Médiuns.

E o mês Macacos com Navalhas continua. Diego Pontes fez a sugestão e cá estou eu acatando. Falemos então de médiuns. Mas, não estava explicitado o caminho que eu deveria tomar… então não vou fazer questão alguma de contar para vocês a mitologia criada ao redor dessa ideia ancestral. Tem coisa bem mais interessante para se explorar nesse tema indo mais para a base. Com vocês, Desfavor Explica: médiuns.

Vamos deixar tudo bem definido: médiuns são pessoas que praticam a mediunidade, a suposta capacidade de mediar (ah!) a comunicação entre os espíritos dos que já morreram e pessoas vivas. Como não é surpresa para ninguém, a humanidade é fascinada pela relação entre vida e morte desde tempos imemoriais. Tanto que basicamente todo o nosso sistema de crenças religiosas gira ao redor do ciclo de vida e morte e alguma forma de continuidade depois. Pinturas de aborígenes australianos de pelo menos 28 mil anos atrás já traziam indicações de interações mediúnicas.

Mas a popularização dos médiuns como conhecemos atualmente só acontece lá pelo Século IX, muito provavelmente pela maior liberdade religiosa permitida na época. Com Inquisição batendo na porta, duvido que muita gente quisesse se arriscar com alegações de contatos com espíritos… longe dos olhos inquisidores das grandes religiões, povos indígenas puderam manter o hábito por muito mais tempo. Boa parte dos sistemas de crenças desses povos mais isolados inclui de alguma forma uma ou mais pessoas especiais por se comunicar com os antepassados. Quando eu falo de popularização, entenda difusão das ideias e praticantes na Europa e as partes mais desenvolvidas de suas colônias.

No Século IX há uma explosão de popularidade do Espiritualismo em geral, com mais e mais pessoas alegando poderes mediúnicos e atraindo a atenção de pessoas de todas as classes sociais. Desse movimento surge o Espiritismo, doutrina condensada pelos trabalhos de Alan Kardec, e que acabou muito popular em países como o Brasil nos séculos seguintes. Naqueles dias, não havia muita institucionalização dos processos, com médiuns dando shows e cobrando consultas por conta própria. Para a população da época, ainda havia dúvida razoável sobre até mesmo a viabilidade científica da alegação de se comunicar com espíritos. Alguns cientistas famosos da época, como Pierre Curie (vulgo o marido da Marie Curie), demonstraram interesse pronunciado na área.

Mas, as coisas não se sustentaram por muito tempo. Com um maior interesse científico no tema, a imensa maioria dos médiuns famosos da época acabaram expostos como fraudes. Não faziam muito mais do que um ilusionista e sem as condições ideais, não conseguiam provar seus ditos poderes. A febre passou, mas sobraram as religiões. O Espiritualismo em geral ganhou adeptos sem aquela obrigação social toda de ser comprovável, e dali pra frente começou a exigir alguma forma de fé ao invés de comprobabilidade científica para ser aceito pelos defensores. Mas, como bem sabemos, fé nunca esteve em falta no mercado humano. Hoje em dia, com ainda mais liberdade, diversas religiões ainda fazem grande uso de fenômenos mediúnicos em seus rituais, tais como o Espiritismo, a Umbanda e o Candomblé, só pra ficar nas que são populares aqui em terras brasileiras. Religiões como Judaísmo, Islamismo e Cristianismo sempre tiveram alguma forma de transe e possessão corpórea em seus rituais, mas não com alegações diretas de pessoas “comuns” já desencarnadas nesse papel de inquilino corporal. Dica: se quiser saber mais, sugiro tentar pesquisar em outras línguas. O espiritismo é muito forte no Brasil e eles estragaram até mesmo a página do tema na Wikipedia. Português não é uma língua neutra para o tema.

Mas, acabou o amor. Não dá pra continuar este texto sem colocar os pingos nos is: mediunidade não tem comprovação científica, mesmo com mais de um século de inúmeras pessoas tentando provar, desesperadamente. Direito de cada um achar que “tem algo inexplicado aí”, mas eu me sentiria um estelionatário intelectual deixando isso no ar. Algo cientificamente mal explicado é a física quântica não funcionando na escala da física relativística e vice versa. Mediunidade é uma crença religiosa. E como crença religiosa, pode ser explicada por diversos outros mecanismos como desonestidade, autossugestão e distúrbios mentais.

Todas as alegações de capacidades mediúnicas – seja em contato mental com pessoas mortas ou mesmo em manifestações sobrenaturais de telecinesia e afins – que foram colocadas diante do escrutínio científico mais básico… falharam. Entendo a arrogância de dizer que é impossível ser verdade, tanto que não digo exatamente isso, apenas estou dizendo que até o momento atual, não cumpre requisitos básicos para ser considerado parte da realidade. E o fracasso em provar qualquer coisa contrária é tão retumbante e continuado que simplesmente não faz sentido uma defesa racional do processo. Caso seja capaz de sair das sombras da fé, a mediunidade será bem-vinda ao mundo real. Adoraria que houvesse provas de vida após a morte, a nossa finitude é realmente incômoda. Mas… a realidade não liga para o que nos é reconfortante, não?

Eu sei, eu sei… chato só falar que não existe e pronto. Por isso vamos tentar entender o que fica no lugar da crença quando pensamos com mais calma. Não dá pra começar sem as pessoas que mentem na cara dura, os estelionatários que ganham atenção e/ou dinheiro fingindo que falam com os mortos. Quem não se coloca sob o risco de ser exposto pela falta de informações reais sobre os mortos que diz incorporar pode explorar sua imaginação, ainda mais se souber quais as limitações do sistema de crenças em questão. Eu garanto que com algumas migalhas de informação sobre a mitologia de qualquer religião espiritualista eu passo duas horas inventando um mundo pós-morte.

Quem não é muito de inventar histórias fica impressionado com isso, mas é uma habilidade que muitos de nós possuímos. Para uma pessoa com pouco treino em imaginação, uma história como “Nosso Lar” parece espetacular demais para ser inventada. Mas eu vi aquilo e achei um amontoado de furos de roteiro vindo de pessoas com vidas muito chatas. A Cientologia, por exemplo, foi criada por um escritor de ficção bem da vagabunda. Mas, tinha público pra achar aquilo espetacular demais para ser ignorado. Num mundo onde 50 tons de cinza é best-seller, parem de achar que é difícil impressionar os outros com histórias. Se a gente marcar um encontro do desfavor, bolamos uma mitologia de vida após a morte muito mais fantástica e coerente que as espiritualistas antes mesmo de acabar a primeira rodada de cervejas.

E daqui, vamos pra outra categoria de mentiroso: aquele que se coloca no fogo cruzado e fala com os parentes vivos enquanto simula receber um morto. Esses são os escrotos mais escrotos, porque costumam cobrar (e não é pouco) para enganar quem acredita nessas histórias. Aliás, eles até enganam muitos que chegam lá céticos sobre o tema, e tudo isso é fruto de uma tática chamada “Leitura Fria”. Leitura fria é a arte de contar uma história sobre alguém baseado em dicas inconscientes (às vezes nem isso) que humanos tendem a dar para quem conversa com eles. Um “médium” vai começar com frases vagas como “estou vendo a letra B, alguém aqui ter um ente querido cujo nome começa com B?”. Um incauto diz que sua vó se chamava Benedita… ele diz que está vendo uma cozinha, o incauto diz que ela sempre fazia biscoitos pra ele naquela cozinha, percebem o mecanismo? Joga uma isca genérica e só puxa quando a outra pessoa dá significado para ela.

Médiuns desse tipo não conseguem fazer nada se você não der nenhuma dica. E, tomara que você tenha essa chance na vida, não tem como te pegar numa mentira se você guiar eles na direção errada. Inventa um tio-avô chamado Adolf e fala sobre a vez que ele esqueceu o gás ligado… o estelionatário em questão não vai ter como escapar de inventar algo baseado nisso. Ele te diz que seu tio tem uma mensagem, e pode apostar que não são os números da Mega-Sena, e sim alguma coisa que serviria para literalmente qualquer ser humano, como “eu sinto saudades, eu te amo, não desista nesse momento difícil”. Infelizmente muita gente está vulnerável demais – seja pelo psicológico abalado ou pela ignorância – para pensar de forma crítica, e essas pessoas financiam esses safados.

Mas, e quem você sabe que não está ganhando dinheiro ou mal intencionado? Bom, aí a ciência pode ajudar de novo. Eu já falei várias vezes sobre o sistema de empatia humano e a complexidade imensa dele. Você tem várias pessoas que conhece dentro da cabeça, e consegue imaginar como elas reagem a qualquer momento, mesmo que elas não estejam presentes. Como você acha que é possível você falar sobre um amigo que não está lá e o que ele faria naquela situação se não tivesse esse poder de recriar ele dentro do seu cérebro por um momento que fosse? Essa mesma habilidade de “criar” seres humanos dentro da sua cabeça também serve para gerar outros seres puramente imaginários. Crianças tem amigos imaginários, adultos tem deuses e fantasmas. E numa sociedade que não reprime esse tipo de imaginação (culpa de criação religiosa e baixo nível de educação científica dando espaço para superstição), nada impede que o adulto continue a vida toda com esses efeitos colaterais da empatia agindo diante de seus olhos. E atribuindo significados a eles. Não precisa de nada diferente do pacote mais básico do ser humano para sentir uma presença não corpórea ao seu redor.

Essa capacidade aliada ao sugestionamento do tipo “quando você sente uma presença não é só o cérebro humano fazendo o que sempre faz, são seres vindos do além interagir com você” gera a imensa maioria do que consideramos sobrenatural. Um fenômeno muito mais bem estudado que combina extremamente com as alegações da mediunidade é o estado hipnótico. Tem gente que vai querer enfeitar o pavão aqui, mas o estado da pessoa hipnotizada é muito próximo do estado de sono, pela consciência alterada. O cérebro entra nesse modo por um terço da nossa vida! É tão estranho assim entender que o cérebro pode fazer algo muito próximo do que foi programado para fazer todos os dias dadas as condições ideais? Pessoas em transe não são necessariamente mansas, mas a limitação das faculdades mentais apresentadas ali sugere que não é nada tão fundamentalmente diferenciado do sono assim para precisar vir do além. Novamente, são capacidades que já temos ao sair da fábrica.

Não vai caber aqui uma explicação decente, assim como no caso da hipnose (que a Sally já explicou), mas tem outra coisa que explica a mediunidade de pessoas honestas que vai bem mais no alvo: Transtorno Dissociativo de Identidade. As famosas múltiplas personalidades. Quando um indivíduo demonstra características de duas ou mais personalidades no mesmo corpo, cada uma com sua própria percepção da realidade e frequentemente com a capacidade de assumir o corpo de seu hospedeiro por alguns períodos de tempo. Mas já adianto que o tema é polêmico, existem tentativas de cancelar esse tipo de diagnóstico, já que formas de dissociação da própria personalidade são relativamente comuns em diversos outros distúrbios, e até como resposta a traumas severos demais para a pessoa lidar.

Comportamentos dissociativos já marcam pontos suficientes para explicar como algumas pessoas se perdem nos espíritos que acreditam incorporar (amnésia temporal é recorrente nesses pacientes) e como a entidade que “baixa” nunca demonstra capacidade intelectual suficientemente maior do que o hospedeiro. Dissociações de personalidade podem muito bem acontecer quando estimuladas por fé (que apesar de tudo, tem um poder grande na mente de várias pessoas) ou por necessidade de aceitação. Não duvido necessariamente de quem diz incorporar (um dos meus melhores amigos nessa vida diz que sim e fala livremente disso aqui), só duvido da explicação dada para isso. Tem coisas mais lógicas para usar no lugar. De boa? O cérebro humano do jeito que é mil vezes mais fascinante que fantasmas e deuses…

Alegações extraordinárias… faltam as provas extraordinárias. Até segunda ordem, cuide muito bem dessa vida, porque você só tem ela.

Para dizer que eu tiro a graça de tudo, para dizer que sentiu falta da mitologia dessas religiões, ou mesmo para dizer que vai todo mundo pro inferno: somir@desfavor.com

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Comments (3)

  • Todo mundo quer ser especial melhor ainda quando te pagam pra isso.
    Vou na linha só acredito vendo e até hoje não vi nada. Senti falta de uma menção a James Randi.

  • Eu acho um absurdo eu morrer e ir trabalhar no nosso lar. Não assistir o filme , mas se é tipo A viagem eu prefiro ser o Alexandre .
    Partiu o encontro no pé sujo com o povo do desfavor. Leva o Alicate.

  • A maioria é só pra tirar vantagem $ mesmo, mas já tomei conhecimento de algumas coisas, ao estilo relatos Tender medium cético que me deixaram de orelha em pé. Prefiro ser agnóstico mesmo.

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