Cérebros improváveis.

Você sabe o que é um cérebro de Boltzmann? De forma simplificada, é uma consciência humana com memórias que aparece de forma espontânea num lugar aleatório do universo. Capaz de perceber a realidade da mesma forma que eu ou você, mas sem essa obrigação social de ter um corpo ou estar num planeta que permita a vida. E eu escrevo este texto com o objetivo de te avisar que provavelmente você é um deles…

Oi?

Precisamos percorrer um caminho de definições antes de chegar a parte de tudo o que você é ser uma mentira. E a primeira delas é sobre a entropia. Entropia é a tendência de toda a matéria e energia seguirem o caminho de menos organização num sistema fechado. Também conhecida como segunda lei da termodinâmica, a entropia vai muito além de impedir que máquinas de movimento perpétuo existam, ela também nos explica muito sobre o universo no qual vivemos (vivemos?).

E o físico Ludwig Boltzmann foi essencial para o nosso entendimento disso tudo: já se conhecia o conceito de entropia, mas não era algo fácil de visualizar, ainda mais no começo do século XX, onde muitos cientistas duvidavam inclusive da existência dos átomos. Boltzmann modelou o funcionamento das partículas de um gás dentro de um sistema fechado, dando uma base mais visual para a segunda lei da termodinâmica.

Hoje sabemos que dentro de um sistema fechado (uma caixa que seja) cheia de um gás não está vazia, mesmo que nada seja visível para nós. As partículas e os átomos estão lá, em constante movimento, chocando-se uns contra os outros. O estado gasoso da matéria é um dos mais caóticos por natureza, por isso perfeito para analisar a entropia. Boltzmann postulou que por pura probabilidade, as partículas de um gás preso dentro de um sistema fechado tinham muito mais chance de estar em posições aleatórias espalhadas por toda a área do que organizadas em formatos muito específicos.

Isso porque se você contar o número de lugares possíveis onde cada partícula daquele gás podem estar dentro da caixa, apenas uma ínfima minoria dessas possibilidades forma algo diferente de todas espalhadas sem padrão aparente para nós. Em teoria, nada impede que todos os átomos de um gás, por pura aleatoridade, colidam entre si até que todos se alinhem tão perfeitamente que acabem formando um cristal. Em teoria, nada impede que todos aqueles átomos se juntem para formar um iPhone (dado material suficiente).

Mas, tenho certeza que ninguém nunca viu um iPhone surgir diante de seus olhos por pura aleatoriedade. Não existe nenhuma lei da física que impeça, por exemplo, que a xícara de café que você derrubou no chão e se espatifou em mil pedaços se reorganize perfeitamente numa xícara completa sem a interação de alguém… mas isso não acontece. Acontece que para vermos algo do tipo teríamos que presenciar uma organização da matéria tão rara que só seria possível se tivéssesmos infinitos anos para observar aquilo.

Então, no fundo, no fundo… não é que a entropia é a única forma das coisas acontecerem, é que a probabilidade de você observar a matéria ficando mais organizada sem colocar energia extra no processo é pequena demais para confrontar a ideia de lei. Você pode confiar que a entropia vai funcionar como o previsto com um grau de certeza infinitamente próximo de 100%. Não fica melhor que isso na natureza.

Pois bem. Boltzmann nos deu essa visualização excelente da entropia, e também uma dúvida que pode ser assustadora: se a matéria não tem limitação de como pode se organizar, se o tempo for infinito e o espaço e número de partículas no universo for grande o suficiente, tudo é… possível. E fazendo as contas, comparando a quantidade de coisas que a vida na Terra precisou fazer até chegar em nós… a chance absurdamente pequena que nos tornou realidade… o que impede que não tenhamos o monopólio da consciência humana?

A filosofia tem o “cérebro num pote”, a ideia de que se você fosse um cérebro dentro um pote, colocado lá por um cientista maluco capaz de criar todos os estímulos que o mundo “real” cria através de um supercomputador ligado ao cérebro, como você saberia se é uma pessoa ou só o pedaço dela capaz de interpretar a realidade dentro de um pote? Esse experimento de pensamento existe para nos fazer reavaliar o que é real e se somos capaz de realmente perceber isso.

Vamos explicar o cérebro de Boltzmann de novo: e se por pura aleatoriedade a matéria se organizasse em uma forma que não só tem tudo o necessário para pensar como um humano, mas também memórias de uma vida? Bom, esse seria o cérebro num pote da física. Considerando toda a matéria que existe no universo e todas as possibilidades dela se organizar, é possível que um cérebro de Boltzmann com exatamente as suas memórias exista por aí, a milhões ou bilhões de anos-luz da Terra, talvez durando uma fração de segundo…

E também por probabilidade, bilhões de anos de evolução da vida num planeta que também parece ter enfrentado chances minúsculas para existir… é como se fosse mais provável que a sua percepção desse momento seja resultado de uma combinação rara da matéria perdida na imensidão do espaço do que esse serzinho altamente complexo pisando num grão de poeira na escala universal que é a Terra. Talvez a sua versão consciente que realmente esteja na Terra vivenciando a realidade seja só uma dentre bilhões… o que significa que estatisticamente, o universo funcionando como imaginamos, é muito mais provável que você seja um cérebro de Boltzmann do que… você.

Que diferença faz estar vivo há vinte, trinta, quarenta anos ou há dois segundos? Para quem vive no presente, nenhuma. E, spoiler, vivemos no presente. A sua memória depende das combinações da matéria e energia presentes no… presente do seu cérebro! Você só lembra do passado porque seu cérebro consegue puxar dados da memória no presente, inclusive montando tudo enquanto precisa. Memórias costumam ser falhas por isso.

Se você surgiu há um segundo como um cérebro de Boltzmann com exatamente as mesmas memórias que seu “eu real” (se é que existe um, pensando na probabilidade talvez nem isso), e se você vai desaparecer daqui a outro segundo… como você vai saber? Não existem memórias para quem desaparece da existência. Não teria continuidade.

Você se lembra de ter começado a ler este texto? E de ontem?

Para dizer que está de greve para pensar nisso, para dizer que achou uma maluquice, ou mesmo para dizer que adora como esse texto não muda nada de nada: somir@desfavor.com

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