Inquisição.

Caro Sir Mir,

Mais uma vez nosso movimento fracassou. Durante a reunião, todos concordaram que deveríamos optar por uma vida autônoma, sem subordinação a religião e suas regras. Porém, quando marchávamos para a igreja com o intuito de comunicar nossa decisão, um evento que distribuía pão e vinho fez com que todos mudem de ideia. Inaceitável.

Sorte sua ter sido escolhido para uma missão bem longe daqui, não será obrigado a ver a decadência que se instala em nosso vilarejo. Imagino que você esteja se divertindo, afinal, a proposta das Cruzadas é ótima: viajar levando conhecimento e ajuda por diversos povoados. Tenho certeza que será uma viagem calma e tranquila.

Aqui todos se incomodam com as regras e restrições da religião, mas, no fundo, gostam de ter quem lhes diga o que devem e o que não devem fazer. Decidir sozinho implica em arcar com a responsabilidade das suas escolhas, igualmente sozinho, algo que, pelo visto, esses idiotas não estão preparados. Parece que a presença de um amigo imaginário é um ganho secundário forte demais, que vai impedi-los de ter livre arbítrio.

A Igreja está passando dos limites. Esta semana chegaram ao cúmulo de queimar uma moça viva sob acusação de bruxaria! Um ato violento como este certamente não é compatível com o Deus bom e misericordioso que eles pregam, mas ninguém parece estar empenhado em pensar, questionar e refletir. Ainda estou chocada. Ocorreu um assassinato sem qualquer prova promovido pela Igreja! Temo por onde isso vai parar, mas, mais uma vez, tive que ouvir que sou exagerada, pessimista e radical.

Questionei o que achavam deste assassinato na fogueira e como se sentiriam se amanhã fosse com um deles. Sabe o que me responderam? “Se eles fizeram isso, devem ter certeza de que era uma bruxa, não fariam algo tão grave de forma leviana” e “Eles tem os livros, eles devem saber o que é melhor”. Bem, a partir do momento em que fazem esse pacto e delegam para religiosos a escolha do que é melhor para cada um, estão dando-lhes poder, enfraquecendo nosso movimento.

Você tinha razão, estas pessoas são massa de manobra. Estão surgindo várias seitas religiosas que ganham adeptos por serem mais modernas. Pequenos grupos de abastados que se reúnem para conversar, discutir, trocar ideias também ganham força. Era de se esperar que a Igreja ataque com força estas ameaças, afinal, está doendo no bolso. Igrejas cada vez mais vazias, com seus sermões chatos, recebem menos contribuições financeiras.

Eu sei, eu sei, você já me disse muitas vezes para não me preocupar, pois se começar um extermínio e perseguição em massa o Estado vai intervir e as próprias pessoas irão se revoltar, mas eu tenho medo do rumo que as coisas estão tomando. Sabe aquela pessoa que foi queimada viva na fogueira? Pode ser alarmismo meu, pode ser que seja um caso isolado, mas juntamente com esta pena de morte houve um confisco dos seus bens, algo que ninguém está comentando muito.

Bem prático, não? Estabelecer normas genéricas, coisas como “atentar contra os bons costumes” e punir com morte e confisco de bens. Temo que muita gente acabe morrendo para que a Igreja possa se financiar. Já alertei a todos sobre isso, mas a maioria fica ponderando sobre os perigos dos demônios e bruxarias, dizendo que as punições físicas são uma forma de manter a sociedade segura.

Não tem medo de encher a cara de vinho, trair suas esposas ou brigar como animais e ainda acham plausível uma punição para quem “atentar contra os bons costumes”. Não percebem que eles estão no grupo dos que podem ser punidos a qualquer momento? Só porque não o foram até agora, não quer dizer que não serão. No dia em que convier, serão punidos, torturados e mortos. A hora de tirar poder da Igreja é agora, depois pode ser tarde, pois eles já estão começando a fazer alianças.

Para piorar, são alianças poderosas. A nobreza parece fomentar a Igreja. Retardados que não tem competência nem para gerir o próprio ânus, os nobres estão se sentindo ameaçados por uma elite burguesa que está começando a deter muito dinheiro derivado de seus negócios. Um grupo forte e coeso de comerciantes já questiona a monarquia e anda mostrando seu poder financeiro. Semana passada, depois de uma desavença, compraram todas as terras no entorno do castelo de um nobre com o qual se desentenderam e atearam fogo no terreno, enchendo o castelo do infeliz de fumaça. O infeliz teve que sair correndo do seu próprio castelo enquanto o povo ria.

Não demorou muito para que estas pessoas comecem a ser investigadas pela Igreja, por livre e espontânea pressão, depois que este nobre pediu ajuda a seus amigos religiosos: bom para a nobreza, que não terá que lidar com disputa de poder, bom para a Igreja, que vai confiscar os muitos bens da pessoa que vai matar. Quando levei a discussão ao grupo, sabe o que disseram? Que não era para me preocupar com isso, pois ninguém ali era rico e, portanto, não seriamos mortos pelo dinheiro. Que falta de visão…

A verdade é que esse povo idiota está se sentindo muito confortável em ter um grande fiscal da vida alheia, que cuida de tudo. Alguém que lhes diga onde é o limite, pois se autodeterminar dá trabalho. Assumir a consequência dos seus atos dá trabalho, muito melhor atribuir tudo a uma entidade imaginária deve ser mais reconfortante: não é você que se prejudicou fazendo uma escolha idiota, isso aconteceu por algum motivo sobrenatural. Lamentável esta etapa atrasada de civilização onde precisamos desta muleta. Inveja dos que viverão séculos depois livres dessas limitações intelectuais.

Cheguei até a pensar se não há um componente sádico nisso tudo. Quando tivemos essa primeira execução na fogueira, muitas pessoas se reuniram no entorno e ficaram gritando palavras contra o ser humano que estava sendo queimado vivo. Que tipo de pessoa faz isso? Bom, eu mesma respondo: uma pessoa que quer ficar bem aos olhos de terceiros. É um truque barato para ficar bem aos olhos de terceiros bater em quem está sendo socialmente execrado, gera uma presunção de que a pessoa é o oposto da execrada, ou seja, uma pessoa boa, que está indignada com o que presenciou.

Então, não apenas os nobres, como também o povão tem um ganho secundário forte: ao se posicionarem contra os acusados de heresia ou bruxaria, conseguem a simpatia das massas. Há homens que foram até o lugar da execução apenas para mostrar uma indignação encenada e encantar as moças que ali estava, você acredita?

O problema é que quando o interesse popular está voltado para se promover e não para justiça, a qualquer momento você pode ser vítima de uma injustiça sem que ninguém brigue por você. Estarão todos se promovendo, ou seja, te xingando e torcendo por sua morte, para parecerem boas pessoas.

O preço que se paga por te alguém que cuide de tudo e te diga o que fazer é que se um dia essa pessoa resolver te punir, o fará com todo o direito, pois você delegou poderes a ela para isso. É como se fossem crianças depois de adultos: nomeiam um pai para cuidar delas, dizer o que fazer, lhes dar comida, mas ele também ganha o direito de disciplinar quando achar que o pseudo-filho fez algo errado.

O curioso é que a Igreja agora parece culpar as supostas bruxas ou hereges por fatos aleatórios como tempestades e doenças. Claro, fica bem difícil de explicar como é que o suposto Deus deixou tudo isso acontecer, não é mesmo? É um Deus bom, é um Deus justo, é um Deus misericordioso, mas há pessoas morrendo de fome. Como pode? A resposta é rápida: se está nessa situação é por ser um servo do diabo. Demônio, demônio, demônio, não falam em outra coisa!

Para piorar tudo, ultimamente eles tem conspirado contra mulheres. Lembra da amante do rei? Apareceu grávida dizendo que era dele. Está sendo julgada acusada de bruxaria, a Igreja afirma que é um filho do demônio. Ela corre o risco de ir para a fogueira também, apesar de que, acho que não teriam coragem de promover assassinatos assim, seguidos.

Fiquei indignada com o caso e me ofereci para defender esta pobre coitada. E por “me ofereci”, você sabe, invadi gritando a Igreja e a sala onde todos estavam reunidos. Estavam escrevendo um livro, que foi rapidamente fechado quando eu entrei. Só pude ler o título: “Martelo das Feiticeiras”.

Disse em alto e bom som que eu faria tudo que estivesse ao meu alcance para impedir que mais uma pessoa seja executada, que a Igreja era uma fraude e que eu os desmascararia. Ficaram me olhando com uma cara atenta, depois um deles abriu o livro, escreveu algo e disse “obrigado por sua contribuição”. Não entendi nada.

Desculpe, tenho que interromper esta carta. Um grupo de clérigos está batendo na porta da nossa casa, provavelmente para me informar sobre a data do julgamento. Escrevo mais amanhã.

Para dizer que não dá para escrever de dentro da fogueira, para dizer que a história não ensinou nada ao ser humano ou ainda para dizer que sente falta dos plantões Power Pilha: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Vou dizer que essa semana dos Fracos com Des Atualizados está fantástica!!

    Da até uma euforia ler textos tão inteligentes! Parabéns pelas escolhas dos temas!

  • Curioso notar que tal mentalidade medieval – tanto a do povão que prefere ter um “pai” para guiá-los do que andar com as próprias pernas quanto a da Igreja doutrinária que busca eliminar qualquer “herege” que lhe apareça pelo caminho – não mudou quase nada com o passar dos séculos. Quanto às Cruzadas, desconfio que não será uma viagem tão “calma e tranqüila” assim. Tampouco creio que o real propósito de tais excursões em nome da fé seja mesmo o de “levar conhecimento e ajuda por diversos povoados”. Temo que essas execuções na fogueira sejam só começo. Muito sangue ainda deve ser derramado. E o pior é ver toda essa brutalidade sendo cometida em nome de “dogmas” sem sentido – e que ninguém pode ousar questionar – e de um “amigo imaginário” de cujos desígnios, segundo seus devotos, dependeríamos até para simplesmente existir…

      • Medicina, computadores, robôs e tudo mais… E ainda caímos nessas bobagens de líderes e entidades que vão salvar as pessoas, mas só as que “merecerem”. Ou as que pagarem para merecer.

        Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas.

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