Enquanto isso…

Enquanto isso, numa sala de reunião:

JUIZ: O senhor entende que não está recebendo nada em troca deste depoimento, correto?
EMPRESÁRIO: Correto. Tenho consciência disso.
JUIZ: O senhor compreende que tem o direito de não produzir provas contra o senhor?
EMPRESÁRIO: Compreendo perfeitamente.
JUIZ: O senhor está fazendo essa delação de livre e espontânea vontade?
EMPRESÁRIO: Sim senhor.
JUIZ: E ainda sim quer fazer a delação?
EMPRESÁRIO: Acredito ser o meu dever como cidadão.
JUIZ: Louvável. Pode começar. Diga seu nome e onde trabalha para a gravação.
EMPRESÁRIO: Meu nome é Emanuel Domingues, e eu sou presidente do Grupo EMD Internacional.
JUIZ: E o senhor tem informações que sejam de interesse para uma ou mais investigações em curso?
EMPRESÁRIO: Sim, tenho. É sobre o deputado Valdecir Silva, do estado de Tocantins.
JUIZ:
EMPRESÁRIO: Tenho provas documentais e gravações de um esquema de corrupção envolvendo diversas empresas e setores do governo, chefiado pelo deputado.
JUIZ: Gravações?
EMPRESÁRIO: Correto. Diversas conversas onde ele me pede dinheiro em troca de favores. E não só dele, como de outros agentes públicos.
JUIZ: O senhor tem certeza que conversou com o deputado Valdecir Silva?
EMPRESÁRIO: Sim. Temos até uma gravação em vídeo de uma das reuniões, onde ele me pediu dois milhões para resolver um problema na justiça.
JUIZ: O… o senhor compreende que não está recebendo nenhum acordo de delação premiada, correto?
EMPRESÁRIO: Sim, sim senhor.
JUIZ: O senhor tem certeza… que quer fazer o depoimento agora? Não quer estar acompanhado por seus advogados?
EMPRESÁRIO: Não senhor. Estou aqui para trazer toda a verdade à tona.
JUIZ: Entendo… além da reunião citada, o senhor tem mais evidências contra o deputado em outros tipos de irregularidades?
EMPRESÁRIO: Várias, mas eu quero denunciar esse assunto primeiro, o da ação de desapropriação de uma área rural no estado que foi revendida para a minha empresa por um valor muito abaixo do mercado.
JUIZ: Entendo… nós podemos marcar um novo depoimento em data futura onde você pode trazer essas provas e…
EMPRESÁRIO: Estão todas comigo. Entrego para seus assistentes?
JUIZ: NÃO! Não… tudo isso precisa do processo correto.
ASSISTENTE: Senhor, eu estou com todo o material necessário aqui para coletar os documentos do depoente.
JUIZ: Calma, calma. A Justiça toma seu tempo, nunca se esqueça.
EMPRESÁRIO: Eu inclusive tenho aqui no meu celular, caso vocês queiram ver agora.
JUIZ: Isso quebra o protocolo!
ASSISTENTE: Senhor?
JUIZ: Pare a gravação.
ASSISTENTE: Ok.
JUIZ: Saiam da sala, todos vocês.

Os assistentes do juiz se entreolham, confusos.

JUIZ: Fora! Fora!

Os jovens saem da sala, fechando a porta atrás.

JUIZ: O que você quer?
EMPRESÁRIO: Eu quero a área ao lado.
JUIZ: Não dá, porra! Você sabe que não dá, vai foder o Valdecir! O MP vai cair em cima.
EMPRESÁRIO: Eu tenho um negócio pra tocar, Biriba, caguei pro Valdecir. Eu paguei a porra da campanha dele toda, eu pago até as putas que o filho vagabundo dele come! Quero o meu terreno!
JUIZ: Vai virar área de proteção, eu não vou dar essa canetada e agüentar chororô da turma do ambiente, a mulher da porra do desembargador é ativista.
EMPRESÁRIO: Vai agüentar chororô na sua mansão tomando champanhe que eu paguei. A casa vai cair bonito se vocês não me derem aquela merda de terreno, a fábrica não cabe naquela porcariazinha.
JUIZ: Tem umas famílias pro outro lado, fora da área de proteção. E se a gente arrancar elas de lá?
EMPRESÁRIO: Pode ser, mas não é assentamento de reforma agrária?
JUIZ: Que nada, é esquema. O prefeito da cidade deu isso pro MST pra ter voto, mas agora já foi eleito, só mandar a PM pra tirar a gentalha.
EMPRESÁRIO: E não vai me cobrar aquela dinheirama toda, Biriba. Se eu ficar pagando um milhão pra você toda vez que precisar de uma sentença, eu vou trabalhar só pra te pagar.
JUIZ: Fica tranqüilo. Duzentos.
EMPRESÁRIO: Cento e cinqüenta.
JUIZ: Um sete cinco.
EMPRESÁRIO: Beleza, então você vai desapropriar aquela porra toda e vender pra mim depois?
JUIZ: Do jeito que a gente sempre fez.
EMPRESÁRIO: Já deu?
JUIZ: Oi?
EMPRESÁRIO: Já deu?

A porta se abre, quatro agentes da Polícia Federal entram na sala, e dão voz de prisão ao juiz na hora. Três vão escoltando o juiz porta afora, e um fica para trás:

AGENTE: Leva ele pra sede, eu levo o empresário.

Assim que os outros três agentes saem:

EMPRESÁRIO: Fiz tudo certo, né?
AGENTE: Perfeito, parceiro. Biriba estava fodendo a gente.
EMPRESÁRIO: E o Val?
AGENTE: O irmão dele está indo embora com a grana. Ele vai tomar uns seis meses de cana pela delação, depois a família inteira vai atrás.
EMPRESÁRIO: E o meu terreno?
AGENTE: Deixa com a gente. Vai entrar um outro juiz nosso aqui. Mas o senador vai querer mais pra liberar.
EMPRESÁRIO: Caralho! Quanto o Rodrigão quer?
AGENTE: Trezentos.
EMPRESÁRIO: Puta que pariu! Por isso que esse país não vai pra frente.

Para dizer que previu tudo e isso é o mais triste, para dizer que esperava ficção aqui, ou mesmo para dizer que concorda com o EMPRESÁRIO: somir@desfavor.com

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Comments (3)

  • Muito legal, Somir. Gostei mesmo. Por favor me desculpe se eu estiver dizendo besteira, mas acho que uma das coisas mais tristes que acontecem quando a corrupção se torna o próprio “modus vivendi” de um país é que fica possível escrever um texto como este. É ficção, mas retrata situações típicas – e que não deveriam ser típicas – , no cotidiano de uma sociedade doente como a nossa, acostumada à pilantragem e ao jeitinho desde sempre.

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