Por mais bem cuidada que seja, nenhuma saúde é imune a problemas eventuais. Alguns deles geram uma série de desconfortos, os quais Sally e Somir discordam sobre a forma ideal de lidar. Os impopulares remediam a polêmica.

Tema de hoje: esperar o incômodo ficar insuportável para tomar remédio?

SOMIR

Sim. Remédios existem para complementar as defesas naturais do organismo humano, e seu uso indiscriminado gera mais problemas que soluções no curto, no médio e no longo prazo. De forma alguma estou pregando qualquer forma de resistência à medicina ou à ciência em geral, na verdade estou defendendo o respeito pela espetacular habilidade humana de criar e administrar remédios para as mais diversas dificuldades que nos aflingem. Remédio consciente para ter remédio sempre.

Mas sejamos mais claros: o que significa incômodo insuportável? Oras, siga as palavras! Algo que te incomoda ao ponto de exigir uma resposta imediata para continuar funcionando como pessoa. Uma dorzinha de cabeça não é insuportável, mas uma enxaqueca com certeza é. E isso vai além de dores e incômodos “simples” do dia-a-dia, também jamais criticaria o uso de remédios quando sua utilização é o que garante sua vida, se alguém toma um remédio para pressão, não precisa esperar ter um ataque cardíaco para tomar um, obviamente.

Estamos falando aqui de doenças e problemas que o corpo humano está apto a enfrentar naturalmente, mas cujo atalho para o conforto está na utilização de remédios. Se você está com dificuldade para dormir, por exemplo, existem várias formas de facilitar o processo e corrigir o desequilíbrio gerado no organismo antes de sequer considerar um remédio para tal. Se você usa remédios sem considerar a gravidade do ato, está ensinando seu corpo a lidar com problemas comuns da forma mais confusa possível para ele. Organismos aprendem, num nível celular até.

Ao invés de ficar passando cola para cada pergunta da prova que a vida que passa, não custa tanto assim aprender a matéria e apostar numa autorregulação orgânica. Caso você nunca tenha pensado nisso: o conceito de “milagre” só existe porque o corpo humano tem capacidade de reverter basicamente tudo o que o ambiente usa contra ele. Infelizmente não é sempre que doenças mais sérias são tratadas “internamente”, mas se tem gente se curando de doenças consideradas incuráveis, é porque a possibilidade existe, por mais remota que seja. Nunca foi registrado um “milagre” de crescer um membro amputado de volta, por exemplo, justamente porque isso o corpo humano não tem como resolver sozinho.

Devemos depender desses “milagres” então? Claro que não, isso é se jogar numa loteria cujas probabilidades são péssimas contra nós. Remédios existem para serem usados, mas acredito que as pessoas em geral tem tamanha dificuldade de entender como eles funcionam que extraem deles resultados cada vez piores. Remédios ajudam seu corpo a se reequilibrar, fornecendo ferramentas para os processos naturais de correção programados em nossos DNAs. Tanto que as formas mais comuns de aplicação consistem em arremessar uma quantia considerável de uma substância no organismo e deixá-lo trabalhar com elas como bem entender.

Ou vocês acham que tem um motor na pílula que cai no seu estômago para navegar o conteúdo até o lugar onde ele é necessário? O corpo humano foi feito pra se curar, e a medicina moderna entende isso muito bem. Damos ajudas para ele de tempos em tempos. Mas antes que eu saia numa tangente sobre o impressionante sistema de correção de erros orgânico que torna possível nossa existência, vamos falar do lado negativo de tomar remédios antes que eles sejam imprescindíveis.

O mesmo corpo que aceita a ajuda de fatores externos para fazer seu trabalho também está cheio de mecanismos de proteção contra eles. Afinal, nenhuma parte do corpo é consciente o suficiente para saber o que todo o resto está precisando, e na dúvida, todo elemento estranho é considerado negativo. Esse é inclusive um dos problemas mais comuns do consumo de drogas: a cada vez que o corpo recebe uma dose, fica melhor em anular sua funcionalidade. Por isso que viciados precisam de doses cada vez maiores para conseguir resultados parecidos, entrando num ciclo frequentemente fatal de ganhos reduzidos com o passar do tempo. Eventualmente só uma overdose para gerar o resultado esperado, e uma overdose cobra caro de outra forma.

Ninguém é obrigado a viver com incômodos, mas faz muito sentido evitar que o ciclo dos ganhos reduzidos comece, sempre que possível. Eu, como viciado numa substância ruim, posso dizer isso com segurança: a única prevenção válida contra ganhos reduzidos é evitar ao máximo o consumo. Se possível, nunca. Remédios para dor, para segurar ou soltar o sistema digestivo, para facilitar o sono, para deixar mais desperto… todos eles podem ter funções essenciais para resolver problemas sérios que nos ameaçam a continuidade, mas quase sempre podem ser substituídos por esperar o corpo agir, ou mesmo por tratar de forma alternativa (e enfia o cristal de cura e a homeopatia no cu, estou falando de corrigir alimentação e hábitos diários).

Quem está absorvendo essas substâncias não sabe o que te incomoda ou a dose certa para usá-las, trata tudo mais ou menos igual: se tiver mecanismos para lidar com elas, passa o que puder pra frente. Se não tiver, é veneno. E os dois casos são problemáticos: no primeiro arriscamos que o corpo comece a anular o funcionamento delas e exigir doses cada vez maiores, no segundo, de lidar com os terríveis mecanismos de eliminação de ameaças que já temos em funcionamento.

Sem contar que num ecossistema baseado em evolução, é sempre sábio não mostrar todas as cartas de uma só vez: o uso indiscriminado de antibióticos tornou as bactérias tão resistentes que estamos chegando numa era onde não teremos mais substâncias eficientes contra algumas delas. Vocês acham mesmo que uma população que não sabe a diferença entre vírus e bactérias tem capacidade de tomar remédio toda vez que ficar incomodada?

Dores, enjôos e problemas normais da vida não são sinais que seu corpo está perdido e sem defesa, são resultados esperados da guerra que acontece dia após dia no seu organismo. Esperar a hora certa para tomar remédio é fortalecer o seu exército na medida certa.

Para me chamar de hippie nojento, para dizer que vai mandar sua “dorzinha” pra mim para eu dizer o que eu acho dela, ou mesmo para argumentar que eu não entendo nada de saúde: somir@desfavor.com

SALLY

Esperar que o desconforto chegue a um grau insuportável para tomar remédio?

Não porra. Que vocação para mártir é essa? Eu não vim ao mundo para sofrer de forma desnecessária!

Antes de começar a desenvolver meus argumentos, quero dar um breve alerta contra manipulação. Vamos interpretar texto com a Tia Sally? A pergunta é: esperar que o desconforto chegue a um grau INSUPORTÁVEL para tomar remédio. Ou seja, você sentiu algo, um leve incômodo. A coisa progrediu. Virou um incômodo. A coisa progrediu. Virou um grande incômodo. A coisa progrediu. Virou um puta dum incômodo. Assim vai, até chegar ao grau máximo, que é a insuportabilidade (a palavra não existe, e eu não me importo).

Então, a pergunta não é “tomar remédio por qualquer merdinha?”. Não estamos falando de botar para dentro remédio no caso de um desconforto moderado, pois isso eu também sou contra. Só não acho que se deva esperar pelo grau “insuportável” para agir. Meu critério é: está me atrapalhando? Está reduzindo minha funcionalidade? Se sim, remedinho. Não tenho que viver nem trabalhar com o freio de mão puxado, existindo uma solução para o problema.

Se cada vez que eu tomasse um remédio morresse um filhote de panda na Ásia, juro que eu pensaria duas vezes. Felizmente, na vida real, nada acontece se eu tomar um remédio para aplacar um desconforto significativo. Em vinte minutinhos a vida volta a ser bela novamente e eu continuo cumprindo minha agenda. E que bom que tenho esse recurso, durante séculos seres humanos não tiveram esse privilégio.

Não vejo demérito nem fraqueza em tomar remédio. Muito pelo contrário, vejo fraqueza nessa babaquice macho man de “eu vou aguentar sem remédio”. Não tem necessidade disso, de passar um dia mal, só para se mostrar forte. Quem é forte de verdade não precisa ficar se provando desta forma. A segurança e a certeza de ser forte te permitem lidar com suas fragilidades admitindo que elas existem e que, eventualmente, você pode sim precisar da ajuda de um comprimido.

Sou bem consciente de que tudo que como e bebo está bastante contaminado e envenenado das mais diversas formas que vida moderna me proporciona. Até o ar que eu respiro é podre. Então, não vou me prestar ao papel ridículo de amargar um grande mal estar por não querer “contaminar” meu organismo com remédios. Eu moro no Rio de Janeiro, eu devo ter todos os elementos da tabela periódica no meu sangue. Francamente, não dá para pousar de hippie natureba e se achar com o organismo puro por comer uma alface que, na embalagem, diz ser orgânica. Pode tomar seu remedinho sem culpa, provavelmente a água que você bebe é bem mais tóxica para o seu fígado do que ele.

O desconforto tem uma função: avisar que algo não está bem. Quando soa o alarme de incêndio no quartel dos bombeiros, eles se levantam, apagam o alarme e vão até o incêndio, certo? Alguém já viu bombeiro que vá até o local com alarme soando sem parar, por medo de que se apagar o alarme esqueça do incêndio? Acho que não. O recado do corpo está dado e, para que eu o compreenda, não preciso vivenciar um dia todo de dor ou sofrimento. Dormi pouco na noite anterior? Uma dorzinha de cabeça é esperada no dia seguinte. Eu preciso ficar o dia todo sofrendo com isso e tendo minha capacidade produtiva afetada? Não, né? E, se tem uma coisa que eu aprendi depois de muitas idas e vindas a hospital é que quando a coisa é grave mesmo, o corpo avisa com força e não há remédio que o impeça.

Desconfio que algumas pessoas sentem um prazer quase heroico no sofrimento. São quase “contra” remédios, por premissa. Gente que merecia continuar morrendo aos 30 anos, como era na Idade Média, quando não existia esse privilégio de tomar remédio. Gente que tem diarreia por três dias seguidos com o argumento que “tem que deixar sair o que está podre” e acaba se desidratando (spoiler: em horas o que está podre sai, depois disso você só perde líquido). Gente que não toma um tylenol para dor de cabeça preocupada com fígado mas no final de semana bebe até fígado virar patê. Não tenho paciência para esse tipo de pessoa, vontade de virar a mão na cara.

Tantas pessoas fodidas no mundo tendo que passar por sofrimento por não ter acesso a medicamentos e vai lá Dona Fulana, bebe e fuma, come comida congelada mas não toma uma aspirina pois remédio faz mal para o corpo. Ela é forte, ela é consciente, ela aguenta a dor. Exemplo de superação, essa guerreira, hein? Ah, vai tomar no cu.

Vamos todos acabar tendo um câncer ou um enfarto por causa do nosso estilo de vida, horas de sono, sedentarismo, alimentação cagada cheia de hormônio e agrotóxico, ar poluído, estresse e tantos outros fatores inevitáveis. Sabe qual é a diferença entre eu, que tomo remédio quando sinto um desconforto significativo para um hippie valente que resiste bravamente e passa o dia se fodendo? Minha vida terá mais qualidade. Não vou perder um segundinho da minha vida para mal estar que eu tenha o poder de evitar.

Além disso, sabemos que existe mal estar recorrente, que todo mundo sabe o que é. Mulher que ficou menstruada pode esperar por cólicas que, dependendo do caso, deixam a pessoa incapacitada e cama. Todo fuckin´mês acontece. Vai ficar vivenciando esta porcaria por qual motivo? Chegou a primavera e a natureza entrou no cio, lá vem alergia com tanto pólen no ar. Vai ficar se fodendo em sucessivas crises de espirro para que? Por favor, dos trinta anos em diante eu desisti de querer ter razão e de querer ser forte, quero apenas ser feliz.

Não há qualquer necessidade de vivenciar um desconforto prolongado. Se for grave, não vai passar com remédio. Se for grave, o corpo vai te dar o recado. Se o corpo humano fosse tão vulnerável assim que um remédio para desconforto mascarasse algo grave, não teríamos bilhões de pessoas no mundo.

Muito amor por analgésicos, muito amor por antibióticos, muito amor por medicamentos no geral. Se você se gosta tão pouco a ponto de não se proporcionar bem estar quando isso está ao alcance da sua mão, lamento muito por você.

Para perguntar por qual motivo eu estou tão brava, para dizer que prefere usar homeopatia e ganhar meu desprezo eterno ou ainda para perguntar quando foi que Somir virou hippie: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • É raro eu discordar da Sally, mas as vezes acontece.

    Evito ao máximo tomar remédios. Só no último de todos os casos.

  • tô com a Sally nessa. a vida já proporciona sofrimentos demais.

    “para perguntar quando foi que Somir virou hippie” o cara é de humanas e trabalha com publicidade/desenho, não saem rosas de um pimenteiro.

  • Não acho que Somir virou hippie… tá só tentando justificar os seus hábitos de cuidar da própria saúde!

    Maaas, nesse caso eu tô com ele. “Remédio consciente para ter remédio sempre.” Vou imprimir essa frase e espalhar (eu dou os créditos!).

    Remédio realmente não impede algo grave de se manifestar. Mas mascara sim os sintomas iniciais… E o que eu acho pior: às vezes impede que o corpo lide com o problema. Exemplo: uso de analgésico ou anti-inflamatório pra dores musculares/articulares. O remédio mascara a dor, vc não faz o repouso necessário, continua lesionando, e pronto… receita pra uma dor crônica que vai te fazer usar remédios pro resto da vida.

    Isso que eu nem vou entrar no mérito dos antibióticos, que o uso inadequado de um afeta a vida de TODOS.

    Mas cada um sabe onde o calo aperta, e de jeito nenhum acho que a pessoa tenha que ficar sofrendo antes de tomar um remédio. Insuportável é bem relativo, e uma dorzinha de cabeça pode ser insuportável pra um, enquanto uma enxaqueca pode ser aturável pra outro.

  • Tomei. Eu sou dos que corre pra remédio por qualquer dorzinha. A vida é muito curta pra sofrer. Mais curta ainda pra huebr, que toma flúor na água diariamente e não tem $ pra pagar comida orgânica e a qualquer momento pode levar um tiro. Nem sei pra que reforma da previdência, a coisa mais fácil que tem é matar brasileiro.

  • No exato momento em que eu abro o Desfavor estava pensando em tomar ou não um analgésico devido a uma dor de cabeça ainda leve, porém constante.
    Assim como disse o Somir, evitar tomar o medicamento é bacana para não correr o risco do corpo viciar ou criar “resistência”.
    Entretanto, como disse a Sally, por que vou ficar sofrendo o dia inteiro a ponto de deixar a dor, que já incomoda, se tornar insuportável? Nesse caso até mesmo a dose do medicamente terá que ser maior para conter a dor. Não faz sentido!
    Vou ali tomar meu analgésico e daqui uns minutos ser feliz.

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