Enquanto isso…

Enquanto isso, numa sala de reunião:

GERENTE: Bom dia… Janaína?
JANAÍNA: Bom dia.
GERENTE: Você sabe por que eu te chamei aqui hoje?
JANAÍNA: Eu tenho uma ideia…
GERENTE: Que bom, porque eu preciso que você entenda a situação por completo.
JANAÍNA: Você me chamou aqui para me oprimir, né?
GERENTE: Não! Eu estou preocupado com você, Janaína. Já faz algum tempo que você está tendo resultados bem abaixo do satisfatório aqui na empresa.
JANAÍNA: Eu estou ótima e você não vai me fazer sentir mal pelo o que eu sou!
GERENTE: Eu não estou falando sobre o que você é… e sim sobre o seu trabalho.
JANAÍNA: Já sei o discurso… mulheres não são fortes o suficiente para a pressão desse trabalho, eu deveria ficar em casa cozinhando para o meu marido… né?
GERENTE: Não… não é esse o discurso. Temos várias mulheres contratadas aqui e eu não tenho nenhuma reclamação sobre isso. Estou falando de você.
JANAÍNA: Ah, então você não me reconhece como mulher?
GERENTE: Carlos, para de dificultar isso pra mim…
JANAÍNA: CARLOS?
GERENTE: Desculpa, desculpa… Janaína. É que tudo mudou muito rápido pra mim… Janaína.
JANAÍNA: Eu tenho o direito a ter minha identidade sexual, sabia?
GERENTE: Não estou discutindo isso, eu só quero falar da sua produtividade.
JANAÍNA: Está sendo um momento muito difícil pra mim.
GERENTE: Eu entendo, eu entendo… fizemos de tudo para te acomodar aqui. Não fizemos a palestra para os outros funcionários? Todo mundo tem momentos difíceis, mas…
JANAÍNA: Mas?
GERENTE: Tem coisa errada aqui…
JANAÍNA: É errado eu querer corrigir um erro da natureza? Eu nasci no corpo errado! Eu sou mulher!
GERENTE: Eu admito que sou meio antiquado, mas estou me esforçando para aprender. E você trocar de sexo não me incomoda.
JANAÍNA: Então o que está errado?
GERENTE: Por que você precisa de uma cadeira de rodas?
JANAÍNA: Eu tenho uma má formação nos tendões do meu joelho, e se eu não me cuidar eu posso ter problemas em algumas décadas!
GERENTE: Ok, mas por que você insiste em continuar fazendo o serviço de rua?
JANAÍNA: Eu sou tão capaz como qualquer pessoa!
GERENTE: Não para construção civil! Não para a obra! Nada ali é adaptado para cadeiras de rodas!
JANAÍNA: E a culpa disso é minha? Vou ser demitida porque vocês não fazem a sua parte, é?
GERENTE: Mas quando dá o horário do trabalho você levanta!
JANAÍNA: Andar é menos perigoso que carregar saco de cimento, né?
GERENTE: Eu te dei uma vaga no escritório!
JANAÍNA: Só porque eu sou mulher não significa que eu tenho que ser secretária!
GERENTE: Você nem era mulher quando eu te ofereci!
JANAÍNA: Eu sempre fui mulher, mas estava reprimida por gente como você!
GERENTE: Parece que toda a vez que eu quero te demitir acontece algo assim.
JANAÍNA: Ah, demita a transgênero cadeirante… isso, vai em frente.
GERENTE: Eu só quero que você produza alguma coisa aqui no trabalho!
JANAÍNA: Entendi, negro não trabalha direito.
GERENTE: Oi?
JANAÍNA: Aposto que se eu fosse branquinha que nem a sua assistente eu teria uma vaga garantida aqui.
GERENTE: Você é mais branca que ela!
JANAÍNA: Porque essa empresa me deixa enfurnada numa salinha da obra, segregada dos meus colegas e até do sol!
GERENTE: Meu Deus!
JANAÍNA: Eu sou neta orgulhosa de uma mulher negra, meus genes são africanos!
GERENTE: Os de todo mundo são…
JANAÍNA: Está se apropriando da minha cultura, é?
GERENTE: Jesus, dá me forças…
JANAÍNA: Ah…
GERENTE: Não…
JANAÍNA: É por causa da minha religião, né?
GERENTE: E qual é a sua religião essa semana?
JANAÍNA: Não seja sarcástico, eu estava numa busca espiritual! Agora eu sou muçulmana!
GERENTE: Tipo os terroristas?
JANAÍNA: O seu preconceito é inacreditável! O islã é uma religião de paz, e se você me demitir por causa da minha fé, vai ter um processo horrível pra cima de vocês todos!
GERENTE: Você é uma transgênero cadeirante negra e muçulmana então?
JANAÍNA: Homossexual também.
GERENTE: Ué…
JANAÍNA: Ué o quê? Não é possível que você ainda tenha a cabeça fechada para isso em 2017! Eu vou ter que chamar a imprensa aqui!
GERENTE: Ué… como em… ué, quando aquele rapaz da terceirizada disse que queria sair com você, você não disse pra ele que tinha horror a homem?
JANAÍNA: E tenho. Eu sou mulher, mas gosto de mulheres. Sou lésbica! Algum problema?
GERENTE: Carlos, pelo menos faz a porra da barba então!
JANAÍNA: JA-NA-Í-NA! E eu que decido minha autoimagem. Nunca que um homem vai mandar em como eu me pareço, entendeu?
GERENTE: Você só coloca um sutiã por fora do uniforme e tira quando dá o seu horário.
JANAÍNA: E?
GERENTE: Tá… eu… eu… você venceu. Vou te passar o trabalho de conferir as notas do material de construção na obra.
JANAÍNA: Você sabe que eu sou disléxica, né? Você estaria me humilhando publicamente me dando esse trabalho. Você quer que todos riam de mim quando eu começar a errar as contas?
GERENTE: Eu quero que você trabalhe! E você nunca disse que era disléxica!
JANAÍNA: Não sou obrigada a contar cada detalhe sobre mim. Ou você quer que eu tatue algo no meu pulso para você me reconhecer melhor?
GERENTE: Acho que essa foi a nossa conversa onde demorou mais para você me chamar de nazista…
JANAÍNA: Estou passando por um momento difícil.
GERENTE: Todos estamos…
JANAÍNA: Era só isso então?
GERENTE: Acho que sim…
JANAÍNA: Essa conversa foi muito dolorosa pra mim, eu acho que vou ficar traumatizada com ela por alguns dias.
GERENTE: Manda o atestado para a minha secretária. Até semana que vem.
JANAÍNA: Fico feliz que você esteja evoluindo.

Para dizer que admira a esperteza de Carlos, para me chamar de insensível por falar Janaína, ou mesmo para dizer que esse é o futuro que escolhemos: somir@desfavor.com

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Comments (11)

  • Ja falei:

    Pior que uma sociedade onde cada um tenta ser melhor que o outro; é uma em cada um tenta se vitimizar mais que os outros.

  • Pior que eu lembrei desse texto quando.eu li uma transexual reclamando.que foi mandada embora do programa da Fernanda Lima a três anos atrás…

  • É um caminho sem-volta, a internet fortaleceu a vitimização desenfreada, e, agora teremos que seguir rumo a esta cilada.
    E o pior: de onde surgiram essas pessoas, muitas ainda estão com a guarda baixa ou, ( entrando no clima do texto): dentro do armário, podendo integrar esses já inchados e pseudo-ideológicos grupos de indivíduos “desfavorecidos”.

    • Enquanto não tiver um contra-ataque forte contra essa cultura de vítimas, não vamos conseguir mais avançar socialmente. É questão de sobrevivência das minorias entender isso.

  • Meu Deus, estou fascinada com esse texto. Bateu um misto de riso e tristeza, pq não duvido que logo isso aconteça mesmo.

  • Muito bom, Somir. Só temo que, pelo andar da carruagem, não esteja longe o dia em que conversas como essa – por mais absurdas que sejam – não serão mais só ficção…

    • Porque tem o fator Brasil, a histeria politicamente correta ainda não passou pelo processo de esculacho do brasileiro médio. Vai ser engraçado de ver.

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