Relatos de um médium cético.

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Relatos de um médium cético.

Quando escrevi o Desmagia Negra, em algum momento comentei que trabalhei em um hospital aqui de Campinas, aonde tive uma vivência muito intensa com a natureza humana e em como as pessoas lidam com a dor. Nos comentários das postagens, houve certa curiosidade sobre o que presenciei lá. Além de algumas experiências espirituais, o que mais valeu mesmo nesses pouco mais de 6 meses que trabalhei lá foi o conhecimento adquirido de como damos tanto valor a coisas materiais e muitas vezes só nos importamos com o lado espiritual em nossos momentos finais.

IV – Mário Gatti

2007 foi um ano em que aprendi muito e errei muito. Um dos erros foi terminar meu namoro com a Kitsune, algo que me arrependo até hoje, mesmo ela já tendo me perdoado. Um dos acertos foi ter escolhido trabalhar no Hospital Mário Gatti, que é referência para traumas e acidentes na região de Campinas após passar em um concurso de estágio da prefeitura. Como passei em primeiro lugar, me deram a passibilidade de escolher entre as assessorias de imprensa do hospital ou do PROCON. Achando que a segunda opção seria um tédio sem fim, escolhi a assessoria do hospital esperando viver altas emoções. Não sei como está lá hoje em dia, mas na época havia uma grande variedade de profissionais diferenciados trabalhando no tratamento dos pacientes. Um que me impactou bastante, mas isso por preconceito meu, era um enfermeiro que se vestia de mulher que trabalhava no pronto socorro infantil. Mil besteiras e pré-julgamentos passaram pela minha cabeça. Ao chegar na sala da assessoria, contei sobre minha estranheza para meu supervisor:

_Muitas coisas acontecem todos os dias aqui no hospital, aproveite para absorver o máximo possível. Saia, conheça as pessoas, quero ver sua cara o mínimo possível aqui na assessoria. Mesmo que você não traga nenhuma reportagem, se eu não te ver aqui, saberei que estará em algum lugar aprendendo com alguém. Para isso você não pode ter preconceito, porque todos que trabalham aqui são capacitados e possuem a confiança da diretoria hospitalar.

Daquele dia em diante me dediquei a perambular pelo hospital e a vencer minha própria timidez na intenção de conversar com pelo menos uma pessoa diferente por dia. Conheci pessoas de religiões diferentes, opções sexuais diferentes, casais que se conheceram no hospital por causa de acidentes e fui me tornando íntimo dos médicos. Vi de perto que esse negócio de que ser médico é sinal de sucesso não passa de ilusão, já que a maioria precisava trabalhar horas a fio, às vezes sem dormir, para conseguir um salário decente. Vi muitos reclamarem das condições de trabalho, das dificuldades, mas por incrível que pareça todos eram realmente apaixonados pelo que faziam. Havia muito estresse naqueles corredores, mas não havia falta de dedicação, mesmo com todas as precariedades e descasos por parte da gestão pública.

De tão próximo que fui ficando dos profissionais, começaram a me chamar para eventos íntimos, como o show de uma banda de um dos médicos. Outra vez foi um almoço comunitário aos fundos da ala de especialidades, numa outra oportunidade foi a abertura de uma casa de eventos cujo dono era amigo do responsável pela TI do hospital. Percorrer aqueles corredores apenas com o objetivo de conhecer pessoas foi me levando a lugares e esses lugares rendiam histórias, que por sua vez rendiam as reportagens que eu escrevia para o jornal interno. A resposta foi única, todos estavam adorando a forma como essas histórias pessoais estavam sendo reportadas. De uma assessoria fria e alheia ao pessoal interno, de repente nossa sala estava abarrotada de pedidos para que fossemos cobrir algum evento do hospital e lá ia eu, com minha malinha, meu cigarrinho e pretensão zero de fazer jornalismo, já que meu único objetivo era vivenciar plenamente a experiência de trabalhar no hospital.

Naquele ano assisti a um filme chamado ’21 gramas’, que ganhou esse nome por causa de um experimento de um cientista americano chamado Duncan MacDougall. Para o experimento, o cientista pesou o corpo de pessoas moribundas até chegar ao número que dá nome ao filme. Polêmicas à parte, certa vez eu estava na UTI adulta e um homem começou a ter um piripaque. De repente uma legião de médicos e enfermeiros ficam ao redor dele, numa verdadeira cena estilo Plantão Médico. Apesar de todos os esforços, o homem falece diante de nossos olhos. De repente vejo uma luz dourada que vai ficando intensa até se tornar branca e uma pequena névoa começa a pairar pouco acima do corpo. Então um corpo exatamente igual ao que está deitado, só que com menos detalhes, começa a flutuar no meio da névoa e uma luz intensa faz com que eu feche os olhos. Quando abro novamente, não vejo mais nada além de um corpo e um desanimado grupo que havia perdido um paciente. Vi mais duas pessoas fazerem a passagem no hospital, eram momentos de tensão e desconforto para mim, mas para os profissionais do hospital era algo rotineiro levando em consideração a quantidade de pessoas acidentadas que o hospital recebia (e ainda recebe) todos os dias. Nessas duas ocasiões tive experiências similares de praticamente sentir o espírito da pessoa se desprendendo do corpo e por mais que pareça maluco, a teoria ’21 gramas’ começou a fazer um sentido enorme dentro da minha cabeça.

Para ir trabalhar e voltar para casa, eu pegava sempre o mesmo ônibus, praticamente sempre no mesmo horário. Em muitas dessas viagens eu via uma senhorinha, que sempre ia com uma malinha cheia de coisas, mas voltava com a malinha vazia. Certo dia, meu supervisor me enviou para cobrir a primeira visita de cães especialmente treinados para visitar hospitais. Nessa primeira visita, os cãezinhos iriam passar por uma ala semi-intensiva infantil e lá vou acompanhar os bichinhos e seus adestradores. Ao chegar na ala me deparo com cinco crianças, todas com algum tipo de má formação genética e fico muito impressionado. Uma menina risonha me chama atenção e veja ao lado dela a senhorinha do ônibus, me aproximo e faço uma rápida entrevista com ela:

_O que acha da visita desses cachorrinhos? – pergunto

_Eu acho muito bom, minha filha nunca havia visto um cachorro antes e olha a alegria dela. É muito difícil ver esse tipo de reação nela.

Me aproximo da menininha, que precisava de ajuda para brincar com o cachorrinho. Pego a mão dela e juntos fazemos carinho no animalzinho. Os olhos dela irradiavam felicidade, ora olhando pro bichinho, ora olhando pra mim. Olho para o lado e vejo a mãe dela muito emocionada com aquele momento que durou pouco mais que alguns minutos. Naquele dia, antes de voltar pra sala da assessoria, parei na área de fumantes e acendi um cigarro. Chorei pela história da menininha, que me foi contada por uma das médicas pouco depois dos cães irem embora. Ela havia nascido no hospital e teve uma complicação respiratória que afetou o cérebro e o sistema respiratório. Desde então a menina morou no hospital, crescendo confinada entre as quatro paredes da ala semi-intensiva, sendo mantida viva graças às máquinas. Aquela menina nunca saiu do hospital, nunca passeou, nunca conheceu um animal ou uma pessoa diferente daquelas que estavam constantemente no hospital. Para aquela menina, conhecer aquele cachorrinho foi como se fosse conhecer todo um novo universo.

Passei a visitar a ala semi-intensiva infantil sempre que podia e sempre via a menininha e sua mãe do lado, com sua malinha de roupas e lanches para passar o dia. Recentemente o Godzila começou a fazer um trabalho voluntário no Mário Gatti e me disse que a menininha (hoje uma adolescente) ainda está lá, mas que sua mãe parou de visitá-la, praticamente abandonando-a à própria sorte. Saber isso me deixou muito triste, mas imagino o quanto deve ser doloroso para uma mãe ver sua filha crescer no quarto de um hospital, com expectativa zero de recuperação e cujo destino será fazer a passagem sem ter conhecido o mundo além daqueles muros.

Naquele ano, programei de ir com alguns amigos para a praia. Fomos em 4 pessoas e eu acabei indo de ônibus com um amigo, enquanto que as outras duas pessoas iam de carro após o expediente no hospital. Como chegamos na casa que havíamos alugado antes dos outros que estavam vindo de carro, fomos comprar algumas cervejas. Esse amigo e eu ficamos bebendo até de madrugada, quando ele resolveu ir se deitar. Continuei acordado, apaguei a luz para não atrapalhar meu amigo e fui me deitar na outra cama disponivel no quarto, só escutando as ondas do mar. Comecei a sentir o quarto inteiro tremer e a ouvir cascos de cavalos ecoando no ar, olho para meu amigo e ele continua dormindo como se nada estivesse acontecendo. Olho para o teto do quarto e vejo que está pegando fogo. Sem conseguir desviar o olhar daquele estranho acontecimento, vejo um cavaleiro sair do meio do fogo, parando em pleno ar na minha frente. O cavaleiro me olha e aponta um dedo, sem dizer nada. O quarto continua a tremer, começando a rachar parte das paredes e tudo acaba assim, sem mais nem menos.Até hoje não sei se isso foi um sonho ou algo que vi acordado, só sei alguns dias depois eu estava andando na rua com o Godzila quando ele aponta um casarão do outro lado da rua:

_Sabe o que é aquilo ali? – ele pergunta

_Sei não. – respondo

_É uma Loja da Maçonaria.

_E o que é isso?

_Falam que é uma sociedade onde um ajuda o outro, então só tem gente cheio da grana que falam que tem relação com os cavaleiros templários.

Ao saber disso sinto um estralo na minha cabeça e começo a pesquisar a fundo sobre a Maçonaria. Demorou alguns meses até conseguir uma brecha para conhecer de fato um pouco mais sobre a Ordem e descobrir que realmente há relação entre a Maçonaria e os cavaleiros templários. Não tive dúvidas e entrei de cabeça no universo das ordens místicas, que por sua vez me levaram a conhecer a Umbanda. No terreiro conheço um italiano que também era maçom e vou lá conversar com o preto velho dele:

_Filho, você sabe quem é seu pai de cabeça? – pergunta o preto velho

_Acho que é Ogum, mas não tenho certeza.

_É Ogum sim filho, esse é o orixá do fogo e da guerra. Ogum também é conhecido como São Jorge, que em vida era um cavaleiro.

Por: Tender

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Comments (6)

  • Que bacana! Você escreve de um jeito que me fez entrar no hospital. Vi você brincando com a pequena e acendendo o cigarro. Acabei vendo ate demais. Uma enfermeira gostosa acompanhando um doente levado numa maca…Viajei! Você devia escrever sobre a Maçonaria. É um tema interessante e rico de informações!

  • Outro dia li um texto muito interessante, que explica o porquê da algumas pessoas terem uma melhora repentina momentos antes da morte. Como os parentes e amigos dessas pessoas ficam em constante vigília e oração, o espírito do doente não consegue se desprender. A melhora ocorre pra que a família relaxe diminuindo a vibração mental, e assim o desencarne pode ocorrer.
    Parabéns por mais esta história, particularmente elas me tocam bastante.

  • Que história, Tender. Fiquei impressionado. Me tocou especialmente a parte da menininha que nunca saiu do hospital e sentiu como que “conhecendo todo um novo universo” quando viu um cachorro pela primeira vez numa visita. Lindo, mas ao mesmo tempo muito triste…

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