogando vídeo game. Nesses momentos eu conseguia esquecer todos os problemas que estavam acontecendo, mas a situação do meu pai sempre acava surgindo em algum momento. Fui numa dessas noites que o Godzila sugeriu:

_Cara, tô indo em uma mãe de santo que tem me ajudado muito. Ela trabalha com uma entidade que chama Maria Padilha e outro dia eu duvidei dela. Sabe o que aconteceu? Comecei a suar, sentir meu coração bater mais forte e o estômago revirar. Do nada parou e ela me perguntou se eu ainda duvidava dela. Foi tenso.

Somir e Alicate começaram a sacanear ele na hora e eu fui na onda, mesmo já tendo tido as experiências que relatei no texto anterior. Falamos que ele era muito influenciável, que essa tal de Maria Padilha não existia e que macumba era coisa de pobre e favelado. O tempo passou, o assunto morreu e voltei a ficar sozinho em casa. Certa noite fui passear no shopping e voltei para casa quase meia noite. Me deitei na cama e não consegui dormir. Eu sentia uma presença estranha em casa e estava com muito medo de sair debaixo do lençol. Senti uma respiração na minha nuca, juntei o pouco de coragem que me restava e me virei. Uma mulher estava deitada do meu lado e seu perfume de rosas preenchia o quarto. Ela era muito bonita, se vestia com roupas elegantes e me olhava com muita seriedade:

_Você tem brincado com o meu nome não é mesmo? – ela perguntou.

Apesar de naquele momento não ligar aquela aparição com a brincadeira que havia feito com o meu amigo, senti um arrepio na espinha. De forma delicada, ela colocou a mão no meu rosto e falou:

_Um dia você vai se arrepender por ficar brincando com coisa séria.

Depois disso ela sumiu e naquela noite não consegui mais dormir. No raiar do dia, a primeira coisa que fiz foi ligar para o Godzila:

_Cara, preciso falar com a tal mãe de santo urgente!

Peguei um ônibus e fui encontrá-lo no centro da cidade. Andamos até o Cambuí, um bairro nobre de Campinas e paramos na frente de uma casa bem simples, em total contraste com o resto do bairro.

_Não sei se ela vai estar aí e nem se vai nos atender, vai depender da sorte já que não avisamos que viríamos. – avisou Godzila.

Ele bateu palmas e um garotinho imediatamente colocou a cabeça pra fora. Pedimos que fosse chamar a mãe de santo e em alguns minutos ela saiu, vindo diretamente na minha direção:

_Ela me avisou que você viria. – disse a mãe de santo, me pegando de surpresa. _Quem você viu era uma cigana?

Concordei e expliquei tudo o que havia acontecido, pedindo desculpas por ter feito uma brincadeira com o nome da Maria Padilha.

_Não vou te falar se quem você viu é mesmo a Maria Padilha, você tem que descobrir isso sozinho. Uma coisa lhe digo meu filho, sua mediunidade está descontrolada e mais parece um farol aceso. Um farol aceso serve tanto para bons marinheiros quanto para piratas, então você precisa aprender a controlar essa luz que irradia de você. Você terá que fazer uma escolha entre deixar fluir sua mediunidade ou trancá-la de uma vez por todas. Qualquer opção que fizer, não terá como voltar atrás.

Então ela entrou na casa e pediu que fôssemos embora, explicando que estava parando de trabalhar como mãe de santo e que aquela era uma de suas últimas consultas. Naquela semana me encontrei com Somir e contei pra ele, o resultado não foi como eu esperava:

_Você é tão influenciável quanto o Godzila. Eu também brinquei com o nome dela e nem por isso ela apareceu na minha cama. – falou Somir.

_Cara, só sei que não brinco mais com isso.

_Esses espíritos não tem mais o que fazer não? Ficam aí policiando quem brinca com o nome deles, dizem que fazem e acontecem, mas na prática não servem pra nada. Uma mulher vai sempre lá em casa fazer trabalho espírita com minha mãe, mas nunca fala nada relevante. Nunca baixa o Einstein ou algum cientista morto que fale alguma coisa científica, é sempre um blablablá místico sem valor algum.

_Sei lá se eles são úteis, mas foi isso que aconteceu comigo.

_Acredito em você, mas tenho certeza que foi só um sonho. A ciência já consegue ver coisas nanométricas e não consegue ver espíritos, mesmo assim um monte de gente acredita neles. Deus, espírito, terra plana ou cientologia é tudo farinha do mesmo saco, acreditar nesse tipo de coisa é regredir como ser humano.

_Já eu acredito que a ciência pode complementar as religiões sem necessariamente negá-las. Acho que são coisas que correm paralelas.

Somir ficou nervoso e respondeu:

_Você tem noção do que tá falando? Galileu Galilei morreu por causa dessa porcaria de Igreja católica. Pelo visto morreu em vão, já que os ignorantes até hoje insistem em defender que a terra é plana. A ciência nunca vai ser amiga da religião, a ciência veio para matar Deus.

_E a gravidade? Não se vê e não é compatível com a mecânica quântica, mesmo assim você acredita.

_Não vejo, não posso provar plenamente, mas posso testar mil vezes que terei resultados muito parecidos. Essa é a diferença com a pseudociência chamada espiritismo, que não pode ser testada e mesmo quando é testada possui resultados irrelevantes. Além disso o pouco que conseguem “provar” o fazem por meio de dogmas, que não podem ser contestados. Na ciência tudo pode ser contestado, contanto que existam provas suficientes para isso. Se um dia provarem empiricamente que espíritos existem, eu posso até mudar de ideia sobre o assunto.

_Somir, você anda lendo muito Nietzsche.

_E você anda lendo muito Kardec.

Continuamos bebendo e discutindo o resto da noite, sem chegar a lugar algum. Mesmo com pensamentos diferentes, não nos matamos, nem nos odiamos. Pelo contrário, cada debate de ideias divergentes nos tornava mais amigos em uma época que me foi muito solitária. Verdadeiros amigos são assim, ficam juntos na bad e ainda arranjam tempo pra tirar sarro um do outro.

Naquela época minha mediunidade sempre ficava mais forte de noite, quando eu beirava entre o despertar e o sono. Nesse momento, parecia que um rádio se ligava e eu ficava ouvindo diversas vozes, mas sem conseguir definir exatamente o que falavam. Eu captava uma palavra ou outra, mas nunca conseguia formar frases que fizessem sentido. No começo isso me deixava com insônia, mas fui me acostumando e em pouco tempo escutar as vozes era como contar carneirinhos para dormir.

Porém, sempre que eu falava pro Somir sobre o assunto, ele descarrilhava termos céticos e eu ficava mais tranquilo. Para terem uma ideia do quanto conversamos, em 2005 eu conversei mais com Somir do que com meu próprio irmão, que morava na mesma casa que eu, mas nunca estava lá. Minha irmã por outro lado morava em São Paulo e não nos dávamos muito bem quando crianças/adolescentes. Foi durante as doenças de nosso pai que fomos nos reaproximando, ficando amigos novamente. Nessa época que ela me disse ser médium desde criança, que sempre via e ouvia pessoas do lado de lá, mas que evitava falar por causa do pai.

Descobrir que minha irmã era médium me deu um certo conforto por saber que eu não era o único, que tinha mais alguém na família passando pelos mesmos conflitos que eu passava. Talvez por isso, numa outra noite solitária, eu estava lá na casa tentando dormir, quando começo a escutar uma procissão. Olho para a porta e várias pessoas começam a entrar, formando uma corrente de oração dentro do quarto. Na ponta da corrente estava minha irmã, que veio falar comigo:

_Mano, se você quer aprender sobre mediunidade, precisa ler O Livro dos Espíritos.

Enquanto as outras pessoas ficavam rezando, minha irmã insistia que eu lesse o livro. Porém não li, até que os anos se passaram e fui conhecer o terreiro. Em uma das primeiras visitas que faço, a preta velha com quem eu conversava me pergunta:

_Então filho, você já leu O Livro dos Espíritos? Precisa ler, precisa estudar, só assim vai entender como trabalhar com a mediunidade.

De tanto insistirem acabei cedendo e peguei o livro emprestado. Li de cabo a rabo, mesmo assim não entendi muito bem porque haviam me pedido tanto. Pouco tempo depois, comecei a aprender a incorporar os guias e tudo foi fazendo sentido. Me abri pro caboclo, depois pro preto velho, depois pro marinheiro, aí veio o exú e todas as outras linhas. Uma das últimas a se apresentar foi a pomba gira, que chegou de mansinho, com um perfume que preenchia o ambiente. Não era Maria Padilha, mas era uma cigana que trabalha na mesma linha energética.

Após conhecer todos meus guias, começou meu processo de arrependimento por cada erro cometido no passado e no presente. Hoje em dia entendo porque tem gente que tem tanto medo de se envolver com espiritismo, já que os guias espirituais não possuem papas na língua e muitas vezes falam o que você não quer ouvir. Tive que escutar muitas verdades sobre mim mesmo, tive que engolir meu próprio orgulho várias vezes e tive que provar a mim mesmo que eu não estava fingindo incorporar.

Meu ceticismo com minha própria religião foi incentivada pelos guias, que me apoiavam na decisão de sempre duvidar das coisas. Depois de tudo que passei, Maria Padilha estava certa. Eu me arrependi de ter duvidado tanto, de ter sido arrogante com minha própria mediunidade. Se eu tivesse aceito com mais naturalidade desde o início, tudo teria sido mais fácil.

Por: Tender

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Comments (7)

  • Cara, você é fera! Continue escrevendo estas narrativas que contam experiencias misticas. Esclarece muito coisa! Eu também teria muito o que conversar com o Somir sobre coisas, como Teologia, Sociedades Secretas, Iluminatti, Nietzche (e outros hiperbóreos). A moral do seu post é clara: não brinque com coisa seria. Conheço casos semelhantes aos seus.

    Esta questão de não aparecer para os 100% céticos é que talvez eles não se preocupem em convencer quem mesmo tendo provas, não crêem. Não é o caso do Somir, que se encontrar uma comprovacao científica, passa a acreditar. Sou ateu. Não creio no deus da Bíblia: o deus vingativo, ciumento, violento, alfaiate e cozinheiro, mas sei que existe uma Forca causadora de tudo o que há, inclusive seres extra terrenos que deitam na cama do cetico e pede respeito.

    Aguardo com viva expectativa cenas dos próximos capitulos. Sucesso, Tender!

  • Caramba, excelente. Li este e depois fui ler o primeiro. Escreves muito bem, realmente!!!
    Sobre a questão da mediunidade, é realmente complexo aceitá-la… as vezes ela me assusta muito e fico pensando se não é apenas a minha imaginação.

    • obrigado. já pensei muito ser minha imaginação e durante 2 anos no terreiro achei que estava enganando a mim mesmo e aos outros com as incorporações. nos proximos textos falarei um pouco sobre isso, em como fui descobrindo pouco a pouco sobre minha mediunidade. como fui me testando para descobrir que o que eu passava era verdade e coisa e tal.

    • nunca joguei e pretendo nunca jogar. no terreiro é meio que proibido brincar com essas coisas, já que abre portas para espíritos que não são sérios. brincar com ouija, cartas de taro ou qualquer tipo de brincadeira é passível de bronca e até mesmo expulsão da casa. não recomendo usar esse jogo sem ter certeza absoluta do que esta fazendo.

  • Eu sou exatamente meio a meio de crer e duvidar, o que eu queria saber mesmo de coração é por que motivo essas entidades não aparecem pra quem é 100℅ cético?

    • com relação a isso, a única explicação que me foi dada é a afinidade. os espíritos se ligam a nós por afinidade e cada pessoa desenvolve sua mediunidade em menor ou maior grau. dessa maneira, os espíritos, mesmo que sejam cientistas, não podem sobrepor a inteligencia do medium e nem interferir no livre arbítrio das pessoas. o cetico não ve pelo simples fato de nao querer ver e assim bloquear seu mediunidade interior. meu ceticismo pode ter me salvado de muitas coisas, inclusive de ter me relacionado com mediuns ou pais de santo mal intencionados. enfim, cabe a cada pessoa no que quer acreditar ou não.

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