Como perder um homem em dez dias.

Esta é a história sobre como enfrentei um miliciano perigoso do Rio de Janeiro. Não, não é uma história de tribunal, dos meus tempos de advogada. É uma das muitas derrotas que vivi, e que já prescreveram pelo decurso do tempo, podendo ser contada sem perigo. Senta e pega a pipoca, esta é a história sobre como perder um homem em dez dias.

Estava eu na academia, um ambiente supostamente seguro, considerando o valor da mensalidade que cobram. Sala de musculação. Um elemento muito bem apessoado se aproxima de mim e pergunta se pode revezar um aparelho comigo. Permito. Elemento Bem Apessoado começa a conversar comigo e, surpreendentemente, ele se expressa muito bem, parece muito inteligente e culto. Primeira vez na vida que vejo uma correspondência igualitária entre massa muscular e cérebro.

Dia seguinte, Elemento Bem Apessoado aparece para malhar no mesmo horário que eu e, novamente, pede para revezar um aparelho. Novamente conversamos e novamente fico surpresa com a cultura e inteligência do elemento. Muito agradável, não deu em cima de forma aberta, apenas manifestou um interesse discreto, com todo o cuidado para me respeitar e não me constranger. Fica a dica: todos os canalhas que conheci eram ótimas pessoas nos primeiros contatos. Não se deixem impressionar.

A coisa virou rotina. Elemento Bem Apessoado ia malhar sempre no mesmo horário que eu, e cada vez conversávamos mais. Até que um dia, muitas semanas depois, EBA me chamou para jantar. Topei.

Quando cheguei ao restaurante, uma surpresa: ele estava fechado, sem clientes, apenas aguardando por nós. Um restaurante japonês chique, completamente vazio. Olho para EBA e ele diz “Você disse que não gosta de lugares cheios, de muito barulho nem de gente ouvindo sua conversa, então, providenciei isso”. Fiquei um pouco desconcertada, mas ok.

Durante o jantar, descubro que EBA ocupava um alto posto militar, porém, exercia função na corregedoria, que, para quem não sabe, é algo 100% burocrático. Geralmente eles mandam os poucos elementos com cérebro para essas funções burocráticas. Tenho ressalvas com militares no Rio de Janeiro, mas como era uma função meramente burocrática, resolvi dar uma chance.

O jantar foi muito agradável. Elemento Bem Apessoado estava impecavelmente vestido, naquela zona ideal entre o desleixo e a viadagem. Conversamos sobre todos os assuntos e, ao aprofundar, confirmei: era mais inteligente e culto que eu. Estava admirada, nunca tinha visto aquelas toneladas de músculos com conteúdo do lado de dentro. Ao final do jantar, ganhei um beijo e um convite para uma nova saída.

Na segunda saída com EBA, fomos a uma badalada boate, daquelas que tem filas enormes na porta. Quando chegamos e o segurança da boate viu Elemento Bem Apessoado, imediatamente abriu passagem e o colocou para dentro, comigo, sem pagar. Isso me gerou um grande espanto, pois nem globais tinham essa deferência naquele lugar. Comecei a reparar melhor em EBA: relógio no pulso que valia um apartamento, carro caro… será que um salário de alta patente militar bancaria tudo isso? Bem, ele podia ser de família rica. Fiquei na dúvida, porém alerta.

Elemento Bem Apessoado não bebia, não fumava era ateu, adorava malhar e falava cinco idiomas. Adorava cães, chegou a chorar ao ver um filhote abandonado. Ajudava senhorinhas a atravessar a rua. Eram muitas qualidades e talvez tenham me cegado por mais tempo do que deveria. Era lindo de corpo e de rosto. Dançava bem (já tinha sido professor de dança na adolescência). Era radicalmente contra drogas. Era educado e carinhoso. Só tinha um pequeno porém: era um dos milicianos mais perigosos do Rio de Janeiro.

Pois é, minha gente. No Rio o criminoso nem sempre é um favelado que erra a concordância com uma camiseta amarrada na cabeça. Pode ser qualquer um. Eu já estava muito desconfiada de vários indícios, como ele entrar em todos os lugares furando fila, nunca pagar nada e ser altamente bajulado por todos, mas um fato em especial fez acender a luz vermelha: todos os homens da academia sequer olhavam para mim quando souberam que eu estava saindo com ele.

Se um dia você não receber cantadas em uma academia no Rio de Janeiro, nem um flerte leve, nem olhares, desconfie. Algo está fora da ordem mundial. Um professor, com o qual eu tive um passado amoroso, simplesmente não ficava a menos de 3 metros de mim. Eu falava com ele e ele não respondia, saía correndo de perto. Fui perguntar por qual motivo ele estava se comportando assim comigo e ele disse que “não queria problemas”. Quando eu apertei, ele falou. Ainda finalizou a frase com um “gosto muito de você, mas não quero morrer”.

E realmente, fazendo uma retrospectiva, todos os indícios corroboravam para essa versão. Fui investigar, pois a internet tudo sabe e tudo vê. De fato era verdade. Aquele rapaz de olhos claros, que era um amor, que chorava em filme triste, era um miliciano que matava e mandava matar. Não tinha outro jeito a não ser colocar um ponto final nessa história. Já tentaram terminar com um miliciano?

Saí para jantar com EBA no mesmo dia. Cheguei determinada a falar, com muito jeito, que não queria mais sair com ele, mas sem dizer o motivo real. Fomos ao mesmo restaurante japonês do primeiro encontro. Ele sentou, mas imediatamente se levantou como se estivesse desconfortável – e deveria estar, pois esqueceu uma arma no bolso. Tirou a arma da parte traseira da calça e colocou em cima da mesa, falando com a maior naturalidade do mundo “olha só, eu já ia sentar na minha própria arma”.

Eu estava pálida, tentando manter a naturalidade, olhando para aquela arma em cima da mesa. Os outros clientes do restaurante meio que se calaram quando ele puxou aquela arma e a colocou ostensivamente em cima da mesa. E ele, de boa. Nada estava acontecendo. Não tive tempo de falar, ele abriu a conversa dizendo que a mãe dele queria me conhecer. Brinquei que era cedo para conhecer família, afinal, não éramos nada um do outro mas, de alguma forma isso não foi muito bem aceito. Ele ficou chateado e, em um longo discurso sobre como ele não gostava de ser contrariado, disse “ninguém termina comigo, eu, no máximo, fico viúvo”. Ok, ele falou brincando, mas o recado estava dado.

Ali eu percebi a dor de cabeça que seria dar um fora em uma pessoa com muito dinheiro, poder, inteligência e que estava acostumada a nunca ser contrariada. Tal qual criança, eu não conseguia esconder meu desconforto com aquela arma ali (que, por sinal, estava deixando todo o restaurante desconfortável). Ele percebeu meu olhar de horror e brincou que eu não precisava ter medo daquela arma pois era apenas um 38 e, segundo ele, “38 é arma de atirar em sogra e em amigo”, que as armas realmente perigosas que ele tinha estavam muito bem guardadas (uma delas, debaixo do banco do carona do carro onde eu sentava, mas tudo bem).O jantar foi um show de horrores. Não havia condições de pagar para ver e meter a bronca de terminar. Era hora de pensar em outra saída.

EBA, agora Elemento Bandido Armado, me deixou em casa e, nesse dia, eu passei a noite em claro pensando em como escapar dessa merda. Resolvi que não ia contar para ninguém, pois ninguém poderia me ajudar e só causaria preocupação e desespero. Era hora de uma solução criativa. Tracei um plano: se eu não podia terminar com ele, ele é que ia terminar comigo. Respirei fundo e, de encontro a tudo que prezo e acredito, comecei a mudar meu comportamento.

Quando saímos novamente, fiz questão de não me depilar. Levantava os braços me espreguiçando para que ele visse as axilas cabeludas. Fiz uma introdução dizendo que agora que a coisa estava ficando séria e que eu ia conhecer a mãe dele, estava me sentindo muito mais à vontade para ser quem eu realmente sou. Em um esforço enorme, soltei um arroto na mesa. Palitei os dentes, mastiguei de boca aberta. Espremi cravos do nariz usando faca como espelho. Senhores, eu fiz todo tipo de nojeira que vocês possam imaginar. EBA parecia em choque, bastante incomodado, mas isso não bastou. Dias depois veio outro convite para sair. Era hora de fazer pior.

Tudo que faltou fazer de nojeira eu fiz no segundo encontro, inclusive, e é com muita vergonha que o conto, pedir silêncio a ele, peidar no carro. Depois mandei ele cheirar e adivinhar o que eu comi. Disse que essa era uma brincadeira que eu adorava fazer. Tirei meleca do nariz. Fiz atrocidades estéticas e higiênicas, acho que morri um pouco por dentro tamanha a tristeza de ter que protagonizar aquilo, mas voltei para casa confiante: depois de uma semana fazendo as piores nojeiras, nunca mais este filho duma puta me liga.

Mas ligou. Aí entrei em desespero. Se nem fazer o cara cheirar meu peido e adivinhar o que eu comi tinha afastado essa pessoa, então eu não sabia mais o que fazer. Resolvi estudar o assunto. Conversei com amigas, fui até a internet ler relatos, pesquisei onde podia o que as mulheres faziam que levava os homens a dar um fora nelas. Foram três dias de imersão, pesquisando dia e noite em rede social, fóruns e em todas as fontes que eu podia, recriando os últimos passos das mulheres que levaram um fora para entender o que fazer.

Mas valeu a pena, por mais que elas não soubessem o que fizeram de errado, seus lamentos e desabafos me ajudaram. Eu encontrei um denominador comum na maioria dos casos. Só precisava colocar em prática. Eu mesma chamei o Elemento Bandido Armado para sair.

Fui linda, arrumada, cheirosa. Me portei como uma lady, bem mulherzinha, para compor o papel que iria protagonizar naquela noite. Ele ficou muito feliz em me ver assim, até comentou que eu andava estranha na última semana e que gostava mais de mim assim. Foi quando comecei. Disse que queria que ele soubesse como me sinto e ele ficou prestando atenção, interessado. Seguem abaixo algumas frases que disse, no meio de um contexto que eu fui criando:

“Já vou logo avisando, sexo só depois do casamento”

“Aliás, se você quer me apresentar à sua mãe, acho melhor noivar, se a gente noivar este mês, dá para casar em maio do ano que vem, mês das noivas, o que você acha?”

“Meu sonho é ter quatro filhos, já tenho até os nomes para eles. Já até parei de tomar pílula, pois tenho certeza que você seria o melhor pai do mundo”

“Quero casar de branco, em uma festa enorme, chegar em uma carruagem e uma Lua de Mel em Paris”

“Não vejo a hora de morarmos juntos!”

“Posso marcar a data do casamento? Para quando?”

Foram umas duas horas de discurso todo nesse sentido: casar, morar junto, ter filhos. Fui carente, grudenta, ciumenta, insistente. Uma espécie de ejaculação precoce de relacionamento. Planejei festa e lugar do casamento, mostrando fotos. EBA foi ficando pálido. Falei como queria meu vestido de noiva. Falei o nome dos nossos quatro filhos. Falei, falei, falei sem parar. Terminei a noite dando a medida do meu dedo para ele, para que compre logo nossas alianças. Adivinha se essa porra não sumiu? Nunca mais ligou. Mas não foi só isso. Nosso amigo miliciano fugia de mim quando me via na academia, atravessava quando me encontrava na rua. Senhoras e Senhores, um dos milicianos mais perigosos do Rio se cagou de medo de mim. Homens são ou não são ridículos?

O saldo final que eu tiro dessa história é: homem prefere mulher porca a mulher que o sufoca. Foi uma lição de vida onde eu pude verificar, na prática, o quanto homem (por mais poderoso que seja) se apavora quando a iniciativa de firmar um compromisso parte da mulher. Então, se tem algo de bom nessa história tenebrosa foi aprender e aconselhar que, independente de tempos, feminismo ou contexto, evitem tomar a iniciativa de estabelecer um compromisso com homem. Deixem que eles mesmos passem a coleira em volta de seus pescoços. E, spoiler: se você não o fizer, ele vai querer muito mais rápido, pois o que mais tem é mulher sufocando homem.

Desse dia em diante eu decidi que se a coisa não caminha para o desfecho que eu quero, eu simplesmente me afasto do homem e ponto final. Morrerei sem cobrar compromisso, namoro, fidelidade, casamento ou o que for. Eles simplesmente não sabem lidar, mesmo que seja com jeito, mesmo que seja gradual e contextualizado. É uma deficiência, não uma escolha.

Eu quero mudar o mundo, Senhoras e Senhores? Não, eu quero apenas ser feliz. Se você quer mudar o mundo, vai lá dar murro em ponta de faca, eu resolvi me adaptar e acredito que me poupei de muito aborrecimento por isso. Não tomem iniciativa no sentido de deixar o relacionamento, qualquer relacionamento, mais sério, deixem que o homem tome ou apenas caiam fora. Se fica e quer namorar, espere ele fala. Se namora e quer casar, espere ele falar. Não pressionem, no geral eles se cagam de medo e encaram como cobrança. Ridículo esse medo, né? Mas as coisas são como elas são, não como a gente gostaria que elas fossem.

Ah sim… para fechar a história: Nosso amigo miliciano foi encontrado morto muitos anos depois. Se tivesse tanto medo do crime como tinha de compromisso sério, talvez estivesse vivo.

Para dizer que em vez de polícia a Segurança Pública deveria ser feita por mulheres carentes, para dizer que você teria mais medo da Sally Porca que da Sally Carente ou ainda para dizer que já testou esse método involuntariamente e comprovou sua eficiência: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (33)

  • Não fosse por pular fora, muito provavelmente você não conheceria Siago Tomir e não existiria desfavor.
    Por vezes, dá tudo certo por linhas tortas e… Eu diria que Dr. Jairinho jamais que seria preso se não tivesse matado aquele moleque, o tal Henry Borel. Não por ser um monstro com diploma de medicina e sim pelo papai miliciano, que muito provavelmente era bem casca grossa.

  • Eximia escritora, brilhante roteirista, incansavel pesquisadora e talentosa atriz…

    Especialmente, gracas a estes dois ultimos atributos, voce venceu!

    Que problema, hein!

  • Do jeito que sou troxona e lerda, não ia reparar nas características do cara e quando ele mostrasse as armas dele ia no máximo pedir na hora pra me ensinar a usar (meu sonho desde os tempos de CS). Provavelmente só ia descobrir quem era ele se alguém me alertasse

  • Sim, já testei esse método involuntariamente e comprovo sua eficiência. Hoje sou casada com uma outra pessoa, mas ainda assim o ex nem me cumprimenta ao me ver. E olha que desde o término já se passaram 10 anos!
    A propósito, amei o texto.

  • Gente, que história surreal! Se um cara que to saindo me tira uma arma do bolso e poe em cima da mesa de um restaurante, nem sei o que faria… medo!

    Olha, vou dizer que eu botei uma pressão no coleguinha pra namorar (e olha que nem tinhamos ficado!)… anos depois ele me disse que quase saiu fora, mas pagou pra ver! Deu certo! Hahaha!
    (Mas não arrisquei 2 vezes e esperei quietinha… o pedido de casamento partiu dele!)

  • Ok.
    1º – Depois que ouvi a voz de Sally e vi que como ela afirmava, realmente ela fala como um “mermão”. Dá pra entender o porquê de o EBA se interessar. (Eu sempre imaginei que ela teria sotaque argentino).
    2º – A cara do Somir lendo isso, e imagino que ele não soubesse dessa historia até então, deve ter sido ótima.
    3º – É uma pena que realmente a Sally não se interesse em passar esses genes para frente. Que mulher.

  • Ta, eu já sabia que pessoas perfeitas demais escondem segredos terríveis, mas agora bugou minha mente. Quer dizer então que porquice e sovaco cabeludo tá ok, mas falar em casar nem pensar? Anotei aqui pra quando eu quiser me livrar de algum bofe. Que cabeça fodida esses homens tem! Affs

          • Quando você não quer brigar com alguém, principalmente porque daqui a dois dias tudo estará melhor, justifica. Quer dizer, não deveria justificar, mas como homem é um bicho meio “covarde”, acaba acontecendo.

  • Ninguém gosta de perder a liberdade, Sally, mas com homem isso é muito pior. Mulheres devotadas são valorizadas pelo círculo íntimo; homens na mesma situação são tidos como bananas pela sociedade.

  • É bem isso. Comporte-se como a Felícia da turma do Pernalonga, ou como Pepe, o gambá. As pessoas fogem como o diabo da cruz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: