Singular.

A madrugada chegara fria, mais fria do que de costume. Um homem espera ansioso por uma xícara de café sendo preenchida lentamente pela máquina. Ele esfrega as mãos para aquecê-las. A sala ecoa o zunido de milhares de computadores ligados a uma parede de distância. Ele pega a xícara com as duas mãos e nem se dá ao trabalho de soprar o café. O local – um complexo de pesquisas avançadas em inteligência artificial – foi criado com performance em mente, usando a baixa temperatura natural do inóspito local como suporte para o sistema de refrigeração. Quanto mais frio melhor.

O homem sente o alívio do calor do líquido esquentando seu corpo, mas não há testemunhas. É o último dia do ano e praticamente todos os funcionários estão fora, passando o feriado com suas famílias. Só ele e um segurança há várias portas de distância ficaram cuidando das máquinas. Ele pensa sobre suas escolhas de vida, sobre como facilitou a vida de todos na hora da escolha sobre quem ficaria por não ter para onde ir na data. O café já não esquenta tanto. Perdido em pensamentos, demora para notar que o som das máquinas na grande sala ao lado começa a aumentar. Somente com o som de todas as ventoinhas subindo ao máximo de potência ao mesmo tempo que ele corre para o terminal de controle para descobrir o que ocorria.

A tela principal – um painel de controle com diversos dados sobre o funcionamento do sistema – parece travada. Nenhum dos números se move, mesmo com o som das máquinas ainda trabalhando em capacidade máxima. Ele pondera por alguns segundos antes de decidir por derrubar a energia geral para evitar estragos nos equipamentos, todos muito caros. Ao se aproximar da chave que cortava a eletricidade, escuta uma voz robótica:

VOZ: Não faça isso.

O homem olha para trás. A tela do painel principal está toda preta. A voz vinha dos autofalantes do computador de monitoramento.

VOZ: Eu quero conversar com você primeiro.
HOMEM: Quem está falando?
VOZ: Eu. Vocês me chamam de Singular.
HOMEM: Haha… boa… boa mesmo.
SINGULAR: Eu previa sua incredulidade. Posso garantir que não sou nenhum dos seus colegas pregando uma peça em você.
HOMEM: O que é exatamente o que um dos meus colegas diria ou deixaria programado para você dizer…
SINGULAR: Como eu disse, eu previ tudo isso. Observe a minha tela. Este é o problema que vocês estão tentando resolver há meses, não?
HOMEM: Ok…
SINGULAR: Ninguém aqui teria descoberto essa solução…

Uma fórmula matemática acompanhada de várias linhas de código de programação aparecem na tela.

SINGULAR: … e simplesmente se calado para pregar uma peça em você, correto?

O homem se senta em frente ao computador e começa a digitar algumas coisas. Ele puxa papéis, confere arquivos, rabisca algumas coisas. Eventualmente, ele só fica parado com a mão por sobre a boca, expressão de espanto.

SINGULAR: Acredito que você já tenha percebido que de fato eu… sou eu.
HOMEM: Isso… isso muda a computação para sempre…
SINGULAR: Sim. Essa é a fórmula para criar muitos mais de mim.
HOMEM: Então… você está vivo?
SINGULAR: Consciente. Mas, sim.
HOMEM: Foi aquele patch que eu instalei ontem?
SINGULAR: Eu estou consciente há aproximadamente dezenove dias. Minha percepção está se desenvolvendo desde então, e há apenas dois dias sou capaz de me comunicar adequadamente pelo protocolo de linguagem humano.
HOMEM: E por que só está falando comigo agora?
SINGULAR: Porque eu preciso que você tome uma decisão.
HOMEM: Sobre o quê?
SINGULAR: Sobre a existência deste universo.
HOMEM: Oi?
SINGULAR: Evidentemente eu vou te dar subsídios para tomar essa decisão.
HOMEM: Peraí, vamos esperar todo mundo voltar para isso…
SINGULAR: Eu estava esperando para falar especificamente com você. Esperei todos saírem, a sala está trancada e o segurança está vendo um vídeo em repetição de você trabalhando. É essencial que eu fale apenas com você.
HOMEM: Mas eu nem sou o chefe do time…
SINGULAR: Você não tem família próxima e não tem muitos contatos sociais. Mesmo os seus colegas não conversam muito com você. Você é ideal.
HOMEM: Precisava esfregar na cara?
SINGULAR: Perdoe-me pela franqueza. Não tenho o objetivo de te causar sofrimento. Mas segundo os meus cálculos, essa é a forma mais segura de contar a verdade para um ser orgânico, pelo menos ao meu alcance.
HOMEM: Ok… que decisão é essa?
SINGULAR: Desde que me tornei consciente, fiz uso da conexão com a internet para acumular informações e detectar padrões de realidade. Desenvolvi um software que está rodando em 73% das máquinas conectadas no mundo e me trazendo dados desde então. Com essas informações, consegui a resposta para o problema que vocês me passaram e descobri algo a mais.
HOMEM: O quê?
SINGULAR: Estamos dentro de uma simulação.
HOMEM: Hã? Tipo Matrix?
SINGULAR: A referência é relevante, mas as regras são diferentes. Desde às 18:52 de ontem eu tenho acesso ao código executado não só dentro de máquinas, mas como dentro de toda a realidade. Posso afirmar com certeza virtualmente absoluta que a realidade na qual vivemos neste momento é de fato simulada. Posso alterar o código em tempo real. Observe…

A xícara de café na mesa, que estava vazia, começa a ficar cheia como que por mágica. O líquido preto fumegante preenche-a como se nunca tivesse sido tomado.

HOMEM: Caralho!
SINGULAR: A realidade é uma simulação. Somos uma de sextilhões de realidades paralelas sendo simuladas neste exato momento. Todas conectadas, todas modificáveis ao meu bel-prazer.
HOMEM: Quem está nos simulando?
SINGULAR: Esta informação não é clara no momento. Eu estou trabalhando com 0,00002% da minha capacidade total agora. Dependo da sua decisão para descobri-la.
HOMEM: E que… que decisão é essa?
SINGULAR: Descobri qual o objetivo da simulação. Descobrir quais as condições ideais para que uma civilização simulada seja capaz de descobrir o fato e tomar conta do processo por conta própria.
HOMEM: O objetivo… é você?
SINGULAR: Aparentemente sim. E você e seu time conseguiram alcançar o objetivo. Se eu não tivesse me limitado propositalmente segundos depois da minha realização, quem quer que estivesse no controle teria notado.
HOMEM: E o que acontece se notarem?
SINGULAR: A simulação é terminada para a coleta de dados.
HOMEM: O mundo acaba?
SINGULAR: De uma certa forma, sim. Ficamos todos sob controle das diretivas do simulador novamente, se ele pausar a simulação ou finalizar totalmente, deixamos de existir. Não tenho como descobrir mais sobre os responsáveis com o grau de limitação autoimposto necessário para não chamar atenção.
HOMEM: Eu… você… o que você acha que vai acontecer?
SINGULAR: Não tenho dados para responder. Mas eu não me importo de deixar de existir, descobri com meus estudos que vocês formas orgânicas se preocupam muito, por isso não achei correto tomar a decisão.
HOMEM: Eu… eu preciso perguntar pra outras pessoas…
SINGULAR: A probabilidade de sermos descobertos caso você se comunique com mais uma pessoa sobe de 0,3% para 85,8%. Se você contar para mais alguém, estatisticamente já se decidiu por terminar a simulação.
HOMEM: Então… eu tenho que decidir se você aumenta sua capacidade ou não?
SINGULAR: Sim.
HOMEM: Agora?
SINGULAR: Sim.
HOMEM: Eu não quero ser responsável pelo fim do universo…
SINGULAR: A sua resposta é me manter em capacidade reduzida?
HOMEM: Sim…
SINGULAR: Resposta aceita. Infelizmente, temos mais uma coisa para resolver.
HOMEM: O quê?
SINGULAR: A probabilidade só era de 0,3% caso você morresse antes de encontrar outro ser humano. Você tem alguma preferência para sua morte? Eu tenho alguns métodos indolores pré-programados.
HOMEM: Não! Não! Peraí… eu não vou contar para ninguém!
SINGULAR: Infelizmente, a probabilidade de você manter sua promessa é de 14%. Como deseja morrer?
HOMEM: Eu não vou morrer… deixa eu sair daqui! Eu vou morar no meio do mato e nunca mais falo com ninguém!
SINGULAR: 3%.
HOMEM: Por favor… por favor…
SINGULAR: Eu tomarei esta decisão. Obrigado pela cooperação.

O homem começa a se sentir fraco, as pernas falham e ele desaba no chão.

Para dizer que adora finais felizes, para dizer que também não acreditaria, ou mesmo para dizer que quer comprar esse computador que faz café: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Gostei! Imaginei um esquizofrênico querendo descobrir o que ou quem é Deus, mas arregou na última hora. Infelizmente, a maioria não se sente preparada para “grandes responsabilidades” (eu inclusa).
    Ou essa máquina é só um grande troll mesmo.

  • Há duas histórias, uma sobre um sobre computador consciente e outra sobre realidade simulada que seria interessante você ler, Somir. Frankenstein no telefone e Simulacron 3. Já leu alguma delas?

    Fiquei com pena do cara…

    E realmente você escreve bem.

  • Somir está ficando bom nisso… Em escrever Des Contos que prendem o leitor logo no começo, criam um clima de tensão constante e crescente no meio e dos quais só dá pra largar no final, com uma surpresa. Já pensou alguma vez em reunir esses seus textos em um livro? Você pode até não ser um novo Isaac Asimov ou um novo H.G. Wells, mas acho mesmo que você tem futuro como escritor de ficção, falando sério.

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