Relatos de um médium cético.

Desfavor Convidado é a coluna onde os impopulares ganham voz aqui na República Impopular. Se você quiser também ter seu texto publicado por aqui, basta enviar para desfavor@desfavor.com.

Eu realmente não sei como o Somir e a Sally conseguem escrever todos os dias esses textões, pois apesar de gostar de escrever, após pouco tempo fico meio sem paciência e acabo parando. Para os poucos que gostam dos meus textos isso deve ser um sofrimento, já que não fiz mais o “Desmagia Negra”, o “Jornalismo Literário”, o “Mago sem destino” e o “Tender Critica”. Apesar de alguns pedidos para que eu escrevesse textos quinzenais, eu simplesmente não consigo e até o “Relatos de um médium cético” simplesmente parei de escrever por ter perdido o interesse. Porém, como a mediunidade é algo que tenho vivenciado desde a adolescência, volta e meia sinto a necessidade de escrever sobre o assunto. E é graças a essa necessidade que volto com a segunda temporada sobre meus relatos de vida, espero que gostem.

Relatos de um médium cético VI – A noite mais fria do ano.

Meu pai foi obeso durante muito tempo e a alimentação ruim, o tabagismo e o sedentarismo certo dia vieram cobrar seu preço. Ele já teve gota, pressão alta, hérnia no umbigo e diversos outros pequenos problemas que prenunciavam o pior. Os problemas maiores começaram logo que nos mudamos para Campinas, quando ele descobriu que tinha diverticulite, uma inflamação que prejudica o intestino formando bolhas de sangue que podem estourar a qualquer momento. A primeira crise dele foi entre 2004 e 2005 e me lembro muito bem de ter chegado em casa sem encontrar ninguém da minha família. Até estranhei isso, mas não me importei muito achando que eles tinham saído para algum lugar. Fui dormir e acordei com o telefone tocando insistentemente, ao atender ouço a voz de minha mãe:

_Venha para o hospital, papai está na UTI e quer falar com você.

Assustado vou a pé ate o hospital, que não era muito longe da minha casa e ao chegar lá vejo meus irmãos assustados. Sem entender muito bem o que estava acontecendo vou até a UTI me encontrar com minha mãe, que me abraça aos prantos:

_O papai está com um problema, foi ao banheiro hoje e só fez sangue. Sangrou muito e veio sozinho de carro para o hospital, agora ele está lá dentro com um padre e quer falar com você.

Como a entrada na UTI era controlada, apenas minha mãe e eu tivemos autorização para entrar, mas como ela não tem muita coragem para ver sangue, fui sozinho ao encontro do meu pai. Fiquei do lado dele enquanto o padre finalizava a extrema-unção e perguntei:

_Pai, o que que tá rolando?

_Descobri da pior maneira que tenho um problema no intestino chamado diverticulite, tem um monte de bolsas de sangue que precisam ser cauterizadas. Sangrei demais no banheiro e nem sei como consegui chegar aqui sozinho, mas por sorte fui atendido rapidamente.

Na época eu não gostava de religiões e fiquei incomodado com a presença do padre, que continuava ali mesmo após ter terminado a extrema-unção:

_Filho, Deus está contigo e tudo não passará de um susto. – disse o padre para o meu pai.

_Porque você chamou um padre? – perguntei.

_Há uma chance de eu morrer na cirurgia, assim eu morro em paz.

_Você não vai morrer pai, não hoje pelo menos.

_Por isso que eu te chamei aqui, eu conheço meus filhos e sei que você é o mais duro na queda emocionalmente. Se eu morrer, quero que você cuide deles pra mim, ajude a mamãe pegar meu seguro de vida e sigam em frente.

_Tá bom, mas isso não vai acontecer. Você vai sair daqui vivo!

Nesse momento, um dos médicos pediu para que eu e o padre saíssemos da UTI, já que iriam iniciar os procedimentos da cirurgia. Do lado de fora, volto a ficar com minha mãe e o padre vem em nosso encontro:

_Ficará tudo bem, não se preocupem.

Saímos para a recepção, aonde estavam meus irmãos e voltamos para casa, já que não tínhamos mais o que ficar fazendo no hospital. No dia seguinte nos ligam, avisando que a cauterização havia sido o sucesso, mas que só poderíamos visitá-lo após dois dias de recuperação. As horas se arrastam, os dias passam lentos e as noites não permitem um sono tranquilo até que finalmente conseguimos vê-lo novamente.

_Meu médico disse que após a recuperação, terei que fazer redução de estômago com urgência. Além disso terei que mudar minha dieta e meu modo de vida para que os divertículos não estourem novamente. – explica meu pai para todos nós, já em um quarto fora da UTI.

Naqueles dias, meu cotidiano era sair da faculdade e passar as tardes com ele no hospital até que minha mãe chegasse pra passar a noite. A quase morte dele foi um baque, mas eu evitava ficar pensando muito no assunto, ao contrário de minha irmã, que ficava pentelhando ele com relação ao modo de vida que levava:

_Você tem que parar de comer essas porcarias, tem que se cuidar, tem que parar de beber.

_Caramba pai, acho que morrer é menos pior que aguentar a mana falar. – eu brincava quando ficávamos sozinhos e nesses raros momentos eu via ele voltar a sorrir.

Ele voltou pra casa, se recuperou, fez a bariátrica, emagreceu e ficou saudável. Porém sempre acabava voltando pro hospital, quando passava mal por ter comido alguma coisa que não fazia bem por causa da redução de estômago.

_Pai eu falo que você tem que parar de comer essas comidas pesadas, tem que comer salada, sopinha. – minha irmã parecia um disco riscado, mas ela tinha razão.

O tempo passou, meu pai finalmente mudou seus hábitos e dez anos se passaram sem grandes surpresas. Até que no final do ano de 2015, quase no dia de Natal, recebo uma ligação de minha mãe:

_Oi mãe, já avisei que vou passar o Natal com vocês. – falei grosseiramente, pois não tenho muito gosto em falar pelo telefone.

_Marcelo, o pai tá aqui em Bragança Paulista esperando atendimento, ele teve outra crise de sangramento. Estou aqui sozinha com ele e não sei mais o que fazer, ele está em uma maca no corredor do hospital, sai tanto sangue que já tá pingando no chão.

Liguei pra minha irmã e juntos fizemos o trajeto Campinas X Bragança em tempo recorde. Ao chegar lá, meu pai estava recebendo atendimento na ala de emergência, com uma bolsa de sangue pendurada precariamente e a maca encharcada de sangue. Mesmo assim, ele continuava acordado:

_Oi filho, tudo bem? – me perguntou.

_Sim pai e você?

_Estou bem, não há vaga na UTI aqui e eles chamaram uma ambulância para me transferir para Jundiaí.

A noite foi passando e nada da ambulância chegar, com muito custo convenci minha irmã levar minha mãe para casa descansar:

_Vão lá que a noite está fria, assim vocês descansam, pegam roupas e depois voltam. Qualquer novidade ligo para avisar.

Ao voltar meu pai finalmente tinha ido para um leito, mas ainda na ala de emergência, sem nenhum aparelho mais sofisticado para analisar os sinais vitais dele. Ele vestia uma camisola de hospital e apenas um cobertor para protegê-lo do frio. Aos poucos a roupa da cama ia ficando vermelha devido ao sangramento e eu corria pra lá e pra cá pedindo para qualquer médico ou enfermeiro que passava por ali para ajudá-lo. Nada era feito e tampouco a tal da ambulância chegava. Eu ligava de meia em meia hora para o convênio médico:

_Senhor, já explicamos que precisamos de uma ambulância UTI para levá-lo de um hospital para outro. No momento não há nenhuma disponível, assim que tivermos enviaremos com urgência para atendê-lo.

Apesar do estresse, eu tentava me manter calmo. Certa hora sai para fumar um cigarro e estava muito frio. Eu havia saído de casa na correria, sem nenhuma roupa de frio, então eu me esquentava andando sem parar. Joguei o cigarro fora e voltei para ver meu pai. No mesmo leito que ele havia um homem que havia sofrido um acidente e acima da cabeça dele eu vi a famosa luz dourada que pra mim não era bom sinal, havia grandes chances daquele desconhecido morrer ali, sem nenhum atendimento digno. Passei a cortina que separava o homem do meu pai e fiquei paralisado de susto. Meu pai estava com os olhos fechados, ao tocá-lo senti que estava gelado, a respiração era imperceptível e a cama estava com muito sangue.

“Puta merda, acho que ele morreu” – pensei. Como já era umbandista, fechei os olhos e comecei a pedir pro meu Exú ajudar meu pai durante a passagem, que o acompanhasse a sair da confusão inicial que é o mundo espiritual, quando escuto um sussurro no ouvido:

_Ainda não chegou a hora.

Abro meus olhos e vejo que meu pai acordou, mas com o olhar meio vago.

_Filho? – ele me chama.

_Sim pai, estou aqui. – respondo.

_Eu estou bem?

_Sim, fica tranquilo.

Naquele momento entra uma médica e um enfermeiro com uma maca.

_Somos da ambulância, acabamos de chegar e vamos levar seu pai. – diz o enfermeiro.

Rapidamente eles transferem meu pai para a ambulância, com a médica me perguntando uma série de coisas que eu não sabia responder. Me sento do lado do motorista da ambulância e falo:

_Cara, não entendi uma palavra do que ela falou.

_Normal, ela não é brasileira, veio pelo tal programa de médicos cubanos.

Ele ligou a sirene e saiu dirigindo feito um maluco. O cara passava todos os sinais vermelhos, buracos e fazia ultrapassagens perigosamente. Por um lado eu sabia que meu pai ia chegar rápido no hospital, por outro rezava para não morrermos todos durante o trajeto. Além disso, toda vez que eu caia no sono, ele me acordava:

_Cara fica comigo, que eu não sei chegar direito em Jundiaí.

_Puta que pariu. – respondi.

O olho dele estava trincado, devia ter tomado alguma coisa para ficar acordado e não queria que eu dormisse para não incentivá-lo a cochilar no volante. Mesmo capenga, me mantive acordado e fui dando as direções pra ele. Passávamos voando por carros, caminhões e até mesmo pedágios, nada parava aquela ambulância. Eu olhava pra trás e via a médica conversando com meu pai em portunhol, eu apenas entendia que ela falava pra ele não dormir.

_É impossível dormir com essa ambulância correndo desse jeito. – ele respondia

Finalmente chegamos em Jundiaí e foi a última vez que eu o vi aquela noite. Ele ainda estava acordado e me falou:

_Está tudo bem, não se preocupe.

Fui para a recepção responder uma série de perguntas pessoais, as quais respondi precariamente. Não sei se estresse, cansaço ou ambos, mas eu mal lembrava o nome do meu pai completo, quanto mais seu endereço ou data de nascimento. Por último, dei o único contato que me veio a mente, que era o celular da Kitsune. Mandei mensagem pra minha mãe e pra minha irmã de que estávamos em Jundiaí e foi a última coisa que fiz com o celular, que ficou se bateria. Elas chegaram bem rápido e fomos para um hotel ali perto. Dormi feito criança e acabei esquecendo de avisar sobre os pormenores dos dados pessoais que havia dado na recepção. Peguei um ônibus e voltei para Campinas, enquanto que minha mãe e minha irmã ficaram em Jundiaí. Naquela tarde, ao encontrar Kitsune, ela reclama:

_Hoje um número desconhecido ficou me ligando o dia inteiro, como eu não sabia quem era, não atendi.

_Número desconhecido? – pergunto, ainda meio avoado.

_Sim, era DDD 011.

_Cacete, acho que era o hospital de Jundiaí.

Ligo urgentemente para minha mãe e quem atende é minha irmã, descascando a batata por eu não ter dado o celular dela ou da minha mãe como contato. Expliquei que o número da Kitsune era o único que eu lembrava depois de tanto estresse e ela se acalma.

_O pai passou por outra cirurgia, precisaram retirar 90% do intestino dele que estava em falência e precisavam de autorização da família para fazer o procedimento.

_E quem autorizou?

_O pai mesmo assinou a autorização, ele ainda estava acordado mesmo após perder tanto sangue.

Logo após o ano novo, meu pai finalmente saiu do hospital. Sem acreditar na força sobre-humana daquele homem, ouço a voz do Exú que me acompanha na minha mente:

_Alegre-se filho, sobrevivemos à noite mais fria do ano.

Por: Tender

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (3)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: