Relacionamentos, como qualquer outra coisa dependente de pessoas, não são perfeitos. E com falhas, vem a possibilidade de que um faça mal ao outro, deixando feridas emocionais no processo. Sally e Somir discutem a extensão da capacidade humana de perdoar e manter o relacionamento. Os impopulares cutucam a ferida.

Tema de hoje: existem feridas incuráveis num relacionamento?

SOMIR

Não. O que não quer dizer que eu defenda ou ache bonito perdão em todos os casos, mas deveria ser óbvio para todos nós que não é nosso conjunto de valores pessoais que regem o mundo. Uma das coisas mais difíceis de se entender na vida é como outra pessoa pode chegar a uma conclusão diferente da sua partindo das mesmas bases, e eu sei que estou comprando uma briga argumentativa bem complicada aqui por tentar expor essa situação, mas quem disse que teria de ser fácil?

E no plano concreto, o que eu estou dizendo aqui é que o ser humano tem uma capacidade infinita de perdoar violências, traições e abusos em geral. Que não existe uma trava mágica, uma linha pré-definida de quanta dor uma pessoa pode aguentar e ser capaz de cicatrizar as feridas para manter um relacionamento. Por incrível que pareça, pessoas diferentes entendem o mundo de forma diferente. O que é inaceitável para você pode não ser para o outro.

“Mas está errado quem perdoa uma traição ou uma violência física!”, você pode pensar. E eu concordo, concordo de verdade. Eu tenho a minha linha do que configura uma ferida incurável, assim como você tem a sua, mas tenho certeza que ela não é a mesma para cada um de nós. Tem quem perdoe o que consideramos imperdoável, tem quem elimine um relacionamento da sua vida por motivos que consideramos “leves”. Tem de tudo. Sally espertamente vai tentar te fazer responder a pergunta se para VOCÊ tudo é perdoável, sob o risco de parecer doente da cabeça ao não concordar com ela, mas se você souber enxergar além disso, vai perceber o verdadeiro ponto da discussão de hoje: a capacidade humana de se adaptar.

Eu não admito ser taxado como alguém que perdoa qualquer tipo de abuso só por estar dizendo que no quadro geral todo abuso é perdoável. Caso todos nós tenhamos entendido o que está em discussão aqui, espero que você também não se deixe levar pelo medo de ser julgado erroneamente por uma análise lógica sobre a realidade. É quase como ter medo de ser considerado nazista só por ter mencionado que o Nazismo existiu… francamente, quem cair nessa armadilha argumentativa nem merece ainda estar acima dela.

Se a capacidade humana de perdoar não fosse infinitamente elástica, não existiriam diferenças ou surpresas possíveis nesse departamento. Somos bilhões, cada qual com seus valores e julgamentos sobre o que configura incômodo ou mágoa permanente. Muita inocência achar que todo mundo reage com a mesma intensidade que você em todos os aspectos da convivência. O que configura uma ferida já é diferente entre pessoas. Quanto mais brutalizada a pessoa, menos ela reage à violência, contra ela e contra outros. Não é à toa que existe a expressão “problemas de primeiro mundo”, coisas que só são problema para quem tem a possibilidade de se preocupar com isso.

Vivemos falando aqui sobre o que julgamos exagerado ao considerar uma violência, contra uma cultura de vitimização e supervalorização dos danos do discurso livre: não é o fato de eu achar incoerente que me impede de entender que tem gente mesmo nesse mundo que se sente terrivelmente violada por ouvir uma piada, por exemplo. Eu só traço a minha linha do que é aceitável depois da dela e argumento que o mundo está melhor se mais pessoas concordarem com a minha definição do que é ofensivo. Não preciso achar que a pessoa está mentindo ou fingindo quando discorda de mim, podemos ter uma desavença honesta sobre valores pessoais.

Porque pessoas são diferentes. O inaceitável é uma construção humana assim como o senso de justiça, moralidade e ética. Estamos melhores com esses conceitos, mas eles são abstratos. A maior parte dos nossos problemas sociais vem justamente dessas diferenças. E até mesmo pessoas traumatizadas conseguem manter relacionamentos com quem as traumatiza, tenha em vista a imensa maioria das relações entre pais e filhos. Não existe um padrão absoluto do que é perdoável ou não, porque os padrões são baseados em análises abstratas de fatos concretos.

Por mais bizarro e absurdo que te pareça algo que uma pessoa faça para a outra, violências terríveis e traições gigantescas, ainda sim não existe no nosso código genético uma trava para o que pode ser entendido através do pensamento abstrato. O corpo reage a uma violência, física ou psicológica, mas depois do instinto fazer o seu papel, inclusive criando traumas e medos duradouros, a sequência das suas ações ainda está atrelada a alguma forma de racionalização sobre o acontecido. E é aí que existe o tal do perdão infinito. O que configura um relacionamento saudável difere enormemente entre as pessoas, até porque o simples conceito do que é saudável emocionalmente depende de abstrações.

Não adianta teimar: tem gente que infelizmente vai perdoar agressões que soam imperdoáveis para a gente, e provavelmente somos capazes de perdoar agressões que seriam imperdoáveis para outros. E talvez descubramos no futuro que o que aceitamos hoje seja nocivo para nossa vida, ou que fomos duros demais no calor do momento. Ninguém está imune a mudar de visão sobre as coisas com o passar do tempo, e sinto informar que não existe nenhuma obrigação cósmica de melhorarmos como pessoas. Até porque o conceito de melhor é… adivinhe só, abstrato.

Repito que a coisa mais difícil de se pensar é como o outro vê o mesmo fato concreto que você e chega a outra conclusão abstrata. A quantidade de variáveis é tão imensa e os resultados alheios tão improváveis que mexe com nossa própria percepção do que é a realidade. E eu sei que isso é incômodo, mas não é o fato de ser incômodo que torna menos provável, não? Não existem feridas incuráveis em nenhum relacionamento, apenas a escolha do que o fato concreto vai gerar de percepção abstrata. O que eu argumento aqui é que somos mais livres ainda do que parece, livres inclusive para fazer escolhas terríveis… mas, se pararmos pra pensar, muito do que consideramos justo e igualitário hoje em dia já foi impensável para quem veio antes. Funciona para os dois lados, justamente porque não tem um padrão absoluto.

A realidade pode ser absoluta, mas só quando não estamos olhando para ela.

Para dizer que vai ler o texto da Sally para entender o tema, para dizer que eu forcei a barra, ou mesmo para dizer que você sim é baliza para o aceitável no universo: somir@desfavor.com

SALLY

Existem feridas incuráveis em um relacionamento?

Sim, claro que sim. Quem Somir pensa que é para dizer aos outros que, com certeza absoluta, tudo, qualquer coisa, independente das sequelas, independente da sua história de vida, pode ser curado? Podem existir feridas incuráveis sim, pessoas tem limites sobre o que podem e o que querem superar.

Confesso que quando o Somir sugeriu este tema eu fique chocada. Não me passa pela cabeça que alguém possa sequer pensar em tolerar e superar tudo em nome do “amor”. Uso aspas aqui pois não acredito que isso seja amor. E dessa vez não vai ter saída retórica, gincana argumentativa, relativização até confundir o leitor: o que estamos te perguntando é se você é capaz de manter um relacionamento saudável, intacto, com um ferida cicatrizada não importa o que te façam.

O que para uma pessoa pode ser perdoável, para outra pode ser insuperável, seja por falta de vontade de superar, seja por incapacidade de superar. Isso depende de uma infinidade de variáveis físicas, emocionais e até sociais. Sei que não é isso que a maioria quer ouvir, mas amor não supera tudo. Uma pessoa que, por “amor” afirma que pode curar qualquer feria na verdade tem é problemas de autoestima.

Não vou nem pelo caminho óbvio, apontando deslealdades severas como traição. Vou pela parte concreta. Vamos pensar no caso Maria da Penha, cuja história de relacionamento originou a lei. O marido batia nela sistematicamente. A ameaçava. Tentou mata-la de diversas formas e em uma dessas tentativas, acabou deixando-a em cadeira de rodas para o resto da vida. Francamente, nem a ferida física curou, ela não se mexe mais da cintura para baixo, vocês, em sã consciência, acham que é possível retomar um relacionamento saudável com uma pessoa assim? Vocês acham que essa ferida é curável?

Existe uma linha que, se cruzada, desanda o relacionamento. Onde esta linha se localiza é totalmente subjetivo, cada um estabelece (e muda) o local onde ela será traçada. Mas que ela existe, ela existe. Há uma linha que se cruzada não pode mais ser revertida: em pessoas mais inteiras é por escolha, por total falta de vontade, ao decretar que aquela pessoa não vale a pena e, em pessoas menos inteiras, é por exaustão, por simplesmente não conseguir mais ficar com o outro.

Não é possível que alguém afirme que, não importa o que a outra pessoa te faça, sempre pode ser resolvido, superado, curado. Francamente. Pergunte a uma mulher estuprada e espancada pelo marido se esta ferida cura. Pergunte e a uma mulher cujo marido não queria ter um filho e chutou sua barriga até ela abortar se esta ferida cicatriza. Pergunte a uma mulher que dedicou sua vida toda a um homem e depois descobriu que ele tinha uma segunda família se, por mais que os anos passem, esta ferida cura.

Existem limites no que toleramos que nos façam. E, que bom que existem! Sinal de que nos amamos e nos respeitamos. Pensar que amor supera tudo é coisa de menininha de 13 anos de idade ou de gente que está em negação. Existem feridas que nunca cicatrizam. Existem pessoas teimosas, na verdade, dependentes emocionais, que insistem em continuar na relação mesmo com esta ferida aberta, mas isso não quer dizer que a ferida cicatrizou, quer dizer que a pessoa está em uma relação que lhe gera extremos sofrimento e desconforto pelo simples medo de sair dela.

O que dizer de pessoas que matam os filhos do cônjuge? Acontece aos montes, pergunte aos Nardoni. Geralmente são filhos de outro casamento, que causa ciúmes ou transtornos. Você sinceramente acha possível que se o seu parceiro matar um filho seu essa ferida cicatrize e o “amor” vença? Você acha viável manter um relacionamento saudável com quem matou um filho seu? Dói pensar que todos nós temos uma cota de cagadas que podemos fazer na vida e que depois disso a porta se fecha, pois isso implica em uma tremenda responsabilidade, mas, ao contrário do lar em que o Somir cresceu, as pessoas tem limites do que podem aturar e atos tem consequências.

Esse pensamento permissivo de “se a pessoa me ama ela sempre vai perdoar” ou de “tudo pode ser curado desde que se trabalhe nisso” é doentio. Se, de alguma forma você teve esse exemplo dentro de casa ou aplica isso ao seu relacionamento eu te alerto: pare agora. Uma hora você cruza a linha e a conta chega. E essa conta é cara, muito cara, você não vai poder pagar. Eu sei que é clichê, mas, dada a obviedade do tema de hoje, sou forçada a dizer: por mais que a pessoa te ame, ela se ama também, e uma pessoa que se ama não tolera tudo, não perdoa tudo, não consegue superar determinadas feridas.

Existem sim pessoas que conseguem se anestesiar e empurrar com a barriga uma vida onde apenas toleram outras, mas isso é algo muito diferente de cicatrizar uma ferida. Isso é enterrar uma ferida bem fundo, varrê-la para debaixo do tapete, fazer uma gincana mental para ignorá-la. A ferida não cicatriza, é a pessoa que para de olhar para ela. E, mesmo assim, a vida é uma fanfarrona, uma hora ou outra ela esfrega na sua cara o que você estava tentando não ver.

Eu realmente não sei o que dizer a alguém que pensa que tudo é superável. Certamente a pessoa tem muito pouca noção da capacidade de maldade e crueldade do ser humano (canalhas não vem com placa na testa, todos nós estamos sujeitos a cair na mão de uma pessoa escrota). Existem escolhas, atos ou palavras que causam danos permanentes, que não podem ser desvistos, cujas consequências são irreversíveis e, de tamanha intensidade, que não há gincana mental que poupe de uma dor diária pelas consequências causadas. Há feridas incuráveis, quem acha que tem o poder de curar tudo é inocente ou arrogante.

Se alguém aqui me disser que o assassinato de um filho cicatriza e que pode dormir na mesma cama da pessoa que o matou, tendo um relacionamento saudável, eu juro que vou me preocupar com a saúde mental desta pessoa. Se alguém aqui me disser que por amor consegue perdoar e cicatrizar a ferida de alguém que promovia espancamentos regulares até deixar a pessoa em cadeira de rodas para o resto da vida, eu vou sugerir terapia urgente. Desculpa, pessoas fazem coisas que geram uma dor que nunca para e que inviabiliza um relacionamento. O mundo não é um arco-íris. De um ponto em diante, não há mais nada que a vontade ou ato humano possa fazer para cicatrizar uma ferida muito funda.

Desculpa aí pelo tema óbvio, mas acredito que tenha uma função: Somir acordar para a vida lendo os comentários de vocês, já que eu falar não adianta de porra nenhuma.

Para tentar explicar ao Somir como é o mundo além da mãe dele, para dizer que amor supera tudo e ter meu desprezo ou ainda para dizer que feliz é quem não tem a noção da capacidade de maldade humana: deixe seu comentário.

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Comments (22)

  • Sim, a maiorias das feridas não cicatrizam nunca. Perdoar é do ma decisao pessoal, mas nao fecha a ferida.

    A proposito: Ainda que discordar do argumento da Sally, o que alguem já opinou ser apelativo ( não acho), e eu fosse tachado como demente… Bem, eu escolheria manter minha opinião. Se eu concordar com a opinião da Sally por que não ha outra opção senão ser um idiota, ainda assim eu manteria minha opinião. O dia que eu comentar para agradar a Sally, ou para não passar recibo de ” sem noção”, eu mesmo paro de comentar.

  • Apesar de a Sally ter dado um exemplo trágico, a morte de um filho pelo cônjuge ou os espancamentos sofridos pela Senhora Maria da Penha, o fato é que existem limites (apenas para aqueles que gozam de certa saúde mental/emocional) para o perdão em um relacionamento. Além disso, o limite para o perdão não deve ser tão elástico, ou seja, não se deve deixar chegar a um ponto de violência física para dar um basta em um relacionamento que dá fortes indícios de ser nocivo. Crer que o amor é capaz de superar tudo é irresponsável, é leviano.

  • Concordo com a Sally, existem atitudes impossíveis de serem perdoadas, existem feridas que jamais serão cicatrizadas, o amor supera tudo uma ova!

    • Sim, existem coisas que nem que a pessoa queira muito ela consegue deixar cicatrizar. Se pisar no calo da pessoa, mesmo que ela queira e tente, algo se quebra de forma irremediável.

  • Concordo com Sally em relações amorosas. Traição e agressão de cônjuge não tem perdão.
    Concordo com Somir em relações familiares. Não tem ex-pai, ex-mãe, ex-irmão. Feridas e mágoas familiares são mais possíveis de se perdoar.

    • Opa… Naonde que basta perdoar algo que a ferida cicatriza?

      Você interpretou meu texto de forma completamente errada. Não quero dizer que X coisa é perdoável e Y coisa é perdoável. Meu ponto é: TODO MUNDO TEM LIMITES QUE, ULTRAPASSADOS,GERAM FERIDAS QUE NÃO CURAM

      • Mas o tema é ‘feridas incuráveis’ dentro de aspectos ‘normais’ de um relacionamento (traição, desrespeito, questões financeiras, etc) ou de aspectos bizarro-psicóticos?

        Porque comparar ter amante com esfaquear o filho no pescoço me parece um tanto descabido…

        • No geral. Mesmo sem homicídio como exemplo, ninguém, nenhum ser humano do planeta, aguenta que lhe façam qualquer coisa e se cura de tudo. Todo mundo tem um rol de coisas que não tolera e que não consegue perdoar ou abstrair.

  • “Existe uma linha que, se cruzada, desanda o relacionamento. Onde esta linha se localiza é totalmente subjetivo, cada um estabelece (e muda) o local onde ela será traçada. Mas que ela existe, ela existe. ”

    Eu já estava escrevendo exatamente ISSO depois de ler o texto do Somir, mas resolvi ler o da Sally, e ela fala exatamente o que penso.

    Se a pergunta fosse “existe uma ferida especifica que é incurável para qualquer pessoa do mundo?”, concordaria com a argumentação do Somir. Agora, cada um tem seu limite… é humano!
    Sally ftw!

  • Concordo com a Sally.
    Acho sim que a linha entre o perdoável e o imperdoável é pessoal e mutável porém, independente da linha de cada um, todos temos um limite que, quando ultrapassado, sai do campo do “perdão e superação” e entra no campo do medo, da negação, da carência, da falta de amor próprio e qualquer outra coisa que venha mascarada de “amor”.

    • Tem coisas que mesmo perdoadas não cicatrizam. Aí a pessoa fica o tempo todo jogando na cara da outra. Curar uma ferida não é um ato de vontade, não temos controle total, às vezes feridas não cicatrizam nem se quisermos!

  • “Não existem feridas incuráveis em nenhum relacionamento…”, sim Somir, existem! A Sally tem razão e o exemplo citado por ela: “Se alguém aqui me disser que o assassinato de um filho cicatriza e que pode dormir na mesma cama da pessoa que o matou, tendo um relacionamento saudável, eu juro que vou me preocupar com a saúde mental desta pessoa.”, mesmo sendo extremo, cabe para expor minha semelhança de pensamento!

  • “O que dizer de pessoas que matam os filhos do cônjuge?”

    E as pessoas que matam os próprios filhos para viabilizar um novo relacionamento, tal qual fez Susan Smith?

    O namorado dela (que não queria formar família) foi muito ingrato ao deixa-la justamente quando ela fez com que os filhos dela não fossem mais obstáculo entre eles, ora essa…

  • Pergunte a uma mulher que dedicou sua vida toda a um homem e depois descobriu que ele tinha uma segunda família se, por mais que os anos passem, esta ferida cura.

    Meu ” nem preciso perguntar ! “ vai além : uma conhecida ficou e está exatamente nisso, daí que claramente ela não é uma resolvida, mesmo que ela quisesse ser mais negadora ainda responder o contrário…

  • É por isso que eu não mantenho relacionamento sério com ninguém, eu sei que invariavelmente eu vou me foder no final.

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