Golpe de azar.

O país que há pouco menos de 30 anos estava nas ruas pedindo a redemocratização agora parece estar mais interessado do que nunca num golpe militar. O candidato que não diz explicitamente que quer o mesmo – mas parece mais alinhado com a ideia – está começando a liderar as pesquisas em vários lugares do país. O cidadão médio perdeu a vergonha de pedir pela volta da ditadura e as forças de esquerda parecem bem combalidas. Posts de militares de alta patente nas redes sociais chamam atenção da mídia e parecem até ameaçar nas entrelinhas o desastroso e impopular governo de Michel Temer. Então… é só questão de tempo?

Bom, esquecemos de perguntar para o exército… vejam bem, em três décadas muita coisa pode mudar, se a opinião pública parece “madura” para aceitar um poder militarizado, não podemos nos esquecer que os militares também tiveram 30 anos para pensar bem no que estavam fazendo enquanto líderes do país. E se formos fazer as contas, não foi bacana nem pra eles. Considerando a bagunça que esse país foi desde que saíram do controle, não era realmente difícil tomar de volta o poder caso fosse altíssima prioridade.

O que muitos parecem se esquecer é que o sistema de poder militar não é feito para lidar com a população em geral. Sim, em média existe muito mais ordem, senso de hierarquia e até ética dentro do ambiente dos militares, mas isso não vem sem seus custos. É extremamente complicado pegar seres humanos e organizar eles com a disciplina que as forças armadas exigem. Se você pega esse modo de funcionamento e arremessa diante de uma sociedade, as coisas tendem a dar errado.

A verdadeira ordem do poder militar não vem da força, e sim do treino. Não é o medo de apanhar ou morrer que faz com que os soldados aprendam como as coisas funcionam e respeitem o sistema ao redor deles, é o esforço constante em moldá-los segundo uma identidade militar preestabelecida. Quem já fez sabe do que estou falando: sim, existem consequências para cada uma das suas desobediências, mas não é o terror da morte que dita o funcionamento do local. Quem se adequa ao que é esperado é recompensado, quem se rebela é punido e eventualmente expulso.

Não há lugar na ordem militar para pessoas que não obedeçam as regras. Então, elas são treinadas para tal ou mandadas embora. Fica quem consegue dar conta do exigido. Sem moldar a pessoa desde o começo da sua carreira, fica impossível ter o sistema. E é justamente aí que o controle dos militares vira uma péssima ideia para substituir um governo democrático. Mesmo os que estão carregando cartazes por aí pedindo pela ditadura não tem o que é necessário para funcionar dentro desse tipo de governo.

Uma nação – ainda mais uma tão grande e populosa como a brasileira – é uma entidade caótica por natureza. As pessoas que a formam estão o tempo todo mudando de ideia e buscando objetivos pessoais, pelos motivos mais mesquinhos possíveis. Elas não tem o treinamento de suprimir o desejo pessoal pela ordem do superior, não é nem vontade de ser do contra, é incapacidade mesmo de fazer diferente. Tanto que muitos esquecem que a ditadura no Brasil terminou lentamente, com cessões seguidas de poder do governo militar que finalmente culminaram em eleições democráticas.

O “Diretas Já!” não encheu Brasília de manifestantes e arrancou os militares de lá à força, na verdade, a ditadura estava totalmente esgotada naquele ponto. Eles cederam o poder de volta. Os generais não aguentavam mais lidar com a zona que é o país, e colecionavam fracassos em suas estratégias de controle sobre a população. Sim, é um clássico brasileiro que a incompetência atrapalhe todos os planos, mas sob a lógica do funcionamento militar, a população simplesmente não estava treinada o suficiente para poder seguir seus desígnios. Fardas não combinam com jogo de cintura, e governar o Brasil exige uma capacidade infinita de rebolar para acomodar toda a loucura que é jogada para cima do governo todos os dias.

Sem contar que não queremos só esse tipo de pessoa muito treinada em obediência e disciplina com poder nas mãos. Tem um lado negativo dessa ordem toda, e é a falta de criatividade e improvisação. Mesmo o exército americano, com sua verba maior que todos os outros países do mundo juntos, não forma seus criativos lá dentro: vai fazendo contratos com civis para desenvolvimento de novas tecnologias, arejando o ambiente viciado de quem passa décadas treinando para obedecer ordens e não deixar os outros na mão por improvisar na hora errada. Não dá para contar com militares para encontrar soluções inusitadas para os problemas cada vez mais inusitados desse país. Vai precisar de gente de fora. E aí começa a corrupção, outra coisa que foi anulando todo o planejamento militar de dentro pra fora, até sua depressiva derrocada no final dos anos 80.

Basicamente o povão pensa mesmo em tiros e bombas controlando o país, ma por mais que violência seja respeitada quase que universalmente, não tem pancada o suficiente para dar no povo para que eles se tornem militares. O exército pode expulsar gente que não os obedece de seus ranques, o país não. Sim, tentaram fazer isso com censura, tortura, perseguição… mas para cada revolucionário morto, surgiam três no lugar. Tanto isso é verdade que eventualmente tinha tanta gente contra a ditadura no país que eles pularam fora. O exército brasileiro continua sucateado, mas pelo menos não tem mais que ficar lidando com essa gente toda reclamando da vida.

Não sei como anda a opinião média do militar brasileiro, mas pelo o que eu ando ouvindo, eles parecem mais animados com um presidente (supostamente) linha dura feito o Bolsonaro do que com o prospecto de assumir essa bomba de novo. Quem sabe com a esperança de ficarem menos sucateados, e só. É comum quem em fases de desorganização política como a atual as pessoas pensem em soluções simples para resolver tudo de uma só vez. O problema dessa é que nem mesmo o exército deve ter energia para comprar essa briga, e mesmo se tivesse, em tempos de redes sociais e tanta conexão com o mundo, nem mesmo a Coreia do Norte está resistindo… vocês realmente acham que o Brasil conseguiria?

Tenho medo de incompetência e corrupção, não de golpe militar. Podem ficar tranquilos, aconteça o que acontecer, vamos continuar uma bandalheira.

Para me chamar de esquerdista (hã?), para dizer que não vai comentar porque ficou putinho com o aviso, ou mesmo para dizer que vai chamar o general falso do Whats para ser presidente: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Com as urnas eletrônicas mantendo a possibilidade de um golpe invisível eu me pergunto se não seria melhor uma ditadura visível e assumida do que uma falsamente legitimada.

  • Muito interessante o seu ponto de vista, Somir. Fiquei até certo ponto surpreso de ver que algumas das suas idéias a respeito deste assunto se assemelham às minhas. E também é um tanto triste notar que os povos que mais precisam de certas “boas” características inerentes ao modus vivendi militar que você mencionou – ou pra usar uma frase sua: “Sim, em média existe muito mais ordem, senso de hierarquia e até ética dentro do ambiente dos militares, mas isso não vem sem seus custos” – são justamente os que mais precisam delas e os menos capazes de viver sob esses preceitos.

  • Pessoal esquece que quase tudo de ruim que existe no Brasil, e até na América latina no geral, veio dos tempos de ditadura militar: dívidas, economia insegura, sucateamento de serviços públicos, dominação esquerdista na cultura e no sistema educacional… “Salvos do comunismo” meu pau de óculos, a ditadura militar foi a melhor propaganda pra esquerda. Até o Lyla, no Twitter, já teve uns delírios de criar uma “União Soviética” na América do sul, pior que eu nem duvido da possibilidade.

  • Os militares podiam ter ficado mais 25 ou 30 anos no poder, fingindo que estavam construindo um regime que funcionava – o povo não estaria nem aí.

    Para a grande maioria, regimes democráticos ou ditatoriais fazem pouca diferença; localmente o cidadão continuaria dando a algum líder local poderes para representá-lo nas pequenas demandas, que é o que interessa para quem mora em pequenos centros dependentes do Estado (ou de quem o representa) para tudo.

    Nisso, desde 1500, a lógica é a mesma: mateus, primeiro os meus – e que se dane o restante, principalmente a elite pensante que acha que o Brasil, politicamente, chegará ao nível de Grécia antiga.

    Nunca será. Ainda bem.

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