Escalada.

Hector sentia o arrependimento nos ossos, junto com o frio trazido pelos ventos cortantes do topo da montanha. A milhares de quilômetros de qualquer traço de civilização, ele e seu grupo estavam há quase seis horas tentando contornar uma gigantesca massa de neve deslocada por uma avalanche na noite anterior. Nos meses de treinamento que fez antes da aventura, não tinha sido preparado para algo dessa magnitude.

“Já sabem como passar?” – Hector pergunta para um dos guias locais, o único com o qual conseguia se comunicar minimamente bem.

O homem, rosto enrugado pela idade e intempéries de uma vida nas montanhas, chacoalha a cabeça em negativa. Aponta para o que parece ser uma colossal pedra equilibrada numa das bordas da montanha, e com um movimento de dedo, sugere sua possível queda. Ainda sem uma palavra, espalma a mão direita num pedido de espera antes de se dirigir aos outros nativos que se reuniam num círculo.

Hector, empresário de sucesso e aventureiro por vocação, sabia que conquistar uma das montanhas mais mortais da história do alpinismo cairia muito bem em suas palestras sobre vencer desafios. E com o melhor grupo de guias que o dinheiro poderia comprar, além de uma razoável experiência na atividade, não imaginava passar por um décimo das dificuldades que passara até ali. Segurava uma câmera nas mãos. O cinegrafista contratado para a aventura provavelmente já tinha perdido alguns dedos para o frio, e mal saía da barraca da expedição desde a avalanche. Com a câmera em mãos, Hector confere se a luz está acesa e começa a gravar:

“Boa tarde… as coisas ficaram bem complicadas hoje. Ontem eu torci a perna numa rocha solta e hoje uma avalanche nos pegou de surpresa aqui, a seis mil metros de altitude. Os nossos guias estão conversando entre si para decidir o melhor curso de ação. Estão vendo aquela pedra lá em cima? Ela parece ter se soltado durante a avalanche e pode cair a qualquer momento, bem no único caminho que podemos fazer montanha acima. Nessas horas a gente entende como a natureza é muito maior que todos nós… não tem o que fazer, não tem plano que resolva. Só podemos esperar e ver o que a montanha vai fazer. E quando ela se decidir, vai ser a nossa vez. Eu tenho fé. Eu tenho fé.”

Hector retira o sorriso forçado da face e guarda a câmera rapidamente num dos bolsos de seu casaco. O guia com o qual trocara gestos anteriormente volta da reunião com os outros locais, expressão consternada.

“Tempestade chega com Lua” – fazendo movimentos circulares com os dedos.

“Vamos ter que voltar?” – Hector imagina todos os custos que teve com a viagem até ali.

“Não. Fica.” – apontando para o chão.

“Nós vamos ficar aqui até a manhã?”

“Não. Fica. Nós vamos.”

“Como assim?”

“Você lento, não conhece montanha. Matar todos nós. Fica.”

“Espera aí! Não foi isso que combinamos! Vocês estão recebendo muito bem para me levar aonde eu quiser aqui. Se vocês vão voltar, eu volto junto.”

O guia olha para Hector, retorcendo a boca em sinal de dúvida. Os outros guias começam a se movimentar montanha abaixo.

“Perdoa. Minha família…”

“Eu também tenho! É dinheiro? Eu tenho! Eu pago pra vocês o dobro, o triplo!” – Hector segura o homem pela manga do casaco.

“Não quero dinheiro. Solta!”

Hector não obedece, muito pelo contrário: agarra com mais força, mas seus músculos já não obedecem como faziam em outras condições de temperatura e altitude. Não ajuda a dor da torção que teve na perna no dia anterior. O guia chacoalha o braço, desequilibrando Hector, que desaba na neve. O homem começa a se afastar, apesar dos gritos de Hector. De dentro da barraca situada a poucos metros dali, sai o médico contratado para acompanhar a expedição.

“O que está acontecendo?”

“Eles vão nos deixar pra morrer aqui!” – Hector tenta se erguer, com grande dificuldade.

O médico imediatamente começa a correr na direção dos guias, que se afastavam cada vez mais rápido. Hector começa a tirar a neve do corpo enquanto espera que ele consiga convencê-los de levar o resto do time.

“Eu sou médico, deixa eu ir junto… eu ajudo! Eu sou útil! Espera!”

Hector demora alguns minutos para processar o acontecido. Tempo suficiente para o médico ser aceito no grupo dos guias e já fazer a curva montanha abaixo. Nem se quisesse poderia acompanhar o ritmo deles. Com a dor da torção renovada pela queda recente, arrasta-se lentamente de volta à barraca, onde apenas o cinegrafista com as mãos destruídas pela gangrena repousava, ainda apagado pelos analgésicos administrados. Após algum tempo de choque pela situação, tira a câmera do bolso.

“Olá pessoal… a coisa está complicada, bem complicada. Os nossos guias acabaram de dizer que está chegando uma tempestade, e como eu e nosso amigo Walter aqui estamos com a saúde um pouco abaixo do esperado, vamos ter que esperar até mandarem um grupo de resgate. Agora eu sei valorizar muito mais como é ter saúde. Conseguir andar normalmente faz muita falta… eu estou fazendo uma promessa aqui: quando sair daqui, vou fazer uma grande doação para a causa da mobilidade inclusiva. Vamos revolucionar essa área como fizemos com tantas outras. Eu tenho certeza que saio daqui enriquecido.”

Ele desliga o aparelho, guardando de volta no bolso do casaco. O dia lá fora começa a dar os últimos suspiros, reduzindo drasticamente a temperatura dentro da barraca. Religa o braseiro, mantendo o rosto o mais próximo possível da chama.

“Amigo, em que situação nos metemos, não?”

O cinegrafista não responde, não se mexe. Na verdade, nem respira. Hector resolve fingir que nada está acontecendo ao seu redor, tal qual uma criança que fecha os olhos na esperança de escapar dos monstros. A negação continua pela noite. O braseiro – feito para derreter neve, cozinhar e afins – não resiste sua função de aquecedor por muito tempo. A noite na montanha exige calor humano. Do lado de Hector, os melhores isolantes térmicos que o dinheiro pode comprar. Contra ele, uma ventania que ameaça arremessar a barraca a qualquer momento. Sem a luz do fogo, apenas a débil luz uma lanterna diferencia a barraca da paisagem, já coberta por uma nova camada de neve. Hector liga a câmera mais uma vez:

“A noite… a noite nunca foi tão assustadora pra mim. Uma grande lição que aprendi com um guru tibetano nessa viagem foi que não importa quanto medo você tenha, você sempre tem um tanto a mais de esperança. O dia vai nascer.”

Enrolado em todas as mantas restantes, inclusive a do cadáver que obviamente não tinha mais utilidade para ela, um estrondo chama sua atenção. O surto de adrenalina religa todos os sistemas, fazendo-o abrir a barraca imediatamente. O pior da nevasca havia passado, um tanto de luz da Lua banhava o horizonte, especialmente na parte inferior da montanha. A pedra não estava mais lá. As toneladas de neve ao redor dela também não. Quer quer que estivesse lá embaixo deve ter encontrado ambos. E tal qual começou, a nevasca cessa num golpe só.

Ele tira a câmera do bolso, fazendo questão de ligar a função de gravação noturna:

“Eu não acredito… eu não acredito… eles estavam lá embaixo! EEEEIII! Alguém está me ouvindo?”

Hector aponta a câmera para sua face, expressão desesperada.

“Eu tenho que ir ajudá-los… mas… mas eu não sei se alguém sobreviveria… eu estou vendo um caminho formado pela neve que se desprendeu com a nova avalanche… eu tenho que ser forte. Pela minha família. Eu não vou terminar minha história aqui, não vou! A bateria está acabando… mas eu vejo vocês lá embaixo. Pela minha filha, pela minha mulher… eu vejo vocês lá embaixo. Nunca vou esquecer daqueles que ficaram aqui na montanha. Nunca!”

Hector desliga a câmera.

O som de um helicóptero toma o ambiente. A aeronave desce exatamente num platô criado pela queda da pedra. Um homem todo encapotado desce e corre na direção de Hector.

“O senhor está bem?”

“Não graças a vocês! Era para dar a avalanche meia hora atrás, eu estou congelando, seus imbecis!”

Para dizer que entendeu, mas não entendeu; para dizer que tem certeza que Hector é coach, ou mesmo para dizer que dinheiro sempre vence: somir@desfavor.com

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