Quanto custa?

Sim, nós vamos falar do elefante esfaqueado na sala, mas não hoje. Um dia a mais pode fazer muita diferença na análise e vamos fazer uso dele. Enquanto isso, eu estou de volta com uma ideia que martela a minha cabeça há algum tempo: no final das contas, não é que o dinheiro resolve mesmo todos os problemas? Pelo menos em grandes escalas.

Claro, a coisa é bem mais complexa do que entregar dinheiro na mão das pessoas em geral. Projetos como Renda Básica Universal – vulgo fornecer uma espécie de mesada geral para todas as pessoas independentemente de trabalharem por isso – parecem uma solução interessante em tese, mas todas as formas de aplicação da ideia até hoje não foram lá muito bem-sucedidas. Seja em implementações explícitas como a Finlândia tentou (e não conseguiu bancar), seja daquela forma desastrada nas tentativas de sistemas comunistas durante nossa história recente, a nossa sociedade parece não estar pronta para adaptar-se à ideia.

Se você simplesmente dá dinheiro para uma pessoa incapaz de economizar ou investir, ela provavelmente vai tratar seus ganhos de forma irresponsável e em muitos casos, acabar até com mais dívidas do que começou. Padrão de vida que sobe é complicado de descer, poucas coisas na vida são mais rápidas do que se acostumar com vantagens. Meio como aquelas histórias de pessoas que ganham na loteria, torram tudo com frivolidades e voltam a ficar miseráveis. Então, não… vai muito além de dar dinheiro para indivíduos.

A proposta do começo do texto baseia-se no fato que existe uma regra básica no funcionamento de tudo: movimento consome energia. Das escalas mais microscópicas da matéria à imensidão do universo, nada é de graça. Não existe energia grátis e a entropia garante que toda a que é gasta não pode mais ser recuperada. Para uma reação química ou para uma pessoa mudar de padrão de vida, deve-se gastar energia. E essa energia vem de algum lugar. Você pode trabalhar mais, aprender mais, roubar essa renda de outra pessoa, seja como for, subir na vida tem seu custo.

Entendo de coração uma visão mais Marxista das coisas, que os ricos estão se beneficiando do esforço alheio e que não deixa de ser uma forma de exploração, mas considerando o quanto de energia humana precisa ser gasta para que uma pessoa tenha todos os privilégios de uma vida rica (em posses e qualidade delas), era de se esperar que outras pessoas estivessem pagando esse preço mesmo nas camadas sociais mais baixas. Ser rico invariavelmente é acumular desproporcionalmente a energia gerada por outras fontes. O Sol emite energia, ela é captada pelas plantas e animais, quem está no topo da cadeia alimentar só está consumindo uma forma mais concentrada da mesma energia solar, só que num pacote mais conveniente.

E até na sociedade humana isso continua válido: é com o trabalho físico e mental alheio que uma pessoa rica gera para si valor suficiente para receber esse título. Ninguém chega nesse ponto sozinho. Tudo o que temos custou alguma coisa em energia. Inclusive ideias abstratas como justiça e caridade. Para que uma pessoa consiga transformar sua energia em ação para ajudar outros e fazer escolhas mais éticas, faz muita diferença ter valor suficiente para doar. Valor (dinheiro, tempo, conhecimento, etc.) é mais uma forma concentrada de energia. Pessoas com mais valor em mãos tem uma facilidade muito maior de redistribuir essa energia.

Vivemos falando sobre os problemas de uma sociedade brutalizada aqui no desfavor: o brasileiro tem tão pouco que frequentemente não se dá ao trabalho de sequer pensar no outro. Quem não consegue juntar valor o suficiente sequer para ter pensamentos mais abstratos dificilmente vai defender ideais bonitos como ética, justiça e compreensão. Não por uma maldade inerente, mas por uma básica falta de valor, ou, como estou defendendo aqui neste texto… energia.

A capacidade de escrever este texto me custou muito em energia, não só a do corpo para movimentar os dedos no teclado ou a que viabilizou as sinapses nos meus neurônios, mas a gasta em forma de estudo e prática na escrita. E não foi um processo rápido, foi muita energia gasta durante muitos anos. Acumular informação é um processo complicado, exige interesse e disponibilidade. Coisas praticamente inviáveis para quem mal consegue manter funções fisiológicas básicas de forma contínua. Quem está batalhando para pagar o próximo almoço fica muito debilitado para gastar sua energia em outra coisa. O que faz todo sentido, somos programados para sobreviver.

E digo mais, ter uma opinião mais ou menos ponderada sobre qualquer tema não vem de graça não. O gasto energético de tentar enxergar os dois lados de uma discussão e tirar as melhores lições dali é ainda maior. Exige não só que você gaste seus neurônios se informando, mas também que você analise as fontes dessas informações buscando incongruências. E para perceber algo dúbio ou mesmo errado, é obrigatória uma base ainda maior de conhecimento, que só vem com muita dedicação ao tema. Não é à toa que a maior parte dos seus preconceitos estão justamente nas áreas de conhecimento nas quais você menos se dedicou. O extremismo, por exemplo, é o estado mental mais econômico em energia depois da ignorância, pelo menos dá para gastar sua energia só com uma versão das coisas.

Por isso que começo a fazer uma mudança considerável na minha percepção do que torna mudanças sociais possíveis. Não é conscientização pela conscientização, e sim a disponibilidade de energia “extra” para fazer essa mudança. Mas, como bem sabemos, energia é um recurso limitado, ainda mais para seres humanos, que gastam tanta só para manter um funcionamento básico, especialmente dentro do crânio: quem não tem cérebro não precisa gastar energia com isso, o cérebro de um pássaro é bem menos exigente que o de um primata, e o nosso é de longe o que mais gasta energia no reino animal em proporção ao tamanho do corpo.

Toda grande mudança de patamar da complexidade social humana vem de carona com reduções consideráveis da necessidade de gasto de energia da população. Quanto mais gente pode se dar ao luxo de não ter que passar o dia todo cuidando de plantações e animais para ter o que comer, mais gente pode estudar e pensar em formas melhores de viver a vida. Quanto mais fácil e rápido é a comunicação, mais pessoas trocam ideias e conhecimento. Quanto mais nutritiva nossa comida, mais sobra para gastar com “bobagens”…

Pensa o quanto seu conhecimento e opiniões custaram até hoje. O quanto a energia teve que ser comprimida em pacotes cada vez mais densos para que a vida moderna fosse possível. E isso não se resume a alimentos mais nutritivos, o conceito de leis e regras de convivência é uma condensação de energia imensa, por exemplo. Quanta gente tem que gastar seu tempo e dedicação para que o seu caminho até o trabalho seja minimamente seguro? Qual o custo de um carro em horas humanas? Será que foi barato viver num mundo onde mulheres podem sair de casa e trabalhar?

Tudo isso foi pago, por você ou por seus ancestrais. Este texto mesmo foi pago pelos bilhões de humanos que já pisaram nessa terra e avançaram a sociedade até o ponto que estamos. Então, por que tanta gente ainda acredita que mudar o mundo é de graça? Que basta uma conversa ou um chilique na rede social para mexer na forma como as pessoas vivem? Por que acham que uma canetada de político resolve problemas como pobreza e violência? Eu, você e qualquer outra forma de vida neste planeta tem que pagar pelo movimento em energia.

Sim, é importante que discutamos ideias de como melhorar a vida da humanidade, mas, o discurso não entra em prática se as pessoas não puderem arcar com os custos dessas melhorias. Tentando resumir mal e porcamente o meu argumento aqui: o capitalismo é o preço do socialismo. Existe uma necessidade inescapável de gerar o valor que vai ser gasto na forma de evolução social, direitos humanos e igualdade. Não é de graça. Não tem como ser se uma das leis mais fundamentais da realidade é a entropia. Energia é o valor.

E hoje em dia, valor costuma tomar a forma de dinheiro. Dinheiro não deixa de ser uma forma concentrada de tempo e esforço de outros seres humanos. Um pacote denso de energia que pode ser acumulado pelas pessoas. Se conseguirmos entregar mais dessa energia acumulada para as pessoas, elas podem finalmente gastar com outras coisas como uma visão mais humanista da sociedade. Gente brutalizada (ou com medo de gente brutalizada) não consegue gastar esse capital porque simplesmente não o tem.

Não é o dinheiro em si que resolve a vida de ninguém, mas sim o acúmulo de energia que ele proporciona. Sim, ainda vamos ter muita gente desperdiçando essa energia toda e devolvendo-a para as mãos dos ricos torrando Bolsa-Família em produtos supérfluos e de luxo, mas redistribuir energia nessa escala obviamente não vai ser simples. Talvez no futuro consigamos achar formas melhores de concentrar essa energia do que no dinheiro, mas nos dias atuais, ainda é a solução mais utilizada.

Por isso eu começo cada vez mais a pender para o lado de representantes políticos capazes de melhorar a economia, ou pelo menos que tenham algum plano claro sobre o tema, porque nenhum discurso ou ideologia geram movimento num vácuo de energia (dinheiro) tão grande assim. Pode ser uma conclusão óbvia para muitos, principalmente os mais velhos que já viram como tudo custa caro na vida, mas para mim está sendo um momento de clareza na lógica do mundo. Explica muito bem o que funciona e o que não funciona. Países que conseguem aumentar a quantidade de dinheiro (energia) circulando, especialmente se bem distribuídos, apresentam melhorias sociais enormes. E assim que a economia piora, os indicadores sociais começam a despencar. E isso não acontece só no Brasil, é lugar comum no mundo todo.

Quem gera valor pode gastar depois.

Para dizer que não estava com saudades, para dizer que eu virei um porco capitalista, ou para dizer que agora fez sentido: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Olha só, eu estava com saudades dos seus textos sim!!! Suas ideias são ótimas.
    Por favor, não abandone o Desfavor.

  • Distribuição de riqueza gera valor, especialmente em países muito desiguais como o Brasil. Só em diminuição de desnutrição infantil já compensa uma certa distribuição. Mas é claro que o retorno tem um limite de ganho (ou de economia).

  • Me parece muitíssimo que deveríamos ser mais debatedores sobre aquele tal de (…) :

    O Capital no século XXI” ?

    Obs : quarenta e oito (notas + referências) na versão lusófona da Wikipédia / Wikimedia Foundation.

  • ” Toda grande mudança de patamar da complexidade social humana vem de carona com reduções consideráveis da necessidade de gasto de energia da população”.

    Tenho a impressão que cada vez menos os indivíduos querem bancar o curso de investir em fontes renováveis de energia. Demanda muita energia, e os frutos, se houver, dificilmente serão fruidos pela geração que bancar o custo. Ainda mais quando se entrega dinheiro na mão das pessoas em geral.

    Ou então juros subsidiados. Como foi quando euros foram disponibilizados a juros baixíssimos para os gregos…mas essa é outra odisseia…

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