Chato, eu?

Não faz muito tempo, uma afirmação feita por um professor de psicologia num vídeo que assistia casualmente na internet me pegou de surpresa. Ele dizia, quase que de passagem entre outros tópicos, que a maioria das pessoas não é lá muito criativa, e que pessoas com essa capacidade de abstração e imaginação mais apuradas tem que parar de encher o saco de quem não as tem. Na hora foi um tapa na cara e gerou estranhamento. Mas depois começou a fazer sentido… muito mais do que eu gostaria.

Como deve estar óbvio, eu me considero uma dessas pessoas com maior capacidade de abstração e imaginação mais apurada. Se duvida, use este texto como prova: o simples fato de eu querer gastar seu tempo com um assunto desses vale como exemplo. Ou você tem algo de mais prático e produtivo pra fazer?

Não sei exatamente em que lado dessa história você vai querer se encaixar, talvez como a pessoa muito complexa para os pobres mortais, ou talvez como quem não costuma entender muito desses assuntos mais teóricos. Não precisa ser tão preto ou branco assim, mas admite aí que você sentiu uma inclinação para se colocar numa dessas categorias, ou não sentiu? Se a sua inclinação foi para o lado do complexo demais, vamos conversar sobre como você provavelmente está dando murro em ponta de faca. Se foi o contrário, para o lado de se achar simplório demais para esses temas, talvez você saia deste texto menos incomodado e mais tolerante com esse povo chato do teórico e do abstrato. Não custa tentar.

O motivo pelo qual eu fui pego de surpresa com a afirmação do começo do texto – que gente que gosta de falar de assuntos mais abertos e imaginativos deveria ser menos chata com quem não gosta – foi pela ângulo diferente de ver a coisa. Eu e com certeza muitos de vocês fomos programados a entender a pessoa menos interessada nesse mundo intelectual como a obrigada a se mexer para melhorar as coisas. Que se alguém vem falar de algo que simplesmente não cabe na sua cabeça, que você é inferior e deveria ter feito melhor. E mesmo que você pense agora que manda os nerds calarem a boca sem se abalar e se sente ótimo como é, será que esse pensamento não é uma forma de afirmação meio agressiva?

Normalmente reservamos agredir para situações onde o medo está no controle. E não precisa ser porrada nem grosseria, pode ser só desdém ou deboche para fazer o outro se sentir pior. O que eu quero dizer aqui é que existe sim uma espécie de intelectualismo (crença na superioridade da inteligência) por todos os lados da nossa sociedade moderna. Algumas pessoas vestem essa camisa e se acham superiores por serem inteligentes, mesmo as que não fazem muito para se desenvolver no intelecto; já outras pessoas reagem negativamente a quem julgam mais inteligente por sentir alguma ameaça nesse aspecto. A própria rejeição ao que é mais avançado intelectualmente que vemos em países como o Brasil demonstra como essa crença de superioridade do intelectual já faz parte da nossa visão do mundo. Por que tratar mal e tentar agredir quem não oferece nenhum risco? Não faz sentido.

Se tem gente fazendo pose de inteligente e gente que rejeita inteligência em números tão grandes nesse mundo, é porque de alguma forma concordamos que isso é importante. Eu sei que você não é um personagem mal escrito de filme que só sente uma coisa ou outra, que tem muitos graus entre os extremos de como se enxerga assuntos mais abstratos, mas se tem uma coisa que o mundo moderno está craque em fazer é polarizar as visões das coisas. Talvez você, assim como eu, caia nessa teia de tempos em tempos.

E é nessa hora do extremo, quando você está frustrado com a incapacidade do outro de entender o seu lado, é quando a frase faz mais sentido: estamos mesmo numa armadilha, a de acreditar no intelectualismo o suficiente para nos doermos pelo lado que ficamos nessa disputa. A coisa pode ser muito mais simples, pode ser mera diferença de interesses. Turmas diferentes. Não tenho orgulho de dizer isso não, mas por muito tempo eu quase que sentia um dever com o universo de iluminar a cabeça dos outros com minhas ideias brilhantes. E foda-se se eu estivesse me esforçando para alcançar o outro. O simples fato de estar tratando de algo que julgava profundo fazia valer. O burro que se esforçasse para me entender (mesmo quando não conseguia dizer nada com nada, porque… acontece…).

Sei que deve ser óbvio para muita gente, mas para alguns de nós não é: não adianta esperar que outras pessoas te entendam. Que queiram visões diferentes das coisas, que queiram criar, que queiram passar horas discutindo conceitos totalmente distantes de suas realidades… sim, óbvio. O que eu não acho óbvio é a parte de entender que não é obrigação de ninguém se adaptar a esse tipo de interesse. Porque quando você cai nessa furada de intelectualismo, parece mesmo um dever divino enfiar essas ideias garganta abaixo das outras pessoas. Não é. Para algumas pessoas, falar sobre sua coleção de selos é a coisa mais importante do mundo, e isso não te obriga a gastar seu limitadíssimo tempo nesse mundo entretendo-as.

Política, religião, filosofia, astronomia, psicologia, computação… pode ter certeza que para alguém o seu tema mais querido isso vai ser uma “coleção de selos”. A diferença é que é mais aceitável dizer que não se interessa por um tema como coleção de selos sem se sentir inferior por isso. Na verdade, o grande lance da humanidade é a especialização, pessoas focadas em coisas diferentes gerando diversidade e profundidade em vários temas ao mesmo tempo. Tudo bem não ter saco para a maioria das coisas sobre as quais se pode aprofundar nessa vida, não daria tempo mesmo.

E não precisa virar anti-intelectual por isso. É o veneno da falsa crença da superioridade de alguns temas estragando o seu mundo também. Tem gente chata desses temas complexos que só está empolgada com sua coleção de selos, e tem gente que só quer dividir com você algo que acha que vai te acrescentar. Claro que tem os chatos que estão nessa de intelectualismo para se sentirem superiores, seja lá porque a autoestima deles tenha quebrado no caminho até te conhecerem. Mas mesmo essas pessoas não tem tanto poder assim… deixa eles se contorcerem quando você não der trela.

Já para o público que se identificou com ser criativo e abstrato demais para as massas e sofrer com falta de conexões verdadeiras de interesse, você provavelmente está dando murro em ponta de faca. Porque a realidade é que as pessoas são muito diferentes e poucas vão ter o mesmo amor por um tema que você, e azar seu se você acha importante. E por uma questão estatística mesmo, menos e menos pessoas vão estar em sintonia quanto mais abstrato e complexo um assunto fica. É normal sentir-se isolado porque você é sim uma anomalia, mas se serve de consolo, jamais foi tão fácil ser uma anomalia na história da humanidade, graças à internet.

Mas, um excelente conselho mesmo que eu vou tentar botar em prática sempre que puder: não fique enchendo o saco de quem não tem esse tipo de pensamento. Valorizar o intelecto é excelente, mas o intelectualismo não nos ajuda em nada. Superioridade é uma coisa que só você sente, por definição. É normal que você não tenha muito sucesso em passar esses interesses para frente, e é bem chato sim quando alguém é obrigado a encarar assuntos que não tem o menor interesse. Não é rejeição a você, e sim à sua coleção de selos. Vai procurar a sua turma, e digo isso com a melhor das intenções.

Para dizer que é filatelista e ficou chateado, para dizer que foi arrogante sem ser vulgar, ou mesmo para dizer que achou muito raso: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Os intelectuais produzem um certo receio, pois dá a impressão de que você será ridicularizado pelo que fala.
    Comento no blog anônimo mesmo hahahaha

    É sensacional conhecer alguém assim, me causa fascínio, eu poderia passar horas sem dizer uma só palavra, somente escutando as ideias da pessoa, que parece ter uma infinidade de conhecimento sobre qualquer coisa.

  • Tive que estar dos dois lados pra entender o quanto é chato e o quanto as vezes eu sou chato, quando você estuda muito profundamente um assunto ou faz uma graduação em determinada área você tem muito a falar sobre isso e é complicado lidar com o fato de que nem todo mundo tem o mesmo interesse que você naquilo, se pra você é interessante e pro outro pode ser um saco falar sobre inteligencia artificial ou arquitetura de processadores.

  • A conversa vale mais do que o assunto. Às vezes conversando sobre peido surge um insight, uma ideia, um conceito que acrescenta demais na vida da pessoa.

    A merda é que se categorizam assuntos: quem fala de física e matemática é interessante, quem fala de reality show e Rafael Pilha é burro. Não. É a pessoa que conta, não o assunto.

    Luto contra esse “preconceito temático” desde o início do Desfavor. Nascem flores no estrume, todo assunto é válido quando a pessoa é interessante.

    • Concordo totalmente, Sally! Às vezes as pessoas olham com espanto e desdém quando alguém que se julga inteligente/interessante fala sobre novela ou reality show, como se isso diminuísse a pessoa.

      Vou levar pra vida essa frase, porque ficou super impactante:

      “Nascem flores no estrume, todo assunto é válido quando a pessoa é interessante.” (Somir, Sally – 2018)

      • Outro dia recebi um e-mail bem mal educado, tipo dedo na cara, dizendo que a gente se acha muito intelectual por não falar em Big Brother. Foram longos parágrafos de esculacho. Isso me fez pensar sobre o assunto.

        Nós realmente não gostamos de Big Brother, mas suponho que quem seja elitista intelectual não faça uma cobertura em tempo real da Fazenda, vibrando quando o Dinei urina nas coisas da Joana Machado. Então, foi aí que me caiu a ficha que não é sobre o tema. Nunca foi sobre o tema. Muito pelo contrário, quem precisa se esconder atrás de temas “intelectuais” e sérios certamente tem algo a esconder, está fazendo questão demais de passar uma determinada imagem.

        • Mas aí é porque tem leitores sem noção que aparecem para comentar sem se dar ao trabalho de saber onde estão. Eu acho indispensável que a pessoa leia váaaaarios textos antes de começar a comentar. Todo ano chega alguém perguntando sobre BBB quando vocês já disseram mil vezes que não falam sobre o tema, que não gostam. Eu acho irritante. E BBB já deveria ter acabado a 10 anos atrás. Nada contra as pessoas que tem o sonho de ficarem milionários.

          • Falta a compreensão de que não é por elitismo, gente não gosta porque não nos agrada. É uma presunção automática, absoluta, que se faz com muitas outras situações na vida real. Tem que tomar cuidado…

  • O problema do intelectual é que seu principal inimigo é a maioria da sociedade: o tipo de pessoa que não está nem aí para detalhamentos, focado no tempo presente e que odeia sair do lugar comum. É aquele cidadão que sempre vai te pedir para “ser objetivo”, porque “não tem tempo a perder” com “filosofias” – enquanto baseia sua vida em ideias pré-concebidas que, muitas vezes, não funcionam a contento.

    Esse cidadão, o “objetivo demais”, mata toda chance de uma solução criativa. Gostaria de fugir deles, sempre que possível – até porque não dá para mandar pessoas imbecis para o inferno o tempo todo.

  • “já outras pessoas reagem negativamente a quem julgam mais inteligente por sentir alguma ameaça nesse aspecto.”

    Somir, eu já percebi esses dois lados da moeda com pessoas que conversei apenas por conversar, e mesmo com pessoas que estava conhecendo, flertando e tal.

    Por um lado, tem os que admiram a “inteligência” alheia, ficam admirados e acabam que querendo participar da conversa, interagir contigo e aprender ainda mais. Por outro, há aqueles que se sentem intimidados de alguma maneira e acabam que te tachando de chato, metido, mesquinho, ou qualquer outro adjetivo do tipo. Já senti muito isso na pele tanto nos tempos de graduação quanto no trabalho, enfim. É foda.

    • Talvez a pessoa nem admire inteligência, porque é algo meio abstrato de admirar… mas ela pode estar admirando a troca de ideias que está acontecendo ali. Acontece com todo mundo, creio eu. Assuntos acabam valendo mais no final das contas.

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