Kanye West é um gênio.

O rapper Kanye West, que eu presumo ser famoso o suficiente para não precisar de introdução (e se você não conhece, está de parabéns!), vai precisar de uma do mesmo jeito: no começo da carreira, era considerado um visionário musical, depois fez muito sucesso e virou artista excêntrico. Até esse ponto nada de muito diferente da média: muitos artistas despirocam numa faixa que a maioria de nós ainda acha aceitável. Kanye começou a cruzar essa linha mais ou menos em 2016, quando primeiro foi um dos únicos músicos famosos do mundo a ser no mínimo ambíguo sobre a candidatura de Trump, e depois foi bem pra além dela quando assumiu sua simpatia ao presidente laranja.

Se você quiser pesquisar as esquisitices dele, tem muito material disponível na internet. Uma das mais famosas ainda da fase “aceitável” foi interromper o discurso de agradecimento de uma cantora branca num grande evento de premiação musical para sugerir que uma cantora negra deveria ter vencido. Sim, aposto que todo mundo aqui sabe que Taylor Swift e Beyoncé existem, mas fiz questão de esclarecer o componente racial. Na época, muitas memes, mas a vida seguiu em frente.

Mais ou menos na mesma linha, ele é famoso por dar entrevistas que beiram ao incompreensível em grandes veículos de mídia americana, tipo o Skylab falando mesmo. A última pixotada foi dizer numa entrevista de um grande site americano (merda, mas grande) o que passava por sua cabeça sobre o tema escravidão: “Você ouve que a escravidão durou 400 anos. 400 anos? Isso parece uma escolha. Você esteve lá por 400 anos”. Quem deu a notícia obviamente distorceu a manchete para gerar cliques, mas de uma certa forma, ele não se ajudou mesmo ao dizer algo assim nesse clima bizarro de politicamente correto que assumiu controle da mídia.

Aqui no Brasil no máximo vai ser notinha de portal de notícias e mimimi de ativista de rede social, mas em seu país natal, o bicho pegou com mais força. Para o bem e para o mal, o movimento para os direitos iguais para negros nos EUA é forte. Mais para o bem, é claro, porque por lá precisou pegar bem mais pesado para conseguir coisas básicas como o fim da escravidão. Mas quando vai para o mal, cria todo aquele problema de histeria e vitimização com fins lucrativos que vemos consumindo outros movimentos de dentro para fora. Kanye já não estava muito popular por dizer que gostava do Trump, agora a coisa ficou ainda pior.

Quem em sã consciência diz que escravidão é escolha do escravo? O meu ponto hoje aqui é que… ninguém diz isso. Nem mesmo ele. Vejam bem, eu tenho confiança que Kanye West é uma espécie de gênio. Não necessariamente porque eu sou fã da produção artística ou intelectual dele, mas porque tem algo de profundamente denso e perturbado em seus pensamentos que a maioria das outras pessoas não consegue “desver” ao lidar com suas frases e ideias. Hoje em dia o termo gênio é usado com muita liberalidade, tem gênio do futebol, gênio da dança, gênio da atuação ou mesmo gênio da popularidade de Instagram… até entendo a necessidade de categorizar de forma grandiosa quem admiramos por alguma coisa que faz bem, mas tem tantos outros adjetivos perfeitamente utilizáveis para essas coisas… antes de você entender porque eu estou chamando Kanye de gênio, vai ter que entender o que eu considero um gênio.

Genialidade não é sobre uma habilidade treinada, é sobre um estado mental tão original que passa por cima de padrões e subversões. Não é saber fazer algo muito bem, não é nem saber diferente do que os outros fazem de propósito… é sobre criar uma nova realidade do vácuo e trabalhar com sua mente dentro dela. A palavra gênio vem do latim e significa uma espécie de segunda natureza mágica/divina que habita cada pessoa ou objeto. É mesmo algo relacionado ao que está aqui, mas parece vir de fora. É comum dizer que gênios são incompreendidos, e isso tem conexão direta com o significado que estou colocando aqui: é muito difícil entender algo que não é padrão ou subversão desse padrão. É como falar que o sabor do sorvete é “final do dia no Nepal” e esperar que alguém consiga presumir qual o gosto. Eu escrevi essa frase e mal entendo ela…

Mas, genialidade não vem sem os seus custos. Numa daquelas frases que com certeza está tatuada em alguma pessoa com a qual eu nunca faria amizade: “de gênio e louco todo mundo tem um pouco.” – a matéria-prima da genialidade e da insanidade é a mesma, tudo depende de como a pessoa consegue sincronizar esse pensamento totalmente fora da caixa com o mundo real. Essa fuga dos alicerces da racionalidade humana, mesmo que momentânea, é o combustível para basicamente tudo o que nos surpreende. Pode chamar de aleatoriedade por mau funcionamento eventual do cérebro, pode chamar de inspiração divina ou consciência coletiva… o que faz sentido é que a característica definidora do gênio é trazer de volta para a nossa realidade uma ideia que não nasceu nela.

Infelizmente é um processo árduo e nem um pouco seguro. Mentes se perdem nesse caminho de volta, algumas para sempre. Ás vezes a própria pessoa não sabe traduzir de volta a ideia que teve para uma forma que nós sejamos capazes de compreender. Vira quase que uma questão de probabilidade: para que esse processo relativamente comum de ter ideias fora da nossa realidade seja produtivo, são tantas variáveis envolvidas que na maior parte das vezes a pessoa parece ou é louca mesmo.

A totalidade das ideias humanas possíveis provavelmente é infinita: se você dividir e recombinar os conceitos e os significados, vai criando mais e mais delas. O gênio, nessa minha teoria, é quem pega outros elementos que ninguém estava usando (em geral ou naquele momento) e traz eles de volta para o resto de nós. Infelizmente, nem todas as combinações nos servem ou mesmo agradam. Dizer que “patos são um plano da CIA para dominar as lagoas” não é uma união favorável de ideias, mas quando um gênio começa a dizer que tempo é relativo, a coisa vai se encaixando bem e gerando novas ideias igualmente válidas. Mas eu estou apelando um pouco usando o Einstein aqui.

Como eu disse, muitos gênios acabam ignorados ou taxados de malucos. E muitos malucos de gênios… tudo depende de como essa ideia volta aqui para a nossa caixinha. Se tem alguém para dar conta dessa ideia (seja a pessoa ou alguém com acesso inicial a ela – o Darwin quase desistiu de continuar com a publicação “A Origem das Espécies” e amigos dele tiveram que insistir muito), se ela é possível de ser assimilada naquela época, ou mesmo se ela tem alguma conexão com a realidade. O gênio não precisa ser alguém muito inteligente ou mesmo alguém que tenha alguma noção sobre o que está falando, essas pessoas devem ser chamadas de estudiosos ou especialistas. O gênio não tem nem mesmo a obrigação de estar certo. Ele só precisa buscar ideias em lugares onde os outros não vão. Acho bom desmistificar a figura do gênio nesse sentido, podemos usar eles bem melhor sem essa necessidade toda deles acertarem ou fazerem diferença direta na realidade.

O que me faz voltar para Kanye e sua última declaração. Ele sempre pareceu ter um parafuso a menos ao mesmo tempo que sempre pareceu estar buscando as coisas que falava de lugares diferentes da maioria das pessoas. Sem fazer juízo de valor nenhum: nessa última saraivada de opiniões impopulares, ele fala sobre a questão racial (especialmente nos EUA) de um ponto que se ignora na conjuntura atual: política de identidade (vai ter seu texto no futuro só sobre isso) é opressiva quando um homem negro não pode ter visões conservadoras ou ser no mínimo ambíguo sobre a necessidade de reparações e/ou cotas para os negros por causa da escravidão.

O que Kanye trouxe lá de fora foi isso: que a cor de pele dele não o impede de ter qualquer visão, gostemos dela ou não. Se você acha que apoiar o Trump e dizer o que disse sobre escravidão faz dele um babaca, é direito dele ser considerado assim como indivíduo, assim como é para os brancos pobres americanos que falam basicamente a mesma coisa. Não deixar Kanye ser livre da sua cor de pele na hora de criticá-lo por uma ideia é sim escolher a escravidão, é escolher a separação pela raça e papéis definidos para cada uma delas. E se isso acontece em mais elementos da sociedade deles, é uma boa discussão: descobrir até onde os negros americanos se limitam pelo que enxergam no espelho.

Esse tipo de discussão estava fora da nossa realidade, ele trouxe de volta. Provavelmente vai passar batido porque o drama ofendido de outras pessoas vende mais jornais e gera mais cliques… e também porque cá entre nós, não se espera profundidade desse cidadão, até mesmo por motivos de racismo. Ei, é muito provável que nem ele saiba de quão longe veio essa necessidade de se expressar dessa forma ou mesmo as consequências dela (quem fala coisa muito diferente da média normalmente calcula muito mal a reação alheia, raríssimo uma vir sem a outra), mas pra mim não deixa de ser genial. Desde, é claro, que você concorde comigo sobre genialidade não ser necessariamente algo bom ou desejável na média.

A tendência é que genialidade seja positiva em doses e períodos bem específicos. O que ele tinha disso gerou milhões e fama, mas a janela de oportunidade já chegou e já passou, presumo que essa característica dele torne-se cada vez mais maluquice aos olhos alheios. Eu sempre vou escutar as coisas que ele diz com essa ideia em mente, mesmo quando elas parecerem absurdas, meio triste perceber como cobramos demais dos nossos gênios, eles tem todo o direito de falar merda e não perderem o título, mas, infelizmente, sempre vamos reconhecer e lembrar daqueles poucos casos onde a média foi altíssima.

Limitante… até porque muitos de nós podemos ser também e nunca dar bola para quando batem na porta da nossa caixa. Você que está lendo pode muito bem ser um gênio, talvez todos nós sejamos… mas se você está esperando que a genialidade seja só sucesso ou desgraça sem nenhuma área cinza entre elas, não vai reconhecer quando for a sua vez.

Para dizer que foi clickbait usar o Kanye, para dizer que genial é ser maluco e ficar rico, ou mesmo para dizer que eu só escrevo dessa forma maluca para ser chamado de gênio (agora que eu tirei a graça?): somir@desfavor.com

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Comments (13)

  • Deixa eu ver se entendi. O kayne é um gênio porque é negro e conservador ? E porque tem uma ideia sobre os 400 anos de escravidão insana ?? Cara, para mim ele falou muito a escola,na música ele é apenas mais um, que está muito abaixo de um nível de gênio, e teve apenas um auge. A maioria do público dele é branco, inclusive o que fez esse texto .
    Queria eu não ter que discutir essas questões e ter uma sociedade ciente. Mas não é assim que acontece.

    • Não, não entendeu. Bom, pelo menos a ideia central de desconstruir a genialidade. Kanye era uma alegoria para a ideia expressada, e se você terminou o texto ainda amarrado na alegoria, provavelmente está querendo discutir outro assunto que não o apresentado. Nada contra, mas…

  • Gênio na música mas um babaca no plano humano. Um texto que faz uma alusão ao compensatório, não vale a pena. Se tem um parte otária, a parte genial se anula. Parem de se cegar, parem de ver só um lado. XXXTentacion mandou lembranças.

  • Chancey Gardiner
    Lembrei de um filme antigo, estrelado pelo Peter Sellers. Chama-se “being there”.
    O título aqui na Huelândia é “Muito além do jardim.”
    Vale cada minuto.

  • Acho Caetano Veloso e Gilberto Gil uma dupla de imbecis em um nível que a maioria mocoronga chama de genial.

    • Até porque ideias originais não são o forte deles. Talvez tenham tido seu brilhareco em mil novecentos e guaraná de rolha…

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