Don’t be evil.

No começo da operação do Google, uma frase servia como mantra para as operações da empresa: “don’t be evil”. Uma espécie de norte ético guiando as atitudes da então promissora criadora do motor de pesquisa mais famoso da internet. “Don’t be evil” pode ser traduzido para o português como “não seja do mal”, contextualizando melhor a frase. Você vai perceber que faz tempo que leu ou ouviu essa frase vinda deles, se é que ficou sabendo disso até hoje. O que aconteceu para essa frase desaparecer?

A expressão surge nos primeiros anos de vida do Google, onde a marca mais famosa e poderosa do setor de tecnologia ainda era a Microsoft. Conhecida pelas suas táticas predatórias, principalmente contra seus concorrentes menos poderosos, a empresa de Bill Gates era quase que uma unanimidade quando se pensava em “ser do mal”. Como a maior de todas e a desenvolvedora do Windows, o poder deles não tinha rival a altura na maioria da década passada. Hoje em dia, as coisas são diferentes, Google e Apple cresceram imensamente e embora ainda gigantesca, a Microsoft passa longe dos holofotes.

E também hoje em dia, o Google está mais preocupado com treinamento de diversidade e compliance do que não ser do mal. A Microsoft era vilanizada pelas táticas agressivas de negócios, comprando ou destruindo adversários com o poder que seu dinheiro e dominância no cenário tecnológico proporcionavam. Hoje, Google e Facebook são os maiores herdeiros dessa mentalidade. O mercado de tecnologia é cheio de oportunidades, mas até um certo ponto: quando você fica grande o suficiente para ameaçar um dos gigantes, pode ter certeza que eles ficam “malvados”. O que gera essa mudança? Será que é inevitável tornar-se aquilo que se odiava com o crescimento da sua empresa?

Minha teoria é que existe um limite de quanto valor alguém pode acumular antes de começar a tirar esse valor diretamente de outras pessoas. Não estou falando só de dinheiro, mas de valor em geral: poder, influência, reconhecimento, confiança… tudo aquilo que costumamos querer nas nossas vidas, e por consequência, nos nossos negócios. Dinheiro é a medida mais clara nesse sistema, mas sozinho não é raiz de nenhum problema. Quando o Google começou a crescer vertiginosamente por causa do seu produto revolucionário, é como se estivessem extraindo energia solar: algo que já estava lá e só precisava ser tornado efetivo. Ninguém sabia que dava para ter um sistema de pesquisas tão bom, e logo depois, ninguém sabia que dava para tirar um modelo de negócios lucrativo para isso.

E assim como a energia solar, a energia criativa que alimentou o crescimento do Google é renovável, mas menos eficiente que outras formas mais… malignas. Não podemos criticar a gigante das pesquisas por falta de tentativas de encontrar mais dessa energia criativa para continuar crescendo, mas ideias tão bem executadas e populares são raras na história da humanidade. Henry Ford criou a produção em série de carros e tornou sua empresa gigante, mas para se manter no topo, teve que fazer acordos e mais acordos para a venda de veículos militares durante a Segunda Guerra Mundial, e para os dois lados.

É como se a partir de um momento, a capacidade de tirar valor “do nada” terminasse, e a empresa precisasse começar a consumir os recursos que já existem no mercado. Um corpo tão grande precisa tirar muita energia do ambiente: num paralelo biológico um carnívoro gigante feito o leão precisa consumir a energia de outros animais que se alimentavam de plantas, que por sua vez estocaram energia do Sol. O leão não tem tempo ou capacidade de captar a energia original, precisa pegá-la de outras formas de vida que estocaram isso por muitos e muitos anos só para aguentar mais um dia.

E não muda muito quando falamos de grandes empresas, são os carnívoros da cadeia alimentar corporativa. Precisam consumir tantos recursos de uma só vez para continuarem viáveis que vão ter que engolir empresas menores e/ou arrancar o máximo possível de seus consumidores no processo. “Don’t be evil” é conversa de empresa herbívora, na melhor das hipóteses. Quando são bilhões de dólares em jogo, eles precisam vir de fontes muito mais poluentes, nem que sejam as nuvens de fumaça saindo das orelhas de consumidores que se sentem enfurecidos por preços mais altos ou atendimento abaixo do desejado.

Mas com certeza deve ter um jeito melhor do que viver o suficiente para virar o vilão, não? Tenho minhas dúvidas. O ex-presidente e fundador da Microsoft, Bill Gates, hoje torra seus bilhões e gasta seu tempo numa fundação de caridade global. Não é como se essa pessoa tenha surgido da noite para o dia, quem pega e vira a vida toda nessa direção assim sempre deve ter tido o sonho ou o desejo de “não ser do mal”, mas enquanto estava juntando o dinheiro necessário para essa mudança de rumo, estava preso a essa mentalidade e a esse modo de funcionar.

Precisou sair do comando da empresa para poder se dedicar ao novo rumo. Não tinha como ser do bem dentro da Microsoft, por mais que tentasse. A máquina estava completamente voltada para a sua própria manutenção. Talvez seja isso mesmo: existe um limite de tamanho onde cabe ter uma motivação paralela no negócio, e quando ele passa, é como se o único esforço válido fosse manter a empresa depois dessa linha, viva. Fico imaginando se existe alguma forma de ser um gigante no mercado e seguir uma linha simples como “don’t be evil”.

Estamos vendo Elon Musk perdendo as graças que teve durante sua ascensão meteórica ao status de inovador-rock-star (porque rico já era) tem a ver com seus negócios entrando nessa fase, finalmente. Se suas empresas estão diante do desafio de parar de usar energia de inovação e começando a precisar mais e mais queimar o carvão da exploração de pessoas e outras empresas para ter o suficiente para aguentar o dia. E tudo isso ao mesmo tempo que o resto das pessoas já começa a enxergar as rachaduras na máscara (óbvio que a pessoa tinha seus problemas pessoais, impossível não ter) e vendo brechas para atacar alguém mais bem-sucedido. Pode ser a hora de assumir que na melhor das possibilidades pode ser “compliant” ao invés de “good”. Ou que não dá para equilibrar as coisas, e deixar seus filhos que nasceram para o bem da humanidade tornarem-se negócios agressivos e muitas vezes malignos para continuarem viáveis.

Não sei quanto a vocês, mas a minha impressão é que você só pode ser bom se desistir antes de ter poder real, ou se aceitar no seu coração que vai fazer algumas coisas no mínimo suspeitas para voltar a ser bom algum tempo depois.

Para dizer que eu fui malvado não concluindo, para dizer que não sabe metade dos termos usados, ou mesmo para dizer que alguma dessas empresas ou pessoas te trataram mal: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Curiosamente, o Google largou esse lema justo quando anunciou que pretendia fazer uma versão censurada da ferramenta de pesquisa exclusivamente para a China, o Dragonfly Project. E certamente não é a única empresa, ninguém vai perder a chance de tirar uma casquinha de um mercado consumidor de 2 bilhões de pessoas, sem falar na mão de obra barata que a região fornece.

    Ao menos tenham coerência e admitam que são empresas capitalistas de merda cuja única ideologia é o dinheiro, em vez de forçar discurso bonitinho de “queremos melhorar o mundo”.

  • Gostaria de contribuir com a discussão trazendo um artigo do André Forastieri levantando a bola de porque super ricos não deveriam existir (e daí creio que podemos extrapolar e fazer um paralelo com as super mega corporações transcontinentais, imagino) http://andreforastieri.com.br/blog/os-super-ricos-nao-podem-existir/
    O artigo da The Econimist que ele cita está aqui https://www.economist.com/finance-and-economics/2018/07/21/as-inequality-grows-so-does-the-political-influence-of-the-rich

    Eu não sei quanto tempo ainda vai custar, mas creio que alguma coisa sucederá o capetalismo… Algum híbrido de modelos que já existiram até agora, ou algo totalmente novo, mas os 99% que sustentam o 1% mega rico dá mostras há algumas décadas já que essa situação está só “um pouco” insustentável.

    Como se daria isso, não faço a menor idéia, mas não creio que se chegue a esse termo via conversa, tratados e que tais, não… Seria revolução mesmo (não necessariamente comunista, bolchevista, etc…), mas pegando-se em armas, cortando uma meia dúzia de cabeças importantes.

    • algum híbrido de modelos

      Principalmente a Sally diz exatamente isso, principalmente em algum comentário quase antigo.

      revolução mesmo

      Cecília Dassi diz “rebelião” no melhor sentido psicológico, apesar das limitações do Instagram.

      André Forastieri

      Aquele LinkedIn dele ! s2

    • A ideia de cortar cabeças não é nova, até porque a expressão “cortar cabeças” já vem com a imagem mental dos franceses eliminando sua monarquia parasítica. Eu realmente acredito que as coisas são cíclicas, e que a imensa concentração de riqueza dos dias atuais vai ser vista mais ou menos como um feudalismo tecnológico para os historiadores do futuro. O que eu não sei se acredito é que não vai ser só resetar os excessos até a próxima grande concentração de renda.

      E sabe do que mais? Eu também acho que nem os super ricos acham tudo isso uma boa ideia. Cada vez mais vemos gente tentando colocar esse dinheiro de volta no mundo, como é o exemplo do Bill Gates citado no texto. Qualidade de vida “perfeita” já se alcança na casa das dezenas de milhões, o poder parece crescer até a faixa dos primeiros bilhões… depois disso, parece que não muda quase nada. A pessoa vira um “buraco negro” de dinheiro e as vantagens vão ficando cada vez menores proporcionalmente. Talvez dessa vez os super-ricos percebam o problema sozinhos… talvez.

  • Em tempo (?) : bem que isso me lembra até quaisquer funcionário(s) que tenta(m) ou consiga(m) fazer(em) verdadeiro(s) intraempreendedorismo(s); é mais sobre o que conseguir fazer na(s) hora(s) vagas e/ou numa aposentadoria.

    E este é um daqueles temas que, de tão agradecido que estou; e apesar do Somir parecer contra, sempre poderia aprovar melhores comentários; mesmo que de uns dois em dois meses.

      • Só da Sally eu sempre lembrei que publicamente ela dizia algo parecido com “cada texto tem sua própria história”. Daí que eu tentei sugerir sobre intervalo de comentários completamente fora de época; não é sobre mim, fico o mais dentro de época possível ou eu espero responder alguém foi aprovado em texto não-novo porque havia refletido que eu era mais incompreensível e “quebrava” uns outros critérios de qualquer forma.

  • É verdade. As instituições acabam funcionando mais para a auto-perpetuação do que para a finalidade que tinham ao início. As igrejas são exemplos bem claros, mas não únicos. Se você ficar com uma fatia pequena, um nicho específico de mercado, pode se manter mais fiel ao que se propôs de início, mas também tem um custo grande de energia. Tá aí o desfavor, que tem te obrigado a pagar mico!

    • Por sorte o desfavor não exige lucro. No final de cada processo sofrido, há pelo menos a certeza que foi uma escolha. O objetivo não precisa mudar a não ser que você esteja comendo frango cozido por uma semana.

  • Esse mundo de capetalismo, fama, grandes corporações, poder, disputas e rasteiras não é pra mim. Só a parte da grana que é legal. Pena que geralmente grana e rosto famoso estão muito interligados.
    O negócio é complementar a renda farmando adsense no Youtube em cima de trecos infantis enquanto ainda dá. Episódio de desenho, unboxing de brinquedo e kinder ovo…

    • No final das contas, é sobre convencer as pessoas a colocar o valor delas nos bolsos de outra pessoa. Pessoas e marcas acabam brincando de culto de personalidade para conseguir esse resultado. Complicado fugir desse processo.

  • Acionistas são do mal, Somir. Banqueiros e investidores, idem. Todo mundo que tem grana é malvado.

    A partir do momento em que seu negócio precisa pegar dinheiro no mercado, garantindo a ele uma posição de destaque, é essencial deixar a pureza de lado e focar seus esforços na sobrevivência – porque ninguém que investe em uma companhia questiona a origem do dinheiro, se as práticas são úteis ou não.

    Como diziam na Roma antiga, o dinheiro não tem cheiro – e, com o tempo, as empresas também percebem que os donos da grana não tem alma. Ou se aceita isso, ou a empresa simplesmente evapora.

    • Tem uma grande discussão aqui sobre a função da empresa no mundo. Se é apenas lucrar, não existe bem ou mal, só existe alcançar o resultado ou não. Às vezes me parece que o problema não é encontrar uma forma de lucrar “não sendo do mal”, e sim a função original que torne esse lucro positivo em outros sentidos além do enriquecimento de algumas pessoas.

      Mas, cada um dos outros sentidos para o qual essa função vá custam muito caro.

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