Planeta dos ofendidos.

A ABC cancelou nesta terça-feira (29) a série Roseanne horas  após a estrela do sitcom, a veterana Roseanne Barr, fazer comentários racistas no Twitter  em referência a Valerie Jarrett, uma ex-conselheira do presidente Barack Obama. “A afirmação no Twitter de Roseanne é abominável, repugnante e inconsiste com nossos valores, e decidmos cancelar sua série”, disse o presidente da ABC Entertainment, Channing Dungey. LINK


Roseanne era uma das séries com maior audiência nos EUA, e a histeria pela piada acontece logo depois da atriz principal declarar suporte a Donald Trump. Desfavor da semana.

SALLY

Tudo começou com uma piada. A comediante Roseanne Barr tuitou sobre a aparência de Valerie Jarrett (ex-conselheira de Barack Obama). Ela disse que a irmandade muçulmana e o Planeta dos Macacos tiveram um bebê e este bebê seria Valerie, sugerindo que suas feições são um mix de muçulmano com macaco.

Concordo que é uma piada que nem todos acharão graça, porém, continua sendo uma piada. Imediatamente ela foi interpretada como um ato de racismo e a série de Roseanne foi cancelada pela ABC, mesmo com ótimo faturamento e índices de audiência. E aqui, eu peço que você se dispa dos seus sentimentos e converse comigo de uma forma racional, apenas racional.

Você pode ter achado a piada um absurdo. Você pode ter achado ela um “nada de mais”. Não importa, tire o foco do que você acha, pois, um segredo, o que você pensa não é tão importante quanto você imagina. Faça uma analise racional permeada por coerência. Quais são as regras de conduta da sociedade hoje?

Podemos ou não fazer piada com a aparência de alguém? Todos os dias se fazem piadas com a aparência de Donald Trump, que, diga-se de passagem, é bem risível. Isto não incomoda a ninguém. Todos os dias se fazem piadas com a aparência de homens e mulheres do mundo da política, no Brasil e no mundo. Eu mesma já falei aqui que a Dilma parece um Ewok, só para citar um exemplo feminino.

Então, é preciso traçar essa linha: pode ou não pode fazer piada com a aparência de uma pessoa pública? Se pode, tem que valer para todos. Se não pode, também. Reprovar piada apenas para determinados grupos é que é um comportamento racista. Presumir que determinados grupos não terão estrutura para ter sua aparência física escarnecida é chama-los de fracos, é ser condescendente, é ser até mesmo ofensivo.

Não estamos colocando em julgamento se a piada é de bom gosto. Estamos falando de algo maior: deve haver liberdade para que esta piada seja feita? Isso vai muito além de você gostar ou não da piada. Isso é sobre liberdade de expressão, que por sinal, é algo levado a sério nos EUA. Bem, ao menos era. Quando você contrata uma pessoa para fazer piadas, para fazer o público rir, e depois lhe tira esse trabalho por uma piada que desagradou, há um comportamento, no mínimo, excessivo.

Cancelamento de seriado é medida para casos de estupro, assédio sistemático, desrespeito físico e criminoso. “House of Cards” e tantas outras morreram assim. Dar o mesmo tratamento em função de uma piada me parece desproporcional e um tremendo desfavor social. Ainda que você pense que uma piada pode fazer mal a alguém (spoiler: não pode, apenas a autoestima baixa faz), alguém tem coragem de sustentar que uma piada faz o mesmo mal que um estupro?

Acredito que este ponto de vista não seja novidade para quem é leitor antigo, sempre que vem um linchamento público em função de piada a gente volta aqui para repetir argumentos nessa linha. Então, em homenagem a quem nos acompanha faz tempo, quero trazer um ponto de vista novo. Agindo desta forma se passa um recado muito ruim: você não pode cometer um erro. Isso é muito cruel para quem trabalha com subjetividade.

Humorista não tem o direito de cometer um erro, sob pena de perder tudo que conquistou. Não é muita cobrança para uma profissão tão inofensiva? Não seria melhor guardar esse rigor para médicos, que erram e matam uma pessoa, ou para políticos, que erram e matam centenas de pessoas?

As mesmas pessoas que, quando convém, defendem a premissa de que “sou humano, eu erro” ou “somos humanos, cometemos erros”, se comporta como um camponês ensandecido da idade média, com tochas na mão, cada vez que um humorista perde a medida na piada. Curioso, né? Qual será o motivo?

Dá para pensar em mil teorias, mas aqui vai uma, sem a menor pretensão de ser “a resposta”: humoristas conseguem ser a raça que incomoda a todo mundo. Fazer humor é rir de algo, de alguém. Ridicularizar, exagerar, buscar o lado patético. Quando o canhão está apontado para os outros, é extremamente divertido, mas quando o canhão se volta pra a gente ou para o nosso grupo… é aí que vemos quem tem uma autoestima inteira e quem não.

A pessoa que já vive com medo de “passar vergonha” o tempo todo, de ser ridicularizada, de ter os holofotes voltados para si de alguma forma que a torne motivo de piada, está sempre na missão de desqualificar o humor e o humorista. Claro, por óbvio, aplaude aqueles chapa-branca, que vivem de bordão, que fazem um humor “seguro”, ou seja aquele humor que a pessoa tem certeza que jamais respingará nela.

Mas o humorista de verdade, aquele que não tem limites, aquele que faz piada de tudo, esse é um inimigo. Esse é perigoso, pois pode ferir um ego frágil. Não se mede esforços para destruí-lo. E se você já teve alguém na sua cola tentando te destruir, deve saber como essas pessoas funcionam: elas surgem do nada quando você comete um erro e o propagam exaustivamente de modo a que a coisa fique o mais horrenda possível para você.

Todos nós cometemos erros. Quando você dá uma reprimenda dessas em um humorista, está dizendo que ele não tem o direito de errar. Há médicos que calculam mal, que erram e deixam pacientes cegos, paraplégicos ou até os matam. Ainda assim há decisões judiciais afirmando que, se o médico agiu sem a intenção de prejudicar, com os devidos cuidados, mas apenas foi uma escolha infeliz, tá de boa. Mas piada não, piada é coisa séria. Um humorista não pode errar, pois já tem uma grande massa de inseguros predisposta contra ele.

Endossar isso é simplesmente ridículo. Vergonha da ABC. Alimentar esses histéricos, pessoas tão dementes que se importam com o que uma desconhecida fala. É uma pena que as pessoas sejam tão frágeis, que continuem dando significado a algo que nasceu para não ter significado e sim para fazer rir. As mesmas que se cagam de rir quando falam sobre a aparência do Trump. As mesmas que repetem que errar é humano quando elas erram.

As pessoas estão cada vez mais retardadas e a mídia, em vez de educar, está mimando débil mentail em troca de audiência. Isso vai acabar mal.

Para dizer que minha piada mata, para dizer que a própria Roseanne escuta aos montes por ser gorda ou ainda para dizer que piada não mata, mas Semana Sim Senhora talvez: sally@desfavor.com

SOMIR

Já faz algum tempo que eu acho que as pessoas perderam a dimensão das palavras na era da internet. Uma resposta atravessada na rede social é “épica”, a pessoa que fala algo um pouco diferente é “mito”, as pessoas “amam” a foto de um cachorro… é como se as palavras usadas para demonstrar sentimentos medianos e extremos não fizessem mais diferença. Uma espécie de disputa para ver quem grita mais alto no meio da multidão, independentemente do que se está falando.

E se do lado do elogio e da empolgação essa nova mania humana rende uma rotina engraçadinha de stand-up, existe algo muito mais sombrio nos esperando do lado oposto do espectro. Acredito que estamos perdendo a capacidade de modular nossos sentimentos e reações junto com essa mudança linguística. A realidade começou a ser modificada pelas palavras, e não o contrário.

O que tem ou não tem graça é subjetivo, o que faz uma pessoa rir pode fazer outra ficar furiosa, e acredito que tirando os politicamente corretos mais histéricos (que querem banir todo o discurso que não gostam), ninguém realmente disputa o fato, cada um gosta de uma coisa. Tanto que os detratores de qualquer humorista são rápidos em apontar como ele(a) não tem graça. Mas nessa conversa toda parecemos esquecer de algo: na prática, é virtualmente impossível alguém ser tão polarizador em todas suas piadas.

Na maioria dos casos, as piadas de um(a) humorista passeiam numa faixa muito menos dramática do que hilário ou terrível. Esquecemos que muitas vezes só nos arranca um sorriso ou uma franzida de sobrancelha? Nada tão poderoso assim. Palavras são poderosas, mas não todas. Não em todos os contextos. Mas a internet tem o poder de elevar tudo à última potência: vai dizer que acha que a outra pessoa está rindo incontrolavelmente do outro lado quando lê um “kkkkkk”? Ou que está chorando copiosamente depois de mandar um emoji cheio de lágrimas?

O exagero na reação é um resultado até que esperado da falta de expressão facial nesses contatos. Aprendemos a enfatizar bastante nossas emoções para torná-las óbvias para o outro lado, ainda mais se ele só tem letras e símbolos para se guiar. Eu pessoalmente não sou muito fã dessa modulação exagerada dos sentimentos no meio, mas dá para entender porque aconteceu sim. O problema é que eu duvido que as pessoas fazem esse tipo de reflexão que estou fazendo aqui.

Duvido que realmente olhem para o grau de dramaticidade do que acontece na internet e tentem voltar alguns passos para perceber a realidade da situação. A piada de Roseanne flertou com o desastre nos nossos conceitos reais de gravidade ou só foi o que foi porque estava na internet, com todos os nervos virtuais à flor da pele? Voltemos à subjetividade: quando Roseanne compara a mulher com uma personagem do Planeta dos Macacos, estava usando o termo pejorativo macaco como uma forma de disputar o grau evolutivo da mulher em relação aos de outras etnias?

Porque na sanha de dar vazão aos sentimentos exagerados de internet, as pessoas fizeram a conexão direta sobre macacos e suposta inferioridade de pessoas de pele mais escura. Mas, numa análise menos histérica, parece bem claro que foi sim uma piada com aparência, mas a aparência daquela pessoa em específico com personagens de um filme. Sem toda a carga de significados racistas ligados à comparação de negros com macacos. Piada desastrada sim, ela deveria ter visto como isso daria errado, mas talvez desastrada justamente por Roseanne não pensar em negros como macacos. Se tivesse feito a mesma piada comparando Trump com um Oompa Loompa pela sua pele laranja, teriam achado um componente racial?

Porque foi a mesma piada que sempre fazemos: comparando o rosto de alguém com uma personagem ficcional. Seres humanos são máquinas de reconhecer rostos, e nos divertimos muito percebendo padrões nelas. As pessoas podres por dentro que patrulham redes sociais para tentar estragar a vida dos outros veriam problema com qualquer coisa, dada a oportunidade. Mas quando todos nós somos cooptados para esse mundo de reações exageradas a tudo o que lemos, eles ganham companhia.

E pior, preconceitos que já poderiam estar afundando na nossa sociedade vão sendo puxados para cima, virando estrelas da nossa comunicação vez após vez, porque alguém se ofendeu na internet e ao invés de extravasar sua raiva pouco articulada batendo no outro, só pode berrar e exigir represálias dos empregadores de quem falou algo que não gostaram. Não adianta nem não entender a piada e achar a Roseanne uma babaca, ela tem que ser destruída. Porque na internet só enxergamos as coisas em extremos.

Não foi épico ou trágico, foi uma piada mais ou menos. E só.

Para me chamar de racista, para chorar sem parar por discordar ou para me dar um prêmio Nobel por concordar: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Quando Bill Maher comparou Trump a um orangotango todos acharam graça. Tem um pessoal voltando no tema e pedindo a demissão dele. Maher alias tem um quadro no seu programa chamado “explicando piadas para idiotas” que trata justamente dessa patrulha politicamente correto.

  • “Não adianta nem não entender a piada e achar a Roseanne uma babaca, ela tem que ser destruída. Porque na internet só enxergamos as coisas em extremos”.

    Por um lado, é bom ver a comédia aos poucos alçada a ser de fato considerada uma forma de arte, trazendo fama e sucesso equiparáveis a outros ramos do entretenimento. Por outro, por conta desse crescimento, é uma merda que a crítica profissional à comédia seja incipiente e insípida para ser moldada pelos valores propagados pelas mídias sociais e pela internet (que efetivamente ditam o sucesso agora), para atribuir aos comediantes responsabilidades e cuidados que não cabe a qualquer outro ramo do entretenimento sanar.

    Desde quando comediantes têm que ser politicamente corretos com as implicações do que saem dizendo por aí? Desde que surgiram essas recentes implicações econômicas relevantes, talvez…Não lembro na minha tenra infância os comediantes que líamos e assistíamos livremente por aí serem alvo de tanta crítica.

    Aí, dada as implicações econômicas, não sei o que é pior nesse episódio desproporcional: Roseanne tuitando desculpas mais ridículas do que sua piada ou sua produtora, comediante também consagrada por lá, anunciando aos quatro ventos que deixaria o show (e salvar a pele para manter seu milionário ganho com stand-ups, além de contratos com TV a cabo?), sem pensar nas implicações na vida de todos os outros envolvidos com o programa.

    Saudades da época em que surgiram comediantes como Sam Kinison e Andrew Dice Clay, com quem aprendi inglês quase 30 anos atrás:

    http://www.youtube.com/watch?v=9l4JpI0nwf8

  • Esse tema de gente se ofendendo, liberdade de expressão e afins já ficou mesmo batido, mas gostei do input do Somir. Nós temos a mesma mentalidade de não reclamar (muito) das novidades e mudanças do mundo.
    De fato, a tecnologia está mudando a humanidade. Mas ninguém garantiu que essas mudanças seriam sempre pra melhor.

  • Esse assunto tá repetindo tanto que podia virar coluna fixa. O mimimi do mimimi.

    Apesar da chatice do assunto Somir conseguiu tirar leite de pedra. Deve ter sido os 2kg de bacon. Joyce e os escritores do começo do século XX enfrentaram o problema oposto, que é de uma linguagem que não tinha acompanhado um mundo em transformação acelerada. Mas eu duvido que a linguagem evolua mais rápido do que o mundo, pelo seu caráter utilitário. Talvez o que esteja ocorrendo sera meramente biológico, estamos com excesso de contatos humanos superficiais e por isso apelamos para um filtro, ou falso isolamento, para manter o espaço pessoal mais ou menos íntegro. Enfim, esse foi um belo insight e eu tiro o chapéu.

  • Foi sem graça, mas não entendi a acusação de racismo. A fulana alvo da piada é branquinha, filha de americanos, só é iraniana porque nasceu lá, mas se mudou quando criança. Hoje em dia não deve saber uma palavra em persa.
    Pior que com certeza a maioria das pessoas não deu a mínima ou até tenham achado graça, mas como sempre a bolha justiça-social-minorias-esquerdismo consegue mutilar as mídias pra se adaptarem às suas neuras. Muito estranho um grupo pequeno ter tanto poder. Depois não querem que as pessoas acreditem em teoria da conspiração.

    • Branca pra brasileiro. Lá é considerada negra. E no super-trunfo da ofensa profissional, ninguém quer ficar sem essa carta.

      • Bala meio-a-meio

        Eu acho errado classificá-la tanto como branca como negra. Para mim isso também é um tipo de preconceito, ficar tentando negar que existe um outro lado. Verde está mais para azul mas não é! Podem chamar lilás de roxo, mas é outra cor. Cinza, rosa, é tudo outra cor + branco. Então se é outra coisa tem que ter outro nome.
        Eu não vi nada demais na mulher para ser alvo de piadas. Pode não ser linda, mas pelo menos na foto, me pareceu uma pessoa comum. E realmente fiquei procurando a negra.

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