Não passará!

Em votação que só foi decidida nas primeiras horas desta quinta-feira, o Senado argentino rejeitou por pequena margem a proposta de regularização do aborto no país. A prática permanece então proibida por lei na Argentina, refletindo a situação que prevalece na maioria do continente sul-americano. LINK


Chegou perto, mas não deu. Se a Argentina não conseguiu, quem dirá o Brasil? E sempre, pelos motivos mais confusos e hipócritas. Desfavor da semana.

SALLY

Basta pesquisar no Google qualquer mapa sobre o aborto pelo mundo e você vai encontrar um denominador em comum sobre todos os países que o proíbem. Vou te dar uma pista: são os países da América Latrina, África e Oriente Médio. Isso mesmo, países subdesenvolvidos, com baixos índices de escolaridade e, no geral, muito religiosos. Isso, por si só mostra o desfavor que foi a Argentina decidindo pela criminalização do aborto. Mas ainda existem outros problemas relacionados ao assunto.

Não vou travar nenhuma discussão sobre a descriminalização do aborto, já abordamos este assunto dezenas de vezes e, por mais que me doa, sei que é uma questão de opinião, que deve ser respeitada. Então, o texto de hoje não será campanha pró ou contra. Gostaria de falar apenas sobre coerência, não importa qual seja o seu posicionamento.

Ver brasileiro comemorando que a Argentina não legalizou o aborto me entristece pelos mais diversos motivos. Primeiro essa mania bizarra do brasileiro de sempre gozar com o pau dos outros. Segundo, pelo total desconhecimento da situação de boa parte da população do país, que não tem qualquer condição de usar métodos contraceptivos, seja pela dificuldade de acesso a eles, seja pela incapacidade de entender e seguir seu funcionamento. Terceiro, pela burrice mesmo: é sério que vocês querem mais argentinos nascendo?

Mas, como sempre, coerência passou longe. Existem dois grandes blocos ideológicos aos quais se pode aderir, um deles é a favor da descriminalização, ou outro é contra. E, convenhamos, o que é a favor, é extremamente desagradável, por isso muita gente se posiciona de forma contrária à descriminalização, mais pela rejeição ao pacote do que por uma reflexão pessoal. Ser a favor de descriminalização do aborto não é ser de esquerda, podem ficar tranquilos. Todo mundo pode ser o que quiser, sem a necessidade de cair em um rótulo. Mas parece que a coerência passou longe nesse debate.

Quando alguém fala que o uso de maconha não deve ser crime, pois “usa quem quer” e quem não gostar tem que respeitar, quando alguém fala que tem que armar o cidadão pois “compra arma quem quer”, quem não quiser não precisa se armar, quando alguém fala que casamento gay não deve ser proibido, que casa com pessoa do mesmo sexo quem quer, enfim, quando se usa qualquer argumento no estilo “deixa as pessoas, faz quem quer”, você perde o direito, por coerência, a gritar pela criminalização do aborto. Assim como todo o resto, aborto faz quem quer, se você não quer fazer, não faça.

“Mas Sally, aborto tira uma vida”. A mesma que os grupos contrários à descriminalização não hesitam em tirar quando esta criança cresce e furta o celular de uma pessoa. Assim como o uso de drogas pode causar danos sociais, à saúde e à segurança pública. Na mesma linha de raciocínio, quando se fala em armas, podemos perder muitas vidas inocentes, pois o parâmetro não é você, é um Brasileiro Médio que precisa da campanha “Lave o Pinto” do Ministério da Saúde, com uma arma de fogo na mão. Então, todos estes clichês “faz quem quer” tem consequências. Você paga por elas? Elas valem o risco?

Aborto mata “uma vida” inocente é um mantra vazio. E questionável. Mas, para fins argumentativos, vamos presumir que sim, que um aglomerado de células seja uma vida. Pessoas que usam qualquer substância que altera seu estado normal de consciência também podem, ainda que sem querer, matar uma vida inocente – ou várias. Pessoas que andam armadas podem, ainda que induzidas a erro, acabar com uma vida – ou várias. Vidas inocentes se perdem com algumas escolhas, inclusive algumas que você pactua.

E eu não estou aqui militando não! Acho que a incoerência vai para os dois lados. Quem é a favor da descriminalização do aborto vive de dizer que o aborto não será obrigatório, que faz quem quer, que se você não quiser, apenas pode não fazer e permitir que outras mulheres o façam. É lindo o discurso, porém eu só aceito isso no dia em que valer para humor e piada também. Acha meu blog um cu? Tem horror ao que eu escrevo aqui? Acha a piada de tal humorista um horror? Siga sua própria cartilha e, se não gosta, não leia. Deixe que quem quer tenha acesso. Não estou mandando pensar assim ou pensar assado, apenas ter coerência.

O que me incomoda não é o conservadorismo, a estagnação ou até o retrocesso. Eu acredito, de coração, que todo esse fundo do poço seja necessário, para que a estrutura cagada desse sistema de governo, de todo o sistema político e da democracia desabem de vez. Quanto mais cagado melhor, mais fácil de destruir e de colocar algo novo e decente no lugar. Hoje estamos produzindo adubo, para que em algumas décadas venha a nascer algo melhor no lugar. O que me incomoda é a incoerência, tanto dos que defendem a criminalização, quanto dos que defendem a descriminalização. E a falta de noção da realidade também.

Estas opiniões, tanto contra como a favor, são pensadas em um universo utópico, que não existe. É pensada em tese, no lindo mundo da imaginação. Na real? Pouca diferença faz descriminalizar o aborto no Brasil ou não. As coisas vão continuar como sempre foram: rico vai conseguir fazer, pois vai pagar caro por isso, pobre não vai conseguir fazer, pois vai entrar na fila do SUS e pegar senha para ser atendido em 2036, quando a criança já estiver completando 18 anos. Ao não receber atendimento, pobre vai tentar métodos caseiros, no desespero. Já pararam para pensar nisso? É uma discussão vazia, movida a ideologia de ego. Nada vai mudar.

Em vez disso poderíamos estar discutindo coisas mais profundas, como, por exemplo, como garantir o acesso a anticoncepcionais realmente eficientes (não a bosta da camisinha com seus quase 10% de falha), como levar instrução para as pessoas, como tirar o povo dessa mentalidade ignorante, como educar e reduzir as desigualdades. Mas não, o pessoal adora uma discussão em tese, polarizada, para exercitar a dualidade raivosa e extravasar suas próprias angustias e frustrações xingando muito na internet. Haja saco.

Então, não importa qual posição você defenda (é sagrado direito seu defende-la!), o que eu te peço hoje é que faça um exame geral de consciência e observe se ela está coerente com o seu “conjunto da obra”.

“Deixa as pessoas, quem não quiser simplesmente não faz” é ótimo, se isso valer para humor que a pessoa desgosta, para casamento gay etc. “Acho que pode ser socialmente nocivo, tem que proibir” deve vir acompanhado da proibição de qualquer coisa que possa ser socialmente nociva, como bebida alcoólica, maconha e porte de armas. E aí? Vamos fazer uma faxina mental e “coerencizar” os pensamentos?

Essa discussão está chegando no Brasil e a tendência é que o aborto não seja descriminalizado, então, termino com um conselho: não brigue, não se estresse, não discuta em rede social. Não adianta nada.

Se você tem alguma condição financeira e engravidou de forma indesejada, sugiro que vá fazer um aborto legal no Uruguai, aqui do lado. Ao menos não é mais preciso ir a Orlando, fica bem mais perto e barato…

Para dizer que é sempre triste saber que nascerão mais argentinos, para dizer que é a favor do aborto até a 628ª  semana ou ainda para dizer que se não escolher um pacote de adesão apanha dos dois lados: sally@desfavor.com

SOMIR

Não sou isentão no tema: para mim está claro que a proibição do aborto é uma violação dos direitos fundamentais da mulher, e enquanto ela estiver em vigor, ainda não chegamos ainda nem no básico. Vou além, devolver à mulher o controle sobre o próprio corpo na questão reprodutiva resolveria por tabela grande parte dos problemas levantados pelo feminismo. Está no conjunto de coisas que já deveríamos ter parado de discutir há pelo menos algumas décadas e seguido em frente, porque é óbvio assim.

Claro, óbvio se você está no controle das suas faculdades mentais. O que infelizmente não é o caso de uma população majoritariamente religiosa (mesmo que só quando causa problema para o outro). Infelizmente as áreas mais atrasadas intelectualmente no mundo (correlação assustadora entre os Q.I.s médios e as leis de aborto) continuam fingindo que existe algum argumento lógico na proibição, disfarçando suas crenças irracionais em seres mágicos de objeções morais.

Se você é contra o aborto, eu já te perdi, né? Te chamei de burro na cara dura e disse que sua opinião é inútil. Bom, se serve de consolo, a maioria dos outros defensores da mesma opinião que você sequer entenderiam o que estava escrito no segundo parágrafo. O que nos faz notar um pouco melhor a extensão do problema: temos dois lados muito agressivos por ser um assunto naturalmente divisivo e temos uma imensa maioria de pessoas que apanha dos dois lados no primeiro sinal de dúvida. Isso atrapalha muito.

Custou caro para mim ter uma opinião tão bem definida sobre o aborto. Custou uma vida de acesso pleno à informação, liberdade de pensamento e a desconexão com uma das maiores fontes de conforto da humanidade, a religião. Custou também o tempo de pensar sobre o tema com profundidade e o status necessário na vida para ter pessoas ao meu redor com as quais eu pudesse ter conversas e trocar ideias mais bem informadas sobre o tema. Claro que não é a única forma de chegar à conclusão sobre a legalização do aborto, afinal, qualquer mulher que engravida contra sua vontade e sem condições de criar o filho de forma decente percebe isso rapidinho… mas eu não estou falando sobre necessidades pessoais imediatas.

Estou falando sobre política de saúde pública. Decisões grandiosas que afetam a vida de toda a população de uma só vez. Faz quem quer, mas dada a canetada na legalização, toda a população tem a opção no segundo seguinte. É sim algo poderoso, começa a mexer com a mentalidade das pessoas imediatamente, e de forma irreversível. Por isso tem que “custar caro” tomar essa decisão. Tem que ter muito estudo, analisar as consequências e saber lidar com a nova mentalidade populacional assim que as regras mudam. Quando argumento a favor do aborto, estou dizendo também que essa decisão já tem investimento humano o suficiente na forma de conhecimento acumulado e experiência em outros lugares para ser implementada como questão de saúde pública com resultados positivos para a população. O aborto está maduro como ideia.

O que nunca foi o caso da sua proibição: desde que foi transformada em lei, a proibição do aborto não demonstrou uma melhora considerável na qualidade de vida das populações as quais foi imposta. Vide quais são os países que ainda o proíbem: virtualmente todos com índices pífios de desenvolvimento humano. Se quem é contra acredita que isso fazemos melhor que os países desenvolvidos, deveria ter gerado algum resultado, não? Não gera um argumento prático compelidor. No final das contas, ficamos com o mesmo moralismo (moralismo nada mais é do conservadorismo comportamental: fazer as coisas sempre do mesmo jeito) de fundo religioso, que pelo o que conhecemos das escrituras religiosas encontradas por aí, nem é tão religioso assim. Um aparte: se Jesus existisse e voltasse, eu tenho certeza que os cristãos matariam ele de novo; quem inventou a maioria das regras das religiões foram homens sedentos por poder, ignorando na cara dura as mensagens de seus supostos messias.

Então, ficamos com a seguinte situação: os defensores do aborto agem de forma agressiva e até mesmo elitista por estarem sobre uma montanha de provas e gastos intelectuais com a análise da situação, alienando quem sequer tem dúvidas sobre o tema (é óbvio que uma pessoa vai ter dúvidas, não é uma discussão tão antiga à toa); e os detratores agem de forma agressiva e arrogante ao tratarem qualquer dúvida como uma violência não só contra outros seres humanos como aos seus sistemas de crenças de fundo religioso. Eu não estou exigindo de ninguém ter uma opinião tão segura quanto a minha, porque dá trabalho mesmo, nem que seja ao formar a base necessária para poder absorver o conteúdo necessário, o que me preocupa mais agora é a guerra declarada a quem honestamente não sabe o que é melhor.

Porque esse é para ser o posicionamento natural do ser humano: as pessoas não tem obrigação de estudarem tudo a fundo. Tem coisa que parece “área cinza” mesmo até você gastar tempo e energia analisando. E nesse ponto, os contrários ao aborto estão sendo muito mais eficientes ao dominar a opinião pública: eles apelam à ignorância natural da pessoa e usam argumentos simples e ameaças sobrenaturais para manter as pessoas razoavelmente do seu lado.

Por isso, eu ando escolhendo muito bem minhas batalhas: o que eu escrevi no começo do texto eu só digo aqui mesmo, porque conheço o sistema de crenças médio dos leitores do desfavor. Mas na “vida real”, já me ficou claro que o buraco é muito mais embaixo do que tentar atropelar o outro com seu conhecimento ou mesmo fazer a pessoa se sentir estúpida pelo o que pensa. Porque no final das contas, pelo menos os detratores do aborto estão oferecendo um pingo de amor para quem concorda com eles, mesmo que seja o amor de um ser imaginário… temos que aprender com eles. Funciona há milênios.

Enquanto isso, vamos continuar nos decepcionando.

Para dizer que não é burro, para dizer que é melhor do que ir para o inferno, ou mesmo para usar um argumento científico racional sobre sua contrariedade ao aborto: somir@desfavor.com

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Comments (20)

    • Sim. Eu acho que forçar qualquer pessoa a ter um filho que não quer é uma violência maior do que forçar uma mulher a fazer um aborto.

      Mas se eu falar isso na rua, apanho.

      • Acho que não me fiz entender.

        Eu engravido uma mulher. Eu quero ter aquele filho. Ela não. Supondo que o aborto seja liberado, ela teria que ter meu consentimento para tal?

        E se fosse a situação contrária?

        Entendo o “meu corpo, minhas regras”. Mas o filho também é meu. Tenha, dê pra mim e suma, não coloco nem o nome da mãe na certidão (se isso for possível).

        • Complicado…

          Minha opinião: o não deve prevalecer. Se UM não quer, o filho não deve nascer. Mesmo que a pessoa não te cobre nada, tem um filho seu no mundo. É um peso existir um filho seu no mundo e você saber disso. Não acho ético forçar ninguém a isso. Mas essa opinião é extremamente impopular, acho que mais ninguém vai concordar comigo.

          • Pois é, Sally, as maiorias “querem porque querem” nem tentar pensarem nas coisas terríveis que “mini-Eus” terão por terem nascido, em nenhuma das tais – ainda mais após divergência de casal…no Brasil…

  • A argentina ainda tentará descriminalizar o aborto assim como estão tentando aqui, via stf. Não acho q aborto será crime pra sempre por aqui, até as religiosas católicas e protestantes se manifestaram a favor do aborto na audiência pública. O progresso chega, com alguns séculos de atraso.

  • Acho importante deixar claro que o aborto descriminalizado é opcional pra quem quer fazer, pq tem um monte de crentalóides imbecis conspiracionistas achando que vai se tornar obrigatório.

    • Não sei se acham isso não. Acham que assassinato de bebês e que por isso ninguém pode fazer, pois “só Deus tem o direito de tirar uma vida”, a menos, é claro que alguém furte o celular da pessoa na rua, aí tem que pegar, amarrar no poste, linchar e matar de boinha.

  • Não é nada incoerente. Quem engravida são as mulheres e quem faz as leis são os homens, simples assim! Se homem engravidasse seria liberado abortar sem polêmicas, mas em país subdesenvolvido eles não pensam nem nos infelizes que vão nascer sem serem amados. Quanto mais gente ignorante, pobre e sem familia no mundo, mais vão pagar dízimo e votar em ladrão.

    • Outro Anônimo

      Ah tá. Como se não tivesse por aí muita mulher conservadora que fariam o pastor mais fervoroso se encolher. Fale de machismo pra essas “manas” que criam o filho como um reizinho falocêntrico.
      Outra coisa: mulheres compõem 52% do eleitorado. Se tem pouca mulher na política é porque nem elas votam nelas.

  • Dane-se esquerda e direita, apenas defenda o que você acha certo e pronto. A propósito, não vá ao Uruguai abortar. Lá só é permitido para mulheres uruguaias e estrangeiras residentes legalmente há pelo menos 12 meses. Bom, já é mais uma motivação pra emigrar…

    “Hoje estamos produzindo adubo, para que em algumas décadas venha a nascer algo melhor no lugar.” Bom ponto, eu lembro que muitos textos atrás você fez aquela alegoria dos remédios com efeitos colaterais, mas que no longo prazo curam o paciente. Tomara que você esteja certa. Vai ver o mundo subdesenvolvido (“emergente” é um termo muito florido) está passando por uma Idade Média tardia e algum dia vai melhorar. Ou não.

  • Quase que nem é sobre feto(s) !!!!!

    Até mesmo rednecks do Iowa (EUA) ainda sim entendem (ou pelo menos se fingem anti-falácias) que, pelo menos em teoria, a pró-escolha ainda pode passar de pouco além de um mês…lá mesmo !

    Como eu disse em outros assuntos, mesmo os(as) que escolhem “silêncio”
    até nos desprezam como falsos(as) ocidentais.

    Fica a dica !

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