Despacito

Desde o começo do ano começou, muito timidamente, uma tendência à música latina em espanhol no Brasil. Sempre me perguntei por qual motivo a música brasileira era ouvida em toda a América Latrina e nunca chegavam músicas de outros países latinos por aqui. Hoje eu compreendo: outros países tem condições de cantar em outro idioma, mas o Brasil não tem qualquer condição de cantar em espanhol – e acha que tem.

Começou leve, com participações especiais, como por exemplo o colombiano Maluma com a “cantora” Anitta na música “Sim ou não”. Mas bateu forte, arrombou a porta, entrou e sentou no sofá com o “Despacito” do porto-riquenho Luis Fonsi. Uma música chiclete que invade sua mente e se aloja nela por dias, talvez semanas.

Despacito é um reggaeton de nível duvidoso (ritmo musical correspondente ao funk em prestígio, qualidade e público alvo), com aquela velha fórmula de música ruim: melodia chiclete, baixaria na letra e muita repetição. Vejam bem, não é elitismo, é racionalidade. Eu gosto do Despacito, porém tenho plena consciência de que musicalmente é uma merda cafona.

E a coisa não estourou apenas no Brasil não, a música é um fenômeno mundial. Está em primeiro lugar entre as mais tocadas no Spotfy, é a primeira música latina no topo da Billboard nos últimos 20 anos e muitas outras façanhas que não cabe explicitar no texto. Então, por pior que ela seja em qualidade, ela tem seu mérito.

O problema é: quando ficamos com uma música na cabeça, a tendência é que fiquemos cantando a música o tempo todo. Daí surge um pequeno obstáculo, o espanhol do brasileiro es muy fueda. Brasileiro vai à Argentina e pede “una Cueca-Cuela com muitcho gelo”. Percebem onde quero chegar?

Como cantar aquilo que você não entende? Existem dois caminhos. O primeiro é procurar entender, ver a letra em tempo real com a música, ver a tradução, compreender a pronúncia das palavras e cantar certinho. A segunda é pronunciar a coisa mais próxima do seu vocabulário com aquele fonema e foda-se a dignidade. Adivinhem qual foi a opção do brasileiro?

Alguns mais dignos fazem um esquema Karaokê Tabajara e substituem as palavras que não entendem por “na na na”. Ruim, sem dúvida, mas melhor do que deliberadamente substituir palavras: “DES-PA-CI-TO nã nã nã nã nã tu nã nã despacito, para que le nã nã nã nã nã”. O que seria uma ótima chance para aprender algo de outro idioma vira uma ode à preguiça. Na na na para vocês.

Mas o pior acontece quando as palavras não são substituídas de forma aleatória pela palavra mais próxima em português ou até por palavras que não existem em nenhum lugar do planeta Terra ou da galáxia. Ontem mesmo vi um cerumano cantando “Des-pa-ci-to quero respingar teu corpo despacito…”. Nosso querido pintor estava cantando em alto e bom som, sem qualquer constrangimento. Diante da minha cara de sofrimento extremo ele olhou e disse: “Que foi? Eu não sou obrigado a saber espanhol!”. Não, não é. Mas se quiser cantar em espanhol, é.

Não se enganem, espanhol parece fácil, mas não é. Justin Bieber, que chegou a regravar a música, passou vergonha quando resolveu cantar de improviso, sem sua colinha. Então, meus amigos, se Justin Bieber passou vergonha cantando, quais são as chances do brasileiro médio?

Curioso é que o mesmo brasileiro que tira sarro de quem canta errado em inglês está protagonizando um vexame bem despacito. O mesmo que dá ataque quando se erra uma letra, uma pronúncia ou até o nome de uma marca ou um artista em inglês estupra o espanhol sem dó. Parece que só a pronúncia em inglês é importante.

Gente que canta errado uma única palavra de uma música (“só pra você, insônia a mais não faz maaaal”) já fere meu TOC. Imaginem que tempos duros eu não estou vivendo, amigos, tendo meus ouvidos estuprados diariamente pelas mais diversas versões de Despacito feat Brasileiro Médio. Sabemos que o fone de ouvido é mera decoração para essa gente bronzeada: botam fone e cantam alto, ou seja, melhor seria se fosse sem fone, pois ao menos seria alguém cantando bem (todo mundo que canta alto canta mal e acha que canta bem, não sei que karma é esse).

Aí você não escapa de locais públicos como metrô ou academia com gente com fone de ouvido porém berrando. Essa semana ouvi um “Deeeespacito, quiero te chamar meu beijo despacito”. Dá vontade de cutucar o ombro da pessoa e perguntar se ela acha que essa frase que ela está berrando faz sentido. Outro: “Dessspacito, quiero chacoalha teu peito despacito…”. Apenas parem. Por favor.

Some-se a isso o fato de que, ao não entender o que está sendo dito, não se compreende do que a música fala. Despacito é uma preliminar cantada. A letra é extremamente sexy, quase que vulgar. No entanto, crianças de 4, 5 anos de idade estão cantando sem saber o que dizem. Claro, se nem os pais sabem, imagina se a pobre criança vai saber ou receber alguma orientação/limite?

Francamente, se algum pai acha ok sua filha de 4 anos cantar frases assim, eu só tenho a lamentar: “venha provar minha boca para ver como ela te conhece” ou “quero que você ensine à minha boca os seus lugares favoritos” (ué, a boca não conhecia a pessoa???) ou ainda “me deixe explorar seu corpo até provocar seus gritos e que você esqueça seu sobrenome”.

Você está ok com sua filha ou filho pequeno cantando isso? Se está, não deveria. Talvez ela não entenda, mas muito marmanjo por aí entende e não quero nem pensar com que olhos pode ver frases sexuais vindas da boca de uma criança. Mas não. Pais gravam vídeos dos filhos de 4, 5 anos cantando que querem fungar no pescoço do outro bem devagar e dizer baixarias em seu ouvido, para que a pessoa lembre quando não estão juntos. Parabéns, seu filho vai ficar felizão quando crescer e entender esse registro.

Mas, os desfavores não param. O desdobramento do Efeito Despacito vai muito além de pessoas cantando errado e crianças cantando putaria (muitas vezes errada). Uma vibe latina está entrando no país e, como brasileiro não admite não ser o maioral em tudo, já estão se travestindo em uma latinidade nagô que me entristece.

Todo mundo agora dança Zouk, todo mundo dança Salsa, todo mundo fala espanhol. Apenas parem. No Rio está ocorrendo uma explosão de festas latinas, onde homens comparecem vestidos como Pablo Escobar, crentes que estão arrasando. Não duvido que em breve comecem a virar moda nomes como Pablo (se bobear o brasileiro é capaz até de chamar uma criança de Pablito), Estebán ou Alejandro.

E tentam mostrar uma latinidade nagô completamente errada culturalmente. Ficam gritando “Ai caramba!”, expressão mexicana, quando toca uma música de um colombiano ou de um porto-riquenho. Fazem gestos como se fossem toureiros, algo culturalmente espanhol (diga-se de passagem, um país que está em outro continente!). Tem a cara de pau de abordar as mulheres nas festas latinas com um sonoro “Hola, que tal?”. Daí você responde em espanhol fluente, eles arregalam o olho e dizem “Eita! Fodeu”.

Americano Wannabe eu até entendo, pois apesar dos EUA ser um país muito do cagado, ainda consegue ser melhor do que o Brasil. Mas porra, Porto-riquenho Wannabe é foda. Parem. Parem com esse mix cultural de países de fala hispânica achando que é tudo um país só. Brasileiro acha que do Brasil para cima é a grande República da Salsa & Merengue, que vai até o México. Porra, cada país tem sua cultura, seu estilo, seu povo. Depois ficam putos quando desenho mostra macaco e jacaré na rua, né? Mas estereotipam do mesmo jeito.

E parem de importunar quem fala espanhol: “Você fala espanhol? Canta Despacito para eu ouvir?”. Filho, vai ser a mesma merda do Luis Fonsi, só que menos afinado, então, você ganha mais ouvindo no original. Mas só me faltava essa, por falar espanhol virei uma Embaixadora do Despacito no Brasil. Haja saco.

Resta torcer para que essa moda latina seja passageira e o brasileiro se dedique a estuprar outras culturas.

Para dizer que “Dez pras cinco” da Kefera é muito melhor, para dizer que erotização precoce de crianças é especialidade do Brasil desde É o Tchan ou ainda para dizer que quer uma tradução sincerona da letra, já que sites só disponibilizam uma tradução literal e sem sentido: sally@desfavor.com

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Comments (40)

  • Passando atrasada pra dizer que a versão do Boyce Avenue é melhor que a original =P.
    Aqui em SP é Despacito pra tudo o tempo todo, mas não tenho ouvido tanto, é mais geral fazendo referência. Os cantores de fone (metrô, trem, rua aleatória), alegram meu dia, acho hilário, rs. Povo realmente não tem a menor noção!

  • “O Brasil não fica na America Latina. America Latina é coisa de miguelitos e cucarachas. Brasil é Brasil.
    (ironia, ok)”

    Parece o Lula falando.

  • Cês acreditam que mesmo vivendo na terra da baixaria suprema, nunca sequer ouvi esse Despacito? Hahahahahahaha

    Devo ser agraciada com uma benção especial, pois sequer escutei esta música por aqui. Um milagre, pelo que estou vendo…

  • Estou em um experimento social.
    Até agora, fui capaz de não ser vítima dessa música.
    Sei que existe, mas ainda não a escutei em lugar algum. E, se escutei, por uma capacidade quase Iogue de abstração, desconheço.
    Já deu certo com o tal de lepo lepo, que até hoje consegui não ouvir.

    • Compartilho de tal situação. Mas a minha situação beira o inusitado: nunca ouvi, mas já estou filhadaputamente enjoado dela. Virou tipo um vírus, as pessoas ao meu redor não conseguem ficar mais de 3 segundos em silêncio sem entoar o refrão da música. O que me levou ao questionamento: será que a mente dessas pessoas é tão chata que elas precisam ocupar a cabeça com essas cantaroladas macarrônicas?

  • Eu nunca soube falar nem entender espanhol, sempre preferi ler manual de instrução em inglês. É difícil pra cacete! Não sei o que despacito quer dizer, mas as paródias ficam muio da hora!
    E como se fala coca cola em espanhol? Na dúvida eu pediria uma coke

  • Sobre homens que comparecem em “festas latinas” vestidos como Pablo Escobar: Ridículo. Isso só pode ser mesmo coisa de gente que não faz nem a mais remota idéia de quem foi Pablo Escobar ou que, no máximo, acha que o dito-cujo é só o personagem do Wagner Moura naquele seriado que, salvo engano, até aquele programeco do Pânico já parodiou.

    Mas BM que é BM é assim mesmo. Às vezes um estrangeiro, mesmo que tenha péssima reputação, aparece muito na mídia por esse ou aquele motivo e acaba virando “a pessoa da moda”. Daí a BMzada mesmo sem entender direito do que se trata, já sai fazendo paródia, se vestindo igual ou fazendo referência de tudo o que é jeito. Exemplos é o que não faltam. Eis alguns:

    – Décadas atrás, quando o Khomeini tava na pauta do dia, durante a Revolução Iraniana, o termo “aiatolá” apareceu por aqui em músicas de carnaval.

    – Quando o Bin Laden surgiu como responsável pelo 11 de Setembro, máscaras de carnaval com a cara dele venderam à beça.

    – Mais recentemente, temos o caso da viralização da famosa cena do Hitler puto no filme alemão “Der Untergang” com legendas sobre qualquer coisa, que fez com que parte da molecada descerebrada da geração mais nova ache até hoje que o Führer é só uma figuraça de um vídeo engraçado da internet.

    Claro que nada disso deve ser exclusividade de BM, mas por aqui tudo é sempre mais cagado…

  • Eu acho estranho o Latino não ter pescado essa antes dos outros. Como diriam os manezinhos da ilha: Digavarzinho!

  • O pior é que ja tem um desses cantores sertanejos aí que traduziu a musica literalmente e ta cantando em português “pra brasileiro não ter a desculpa que não entende a letra”.

    Adooooro Despacito!

    E agora a moda não é Zouk e Salsa, Sally! A moda é Kizomba!

  • Uma vez na Inglaterra eu fui numa festa brasileira (temática). A música era salsa e a bebida era tequila. Eu era o único brasileiro.

      • Também já ouvi falar de casos assim. Um adendo: anos atrás, um jogador de futebol brasileiro foi contratado por um time emergente de lá. Naqueles tempos “Pré-7 x 1” ter um verde-amarelo no elenco era até sinal de status e, como esse jogador em questão seria o primeiro brasileiro a vestir a camisa desse time, começaram a vender até “sombreros” – daqueles mexicanos mesmo – como “homenagem” na lojinha oficial do clube. Pode?

        • Hahahaha

          Olha, países distantes acharem que da Argentina ao México somos todos a mesma merda eu entendo, mas gente da própria América Latina pensando isso é foda!

            • O Brasil não fica na America Latina. America Latina é coisa de miguelitos e cucarachas. Brasil é Brasil.
              (ironia, ok)

              • Kkkkkkk e eu já ouvi gente dizendo que Brasiu não é país latino americano, até fiz post no facebook pra explicar… Poha, a América Latina é feita de países colonizados por países europeus latinos – a maioria deles por países ibéricos, além dos de colonização de franceses, como Haiti – e o Brasil fica nesse meio, e ainda por cima é o maior país de todos, o famoso bananão hahahaha

  • “Não duvido que em breve comecem a virar moda nomes como Pablo”
    Convenhamos que Pablo soa melhor que Enzo… mas se não der pra meter K W ou Y, o BM não vai se interessar
    Ah e a minha previsão é que a próxima vítima será a cultura japonesa (como se os coitados dos japoneses já não fossem atormentados por imigrantes latinos o bastante)

  • Acho essa música horrível, nunca consegui ouvir até o final. Falando em Anitta, eu acho que ela renderia um processa eu icônico e muito engraçado. A criatura só ta pagando mico querendo nos empurrar goela abaixo que agora ela tem carreira internacional. Fica pedindo pros amigos fazerem paródia de Paradinha pra fingir que viralizou. Risos. Fora os fãs esquizofrênicos que ficam infernizando cantoras internacionais no instagram delas e comentando em “inglês” nos videos da Anitta se passando por americanos hahahaha

  • Brasileiros são uns animais mesmo, pra quem fala português aprender espanhol é muito fácil mas a distância entre aprender e achar que já sabe é um abismo enorme.

    • Acham que sabem sem precisar estudar. Que fenômeno, não? Acham que sabem tudo sem precisar estudar a respeito: falar outro idioma, criar filhos, se medicar…

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