Cinza.

Continua tudo acinzentado, como se uma imensa tempestade estivesse passando por nós. Às vezes um raio de sol ou outro teima em tocar o chão, mas são eventos cada vez mais raros. Sempre achei que o fim do mundo seria algo mais… dramático. Acho que posso até dizer que estou entediado. Um pouco de caos e histeria popular, sabem? Esperava mais. Às vezes eu penso que as pessoas nem entenderam ainda o que está acontecendo. Ou que não querem entender…

Lembro de um comediante num vídeo antigo falando sobre o que consideramos o mundo acabar: visão bem egocêntrica. Porque o que está acontecendo agora vai ser o nosso fim, não o do mundo. O mundo está muito bem, obrigado. Ele já passou por isso outras vezes, essa coisa de matar quase todas as coisas vivas e recomeçar basicamente do zero é o que esse mundo sempre fez. Talvez seja isso que esteja deixando as pessoas assim. A sensação que não só somos finitos, como também que as coisas continuam depois de nós. Não somos tão importantes assim, não? Quando tudo isso acabar, a natureza vai retomar tudo o que tiramos dela, como se fôssemos um mero incômodo passageiro.

O tempo está ao lado do mundo. Não do nosso. Nos primeiros dias, a coisa foi mais interessante, comoção por todos os lados. Uns se uniram, querendo companhia nos últimos momentos, outros entraram em pânico, tentando assegurar qualquer recurso possível para sua subsistência. Não deixava se ser outra forma de buscar conforto. Durante algumas semanas, tudo o que não estava pregado ao chão foi levado, até o ponto onde os pregos eram disputados aos tapas. Antes do fim, muitos de nós pudemos sentir o gosto de tudo aquilo que nos foi negado enquanto havia um amanhã.

Vimos o lado feio das pessoas com a violência e o desmantelamento de qualquer organização social, mas também virou palco de belos momentos. Perdões, reencontros, declarações… muita gente encontrou com quem passar esses dias finais. Mas o céu e as pessoas estão cinzas agora. O mundo deveria ter acabado numa grande explosão, isso sim. Eu acho que o grande problema foi excesso de tempo. Normal ter um plano do que fazer quando se tem apenas vinte quatro horas de vida, mas… isso foi um pouco demais. Talvez um mês fosse o ideal. Daria tempo de encontrar quem quisesse ou mesmo de fazer alguma aventura, tudo sem medo das conseqüências. Mas, dois anos?

Isso é, dois anos se os cálculos estiverem corretos. Porque eu ouvi, lá no começo, que dependendo de como essa força agir, podem ser décadas. Eu tenho a impressão que a maioria das pessoas sequer entendeu os dois anos, parecia tão imediatista. Ontem mesmo eu vi um homem tirar lixo da rua aqui da frente, como se fosse fazer alguma diferença. Bom, talvez faça pra ele. É uma visão nova, pelo menos. Faz tanto tempo que as ruas estão vazias… muita gente foi embora para o campo. O que eu honestamente não entendo, pelo menos a cidade foi projetada para esse clima terrível. A energia ainda não acabou, parece que não vai durar tanto assim. Não tem problema, a luz do dia ainda é suficiente para ler.

Sem contar que, pra onde eu iria? Se tem uma vantagem de ser sozinho, é que quando tudo acaba, você não sente falta de ninguém em específico. Daqui da janela do septuagésimo quarto andar eu vejo uma cidade definhando, as pessoas sumindo das ruas, olhando ao seu redor, esperando algo, algo que não vem mais. Será que estão esperando alguém dizer que foi engano? Que tudo vai se acertar?

Será que não estão confusas por ninguém ter vindo resgatá-las? É o que se espera nessas horas, que fiquemos juntos e ajudemos os necessitados, mas e quando todos nós somos os necessitados? Engraçado eu deixando esse relato, acho que é algo para fazer. Sobraram poucos canais na TV, e eu sinceramente não tenho mais paciência para a internet. É como se todo mundo que não tivesse alguma salvação para vender tivesse saído de férias. Mas eu imagino que se alguém escapar, ou se alguém de fora vier para nos estudar, teremos isso. Eu não fui só uma flutuação aleatória da matéria, eu deixei um registro.

Bom, se vocês forem capazes de entender o que eu estou escrevendo, talvez eu vire um daqueles mistérios, uma placa de pedra indecifrável que vai atormentar os arqueólogos do futuro. Não deixa de ser um fim interessante. Melhor do que só ser consumido e catalogado como mais um relato do passado. Vocês vão ter mil relatos de como as coisas deram errado, de quem causou ou não causou tudo isso, mas pouca gente vai te fazer entender como pensávamos aqui. Estão dizendo que existe um plano B, um para aqueles que podem pagar por ele, eu não acredito, mas… caso seja verdade, aposto que vão ser os descendentes deles que vão ler isso.

Um planeta nem tão distante, parecido com o nosso. Dizem que já suporta vida e que algumas espécies bem parecidas com a nossa estão se dando bem por lá. Parecia teoria de conspiração quando surgiu pela primeira vez, mas não deixa de ser algum alento. Torço para ser verdade, mesmo que eu não tenha sido convidado. Até porque se for mesmo, em no máximo vinte mil anos a minha mensagem chega aí na tal de Terra. Espero que vocês tenham mais sorte do que nós.

Para dizer que adora textos deprê, para dizer que agora sabe de onde vieram os brasileiros, ou mesmo para dizer que não entendeu nada: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • Sabe quando sua filha de dez anos insiste em saber quem foi Einstein e você coloca ela pra se virar na internet, e ela descobre a teoria da relatividade e quer saber mais sobre isso e você mostra um vídeo que explica sobre gravidade e distorção espaço-tempo e ela começa a conjecturar sobre a possibilidade de se avançar no tempo e, logo depois pondera se seria possível também voltar no tempo mas você apresenta a ela a idéia de realidades paralelas que surgiriam em uma eventual mudança nos acontecimentos como conhecemos, mas que aqueles que vivenciam a nova realidade da linha temporal não tem conhecimento da outra realidade?

  • Somir, ha algum problema com o link republicaimpopular.com? Pois eu já tentei por computador e por Android e a página simplesmente permanece em branco.

    • Não tem problema nenhum, está fazendo o que eu espero dele. Esse link é um caminho alternativo para o desfavor que eu vou ligar se algum dia “desfavor.com” não estiver funcionando.

  • Somir, seria ótimo se, caso o nosso mundo fosse mesmo acabar daqui a pouco, o Desfavor sobrevivesse assim como uma espécie de “Pedra de Roseta” digital, sabe? Algo que, depois de devidamente decifrado e estudado por cientistas do futuro – ou até de outros planetas -, servisse talvez como testemunho e registro de parte do que a humanidade podia realmente fazer de bom no campo das idéias.

    Quero mostrar aqui um link: https://www.youtube.com/watch?v=X_Di4Hh7rK0

    Espero não estar estragando tudo, mas quando li o segundo parágrafo imaginei que fosse deste vídeo do George Carlin que você esteja falando. Acertei?

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