No amor e na dor.

O aprendizado é uma constante na vida, ou pelo menos deveria ser. Sally e Somir discutem qual a melhor forma de gerar transformação em ideias e atitudes, os impopulares ensinam também.

Tema de hoje: aprende-se melhor através da dor ou do amor?

SOMIR

Dor. Não que seja a opção mais bonita, não que seja o que eu considero um mundo ideal, mas analisando o funcionamento das coisas até aqui, a dor parece uma professora mais eficiente que o amor. E isso tem um motivo: a dor oferece um senso de consequência muito mais tangível. Até porque essa é a função evolutiva da dor, gerar respostas imediatas que não podem ser ignoradas.

Você sente dor em situações que o corpo determina perigosas para a própria existência. O reflexo natural é de fugir da dor, porque por muita tentativa e erro, a vida na Terra aprendeu o que joga contra sua perpetuação. O que fere o corpo deve ser evitado com a maior velocidade possível, e o cérebro sabe disso, pois coloca essa sensação em prioridade máxima sobre qualquer outra assim que recebe os sinais do sistema nervoso.

No ser humano, com sua complexidade intelectual bem maior que a dos outros seres vivos, dor pode assumir significados mais abstratos. A dor psicológica não berra por prioridade da mesma forma que a física, mas mesmo assim tendemos a manter ela bem no topo das nossas mentes assim que se instala. O medo de uma consequência psicológica negativa (sofrimento) está muito perto do sentimento de dor física. Então, quando falo de aprender pela dor aqui, pode ser medo de tomar uma porrada física ou uma psicológica como humilhação ou ameaça de abandono.

E é nessa prioridade negativa do ser humano que eu baseio meu argumento. Aprender pelo amor é muito válido sim, mas vem sem senso de perigo. O que por si só é um perigo para mentes tão viciadas em causas e consequências. Praticamente todos nós temos um problema em comum: falta de tempo. Seja porque você lota sua agenda de coisas para fazer, seja por uma natural preguiça de mudar prioridades, a sua moeda de troca nessa vida tende a ser tempo. Sem nenhum estímulo externo forte o suficiente, você tende a não conseguir achar tempo para focar em algo novo.

E com esse tipo de problema médio, a pressão que a dor gera vence de longe o método de compensação e reforço positivo do amor. No amor, parece que você tem tempo pra tudo ainda, na dor, o relógio está batendo os ponteiros na sua cabeça. Suas prioridades mudam muito mais rápido, fugir da dor é um dos focos principais do cérebro. Posso até ceder o ponto que não é muito inteligente precisar de dor para aprender as coisas, mas não o ponto de que estamos falando da média das pessoas desse mundo.

E a média não é lá muito adepta do aprendizado. Estudos de Q.I., que medem capacidade de aprendizado (não necessariamente de inteligência já estabelecida como muito se acredita por aí) indicam que pelo menos 10% da humanidade está abaixo da faixa de capacidade de aprender até mesmo coisas simples, em geral! O grosso da população humana não melhora muito até chegar nos 10% superiores da média. O cérebro humano foi feito para aprender, mas nem todo mundo tem uma boa fiação dentro dessa máquina. E pior, a capacidade de aprendizado vai desabando com o tempo.

Argumento aqui que para aprender pelo amor, a pessoa precisa pra começo de conversa ter amor pelo aprendizado. E isso é difícil, especialmente em cérebros onde o aprendizado é muito sofrido e demorado (e às vezes nem com esforço avança). Para a experiência de aprender ser algo gostoso e progressivo, não basta um professor bem intencionado e um método positivo, precisa que a pessoa aprendendo tenha capacidade de colocar seu foco nisso. Infelizmente uma parcela considerável da humanidade só vai conseguir entrar nesse estado de foco com uma prioridade forçada pela dor. E mesmo assim, com resultados discutíveis.

Porque eu sei que vai surgir o ponto de que a pessoa que aprende pela dor não aprende de verdade, só reage a um estímulo externo e obedece, e eu não necessariamente discordo. O que eu digo aqui é que considerando a média (e pra variar é sobre isso que o “Ele disse, ela disse” discute toda semana), não tinha alternativa mesmo. Só dava para ensinar para a pessoa um truque mesmo, não um novo ponto de vista que possa ser livremente relacionado e associado com conhecimentos passados ou futuros.

Aprendizado é muito mais difícil do que se presume, não é esse papo hippie feliz que todo mundo tem potencial. Infelizmente, boa parte da humanidade está travada num limite virtualmente impossível de aumentar. A inteligência média do ser humano sobe de geração em geração, não dentro delas. Talvez no futuro o ponto da Sally valha mais que o meu, mas hoje em dia, precisamos apelar o máximo possível para conseguir qualquer grau de aprendizado na população média. E no amor, fica tudo muito abstrato para essas pessoas.

A melhor solução é tentar reconhecer no outro a capacidade de aprender no amor, não vai ser a maioria das pessoas que você vai conhecer, mas se você sentir nela o gosto por aprender gerado pela possibilidade de um cérebro mais elástico, vale muito a pena. Mas, respondendo a pergunta que fazemos no texto de hoje, presuma que qualquer pessoa nova que você conhecer ou mesmo as que já dão sinal de estagnação intelectual vão precisar de algo muito mais imediato como a dor para entender alguma coisa.

Para ensinar por amor, precisa de muito mais trabalho inicial, precisa passar pelas barreiras da pessoa de acomodação, precisa reconhecer ali um gosto genuíno pelo aprendizado e precisa que ela consiga refletir o sentimento de volta. Algo com tantas barreiras de entrada dificilmente pode ser considerado a melhor forma de fazer, não? Se você quer ensinar, a dor vem na frente por ser mais óbvia e funcional. Se você conseguir fazer sem dor, parabéns para professor e aluno, vocês estão fora da média por uma larga margem.

Para dizer que aprendeu muito com esse texto, para dizer que não entendeu porra nenhuma, ou mesmo para dizer que Q.I. é uma invenção dos burgueses para oprimir o povo: somir@desfavor.com

SALLY

Aprende-se melhor através da dor ou através do amor?

Do amor, dor é último recurso, para quando nada mais funciona, não melhor forma de aprendizado!

Esse mito que só se aprende na dor é uma construção bastante equivocada. Nosso cérebro fixa o aprendizado pela dor por causa do trauma que ele causa, é um mecanismo evolutivo de sobrevivência: se você leva um choque ao colocar o dedo na tomada, isso fica gravado na sua mente. Não quer dizer que é melhor aprender assim. Aprendizado no amor também se fixa, também cumpre sua função, apenas não fica vívido na forma de um trauma, o que, a meu ver, é muito melhor.

Como você decidiu educar seu filho? No amor, ensinando que se colocar o dedito na tomadita leva um choquito e, em última instância, se ele o fizer, aprenderá na prática ou na dor, sem adverti-lo de absolutamente nada, apenas observando o que vai acontecer quando ele decidir enfiar o dedo lá? Bem, suponho que quem entende que se aprende melhor na dor, deixe o filho meter a mão em faca, mexer em tomadas e cometer toda sorte de erros que não o matem. Quem entende que no amor é melhor, sempre tenta isto antes.

Se você está lendo isto, eu suponho que você tenha sobrevivido à sua infância. Certamente, assim como eu, você tem alguns traumas de cagadas que você fez que te ensinaram na dor, mas a maior parte do seu aprendizado deve ter sido no amor, e nem por isso você aprendeu “menos”. Uma infinidade de coisas que você nunca fez porque poderiam te causar dano, te adoecer ou te colocar na cadeia, você não fez sem precisar vivenciá-lo. Ensinar no amor funciona, a maior prova disso é que você está vivo hoje.

Se a pergunta fosse: “Ensinar no amor é 100% eficiente?” eu responderia que não. É natural do ser humano testar limites. De cada 100 coisas que são ditas para não fazer, talvez a gente faça umas 4 ou 5. Mas todas as outras 95 entraram na base do amor, e sem deixar sequelas de um evento traumático. Não é preciso sujeitar a pessoa à dor, ao trauma, ao sofrimento para que ela aprenda, a menos, é claro, que seja uma pessoa extremamente teimosa, cabeça dura e dona da razão, como a Madame aqui de cima. Nesse caso, sim, é só pela dor mesmo. Mas Somir não reflete o resto da humanidade, não é mesmo?

Pare. Pense. Reflita. Quantas coisas você já não aprendeu pelo amor, ou seja, sem precisar sentir dor, sofrimento ou trauma. Quanta coisa que, por não estarem vívidas como um evento que te colocou em risco, entraram e você nem sentiu? Se o melhor aprendizado fosse pela dor, o ser humano estava extinto, pois temos que aprender coisas demais na vida para passar por dor cada vez que o fazemos. A verdade é que nunca paramos de aprender, desde o dia em que nascemos até o dia em que morremos, como alguém pode pensar que o melhor é viver uma vida com constante dor?

Caindo no empírico, pegue crianças educadas na dor e crianças educadas no amor e veja o que é melhor. Qualquer psicólogo, pediatra ou até mesmo qualquer mãe com bom senso vai te dizer que se aprende melhor no amor, pois a informação se fixa da mesma forma (ainda que não fique tão vívida, ela está lá) sem o ônus do trauma que a dor causa.

Não é por coincidência que minha escolha “editorial” aqui no Desfavor sempre foi sentar o sarrafo na hora de fazer piada e criticar mas falar de forma neutra e às vezes até amorosa quando a intenção é ensinar alguma coisa. Colunas com essa proposta, como o Desfavor Explica, dificilmente contém agressões voluntárias, tapas na cara ou qualquer outro recurso que apele para a dor. Isso se chama “walk the talk”, não estou defendendo algo em teoria aqui, eu coloco em prática esta linha de pensamento há dez anos.

Além disso, é bem discutível essa coisa de que a dor fixa informação. Muitas vezes a dor fixa informações erradas, através de traumas, fobias, medo e outros sentimentos negativos que mais distorcem a realidade do que ensinam. Uma criança que aprende que não se deve brincar com fogo depois de iniciar um incêndio e sofrer queimaduras, provavelmente vai levar consigo um dano colateral bastante nocivo desse aprendizado. Vale a pena? É esta a melhor forma de fixar conhecimento? Associado a medo? Ganhando de brinde uma série de sentimentos ruins limitantes para o resto da vida? Desculpa, não acho esta a melhor forma.

O fato de, eventualmente, em casos extremos, precisarmos da dor para aprender, o não quer dizer que ela seja a melhor forma, que ela deva se tornar a regra ou que ela seja mais eficiente. A dor é recurso extremo, é exceção para momentos de absurda cegueira ou teimosia. Felizmente, esse não é o estado normal dos seres humanos (não da maioria).

Na verdade, eu até questionaria se a dor promove realmente aprendizado: o rato que leva um choque quando entra em determinado local aprende que não tem que entrar lá ou apenas fica com medo daquilo? A criança que leva um choque quando coloca o dedo na tomada aprende o perigo da eletricidade ou apenas passa a evitar aquele local por um trauma?

Se você ensina a uma criança os perigos da eletricidade através do diálogo, do amor, ela provavelmente vai tomar cuidado com tudo que envolva eletricidade: lâmpadas, tomadas, fios, etc. Há compreensão do como, onde e do por que. A dor te afasta daquela situação concreta, mas não te ensina a lidar com o problema em abstrato. Talvez a dor nem ensine, apenas traumatize. Somos melhores do que isso, ao menos na maior parte do tempo.

Não estou negando que eventualmente a dor é necessária, mas porra, dizer que é melhor que o amor é foda.

Para dizer que meus Siago Tomir atestam o contrário, para dizer que o ideal é ter os dois juntos ou ainda para dizer que para quem só conhece o martelo, tudo é prego: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Seus Siago Tomir atestam o contrário, Sally!

    E sim, ideal é mais amor, mas um pouco de dor às vezes é necessário. Conversamos já sobre isso. Tem muita coisa que se explica com o maior carinho, mas quando vira desafio, requer soluções mais drásticas e educativas, vindas de você mesmo (castigo, esporro, etc) ou da situação em si (tomou choque, foi? eu avisei!).

    Senão acontece igual à tal menininha e sua festa de peitos. Ela estava irredutível, né? Conversou no amor, nada feito? Então diz logo “não” e pronto, e deixa a criança conviver com a dor de não ter sua vontade atendida. O mundo pode ser triste e cruel, isso acaba sendo um aprendizado.

    • Sim, dor como último recurso é super válido!

      Bacana a noção de uma criança de três fuckin´ anos irredutível, né? Taí uma novidade que eu nunca tinha visto…

      • Nossa, Sally… Pra nós, que convivemos com crianças na rotina, o que mais tem é criança de 3, 2… até 1,5 anos! irredutíveis…

        Já não é novidade há um bom tempinho, infelizmente!

        • Mas Nanda, se a criança fica nesse estado… “irredutível”, basta que os pais não façam o que ela quer. Criança nessa idade não tem condições de bancar irredutibilidade. Juro que não entendo…

          • Mas aí é que está! A criança só fica nesse estado porque os pais fazem tudo que ela quer!

            O mundo tá todo errado mesmo!

      • Tem uma fase, geralmente entre 2 e 3, que o pessoal chama de adolescência da infância. É quando a criança percebe que ela é gente, tem vontades e desejos e passa a querer impô-los.

        É nessa fase, a partir dela, que o “pau come”. Os pais têm que estar preparados pra mostrar pra criança que não é tudo o que ela quer que pode ser atendido quando ela quer. Tem que contrariar mesmo. Com amor ou com dor, se necessário (nada violento ou sanguinário, pode ser castigo, um beliscão, um tapinha).

        Criança irredutível? Ela pode até parecer. Mas quem ganha, eu, marmanjo burro velho e barbado, ou ela? Eu, claro.

        Mas, porém, contudo e todavia, tem muuuitooo pai que não entra no jogo pra ganhar, por culpa ou displicência. São os filhos da geração mimimi, que quando crescer vão puxar os pais e chorar em posição fetal quando o mundo cruel e malvadão os contrariar.

        • Sim, os “Terrible Two”, infelizmente já vi isso de perto. Mas desde que o mundo é mundo criança passa por essa fase e só de dez anos para cá é que temos criança mandando em pai. Então, eu não culpo fase nem idade e sim pais que não tem saco para dar “não” para filho (dizer não dá trabalho) ou não tem tempo de educar, jogando a coitada da criança o dia todo na creche, porém aplacando sua consciência com a classica frase “Fulaninho adora ir para a creche”. Ahan, Fulaninho não sabe o que é melhor para ele. Melhor para uma criança é ser educada em tempo integral pelos pais e não pela tia sa creche. Aí nascem esses demônios mal educados e irredutíveis…

  • Pelo amor, sem dúvida, mesmo porque, além de fazer alguém aprender com amor, o amor-próprio é outra forma de obter aprendizado, que traria consigo uma motivação intrínseca (maior) e a autonomia para buscá-lo…a melhor delas, acredito.

    • Sim, ótima observação. Uma vez vi a Madonna dizendo “vou ensinar amor próprio à minha filha, a se amar e se respeitar, assim não precisarei ensinar nada sobre os homens”. Pena que agora ela está com demência senil.

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