Indo pra cima.

A vida é cheia de dificuldades, algumas delas causadas por nós mesmos. Sally e Somir concordam que é importante estar lá para ajudar pessoas queridas, mas não na forma como isso deve ser feito. Os impopulares se intrometem, ou não.

Tema de hoje: é válido se meter na vida de uma pessoa contra a vontade dela para salvá-la de um risco grave?

SOMIR

Não. E isso não tem nada a ver com não se importar, é uma forma de lidar com a situação baseada em duas premissas: primeiro que só é ajudado quem quer ser ajudado e segundo que nem sempre sabemos calcular o risco pelos outros. O que eu defendo aqui é estar disponível para ajudar sem criar o problema extra de ser invasivo.

Pode até parecer uma forma preguiçosa de lidar com as pessoas queridas ao seu redor, mas é resultado de experiência com o ser humano, incluindo este que lhes escreve: mudança é algo interno. Você pode forçar alguém a agir de uma certa forma de várias maneiras diferentes, desde manipulação até ameaças físicas, mas essas atitudes sob pressão tem o péssimo hábito de não serem consistentes. A pessoa age assim enquanto existe a pressão, sem mudar nada por dentro que gere um aprendizado.

E é aí que tudo começa a parecer um exercício fútil. Você entra num ciclo pouco produtivo de tratar dos sintomas ao invés da doença, e assim que não puder mais destinar sua energia para aquela pessoa, ela tende a voltar a ter os mesmos comportamentos de risco de antes. E tempo/energia é um dos recursos mais limitados dessa vida, pode ter certeza que uma hora ou outra você não vai mais conseguir manter o foco em intervir na vida do outro.

Adultos costumam fazer isso com crianças porque faz parte do acordo de paternidade gastar toda energia possível com filhos até eles aprenderem a fazer a coisa certa. E isso funciona porque uma criança tem uma mente maleável, que absorve muita informação e tem um grande foco em agradar os país. Essa forma de intervenção funciona numa fase da vida que nossos cérebros são programados para reagir a isso, mas depois começa a fica exponencialmente mais difícil.

Um parente, um amigo ou uma namorada já estão com suas mentes desenvolvidas, muito menos “esponjosas” para estímulos externos. Começa a ficar basicamente impossível tratar pessoas dessa mesma forma e esperar um resultado consistente. A sabedoria popular de que só muda quem quer vem muito disso, da forma como um cérebro adulto tende a querer manter sua visão de mundo com muito mais força que uma criança. Uma pessoa aprende e age diferente se houver uma mudança interna que a leve até esse ponto. Não é razoável querer forçar isso.

O que não quer dizer que alguém fazendo algo que a prejudique não tenha como se ajudado, só quer dizer que não dá para entrar na cabeça dele e “tirar com a mão” o problema. Esse alguém vai ter que resolver as coisas internamente antes de exteriorizar uma mudança. O que você pode e deve fazer é oferecer o suporte para essa mudança. Conversar, mostrar que está disponível, agir para ajudar no limite que a pessoa aceita…

Mais do que isso bate naquele escudo de visão de mundo do qual falava antes. Ninguém gosta de estar errado ou de fazer mal para os outros. Quem está numa situação dessas normalmente racionaliza o mau comportamento de alguma forma… todo genocida achava que estava salvando a humanidade. A mente humana é previsível nesse ponto. Não dá para dizer para alguém que está fazendo algo errado sem causar algum tipo de ofensa, mas dá para modular esse grau de invasividade sem essa pessoa se fechar totalmente para você. Melhor ofender um pouco para ofender sempre do que fazer algo muito grande e ligar todas as defesas do outro de uma só vez.

E não podemos esquecer: essa outra pessoa é adulta. Ela tem direito de fazer suas merdas, goste você ou não. Fazer besteira é uma das formas mais eficientes de gerar aprendizado. Todo mundo tem seu mix de boas e más ideias na vida, e monta isso mais ou menos como bem entender. A intervenção muito agressiva liga todas as defesas da pessoa fazendo algo ruim e ainda por cima a exime de responsabilidades. O ideal é reduzir ao máximo a quantidade de besteiras feitas antes de aprender, mas é complicado prever o que precisa ou não precisa acontecer antes disso. Se é que a pessoa está disposta a aprender: muita gente toma más decisões para se punir mesmo. O buraco está muito mais embaixo nesses casos.

Adoraria poder proteger todas minhas pessoas queridas numa bolha de segurança, mas essa não é a realidade do mundo. Todo mundo vai fazer merda e passar por perigos. Eu sou inclusive do time que protege essas pessoas próximas mesmo discordando delas ou achando que elas fizeram algo terrível, porque infelizmente isso é muito mais comum do que gostaríamos. A versão mais prática de estar lá pelas suas pessoas queridas é justamente… estar lá. Precisou, ajuda. Mas ser muito invasivo pode inclusive começar a te afastar dessas pessoas, porque faz de você um agente contra a liberdade delas, inclusive a de aprender. Eu sei que é terrível, mas às vezes a criança precisa se machucar para aprender o que machuca…

E mais um ponto: nem sempre calculamos bem o que é o risco para o outro. Uma família que manda o filho para fazer uma “cura gay” pode parecer horrível, mas na cabeça deles, estão fazendo de tudo para salvar alguém muito querido. Quem se preocupa com o outro também é falível. Todos somos. Erramos o cálculo de risco e recompensa de alguma coisa que a outra pessoa está fazendo e podemos até tirar dela algo muito bom. É importante pensar junto com o outro e tentar antever problemas, mas é mais importante ainda se lembrar que você também erra nessas análises. Muitas vezes você só tem que confiar que a pessoa sabe o que está fazendo e deixá-la seguir em frente. A vida é complexa e nem sempre sabemos diferenciar tudo o que é bom ou ruim para outra pessoa. Por isso mantenho: esteja lá, ajude se der errado, estenda a mão se a pessoa pedir ajuda, mas não tente forçá-la a ser o que não é. Quando for a hora dela, SE for a hora dela, você vai ter como fazer o seu.

E no final das contas, é o que dá para contar mesmo.

Para me chamar de preguiçoso e insensível, para dizer que sempre sabe o melhor para os outros, ou mesmo para dizer que achou que eu estava morto: somir@desfavor.com

SALLY

É válido ser invasivo e se meter na vida de alguém de uma forma que a pessoa não permite, para tentar salvá-la de algo muito grave?

Sim, quando o que está em jogo é algo muito grave, muito grave mesmo, como a vida da pessoa ou a vida de uma pessoa querida, tem que se meter sim. Se vai ser eficiente ou não, eu não sei, mas ao menos você vai saber que fez a sua parte.

Não falo apenas de coisa drásticas, como pegar um drogado e internar à força (coisa que eu também faria), falo também de coisas mais sutis, como dizer para a pessoa com todas as letras que ela precisa cuidar melhor da sua saúde ou vai morrer. “Ah, mas não adianta nada, a pessoa só faz o que quer”. Às vezes não, às vezes sim, dependendo da forma como você fale as coisas, depende do momento de vida, depende de muita coisa que você desconhece e não controla, então, na dúvida, eu fala, vai que toca o coração da pessoa, vira uma chave e ela absorve aquilo?

Sim, só a própria pessoa pode se salvar, mas você pode ser um agente que faz ela perceber a necessidade de se salvar ou que faz ela passar a ter vontade de se salvar. Presumir que o que a gente fala nunca vai adiantar de nada é desistir das pessoas queridas e apenas observá-las cometendo erros, muitas vezes destrutivos.

Vai me dizer que você nunca se meteu onde não foi chamado e, com conversa, conseguiu mudar o ponto de vista de alguém e impedir que essa pessoa faça uma grande besteira? Porra, é para isso que servem amigos, parceiros, família ou qualquer grupo de pessoas que te queira bem. E o contrário, nunca aconteceu? Uma pessoa te enquadrou, mesmo contra a sua vontade, e te fez ver que algo não estava legal, te salvando de muitos problemas futuros?

A pessoa que está cometendo um erro dificilmente percebe que está cometendo um erro (caso contrário não o cometeria, né?), por isso, nem sempre a intervenção de alguém é bem recebida. Não vou assistir passivamente uma tragédia acontecendo porque a pessoa está cega se eu estou vendo claramente.

Não posso obrigar a pessoa a fazer o que eu quero, mas vou me meter sim, para expor meu ponto de vista e, quem sabe, induzir a pessoa a uma reflexão para que ela tente ver as coisas por outro ângulo. Se meter não é coagir a pessoa a seguir uma ordem sua, se meter é dizer ou fazer coisas que não foram autorizadas ou solicitadas. De posse destas informações a pessoa faz o que quer. Se meter é dar mais ferramentas para a pessoa resolver o problema, ela usa se quiser.

Já fizeram isso comigo várias vezes e sou extremamente grata. Minha vida certamente seria muito pior se pessoas que me querem bem não tivessem interferido na hora certa. Porra, não somos perfeitos, todos nós de tempos em tempos surtamos, ficamos meio cegos, perdemos o rumo. Se as pessoas que nos querem bem não fizerem o possível para nos ajudar e nos colocar de volta nos trilhos, isso significaria que estamos sozinhos no mundo. Não, obrigada, eu quero uma rede de suporte que me ajude quando eu estiver cega, com todos os recursos possíveis.

Existem momentos da vida onde temos que fazer escolhas trágicas. Nenhuma das opções é a ideal, todas vão causar mal em algum nível. Nessas horas eu prefiro pecar pelo excesso e fazer tudo que estiver ao meu alcance para tentar evitar uma tragédia na vida de uma pessoa querida. Percebam que não estou falando de algo pequeno como reatar com um namorado chato, na primeira frase do texto tem a expressão “para tentar salvá-la de algo muito grave”. Estamos falando de risco de vida, risco de prisão, de coisas que afetarão a vida da pessoa de forma irreversível.

O fato de você se meter e tomar a chave do carro da mão de um amigo bêbado à força pode salvar a vida dele. Pode evitar que ele fique o resto da vida em uma cadeira de rodas. Pode evitar que ele mate outras e tenha que lidar com isso para sempre.

Se você já tentou dizer a um bêbado que ele não pode dirigir e tomar a chave do carro dele à força sabe que eles geralmente não gostam desta atitude. Mas, pergunte para quem já matou alguém dirigindo bêbado, ou para quem ficou em uma cadeira de rodas dirigindo bêbado, se a pessoa não gostaria que um amigo tivesse tomado a chave da sua mão no dia do acidente.

Somos humanos, somos falíveis. Precisamos de essa rede de segurança de última instância, onde alguém toma uma atitude extrema, seja tomar a chave da mão, seja falar umas verdades, para nos alertar de erros grandes. Se a pessoa vai aproveitar essa oportunidade ou não, bem, isso é problema dela. Cabe a você disponibilizar essa chance para a pessoa. Eu me sentiria omissa se não o fizesse. E digo mais: recriminaria amigos meus que não o façam comigo quando eu precisar.

Não sejamos românticos de pensar que tudo se resolve com civilidade e dentro dos limites impostos por cada um. Se uma pessoa que você ama está se colocando em risco de vida, está com o discernimento afetado, não está vendo claramente o risco no qual está se colocando (ou pior, no qual está colocando pessoas queridas), pode não dar tempo de resolver a questão dentro da política da boa vizinhança. Escolhas trágicas. Eu escolho jogar uma boia para quem está se afogando, cabe à pessoa pegar ou não, mas eu vou jogar a porra da boia.

Para coisas pequenas, reversíveis, eu posso até deixar correr solto, pois muitas vezes é necessário para que a pessoa aprenda. Erros podem ensinar, mas erros também podem destruir, depende do tamanho. Se eu achar que é um erro que vai destruir a pessoa, eu me meto até onde seja possível para viabilizar uma rota alternativa para essa estrada que acaba em um precipício.

Acho que a grande questão que responde à indagação deste texto é: como você gostaria que as pessoas queridas agissem com você, se fosse você a se colocar em um grande risco? Pois bem, faça o mesmo pelos outros.

Para dizer que eu sou invasiva, para dizer que é melhor fingir que não viu a merda que ia dar ou ainda para dizer que mal cuida de você, quem dirá dos outros: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • Vou ser bem sincero, não gosto muito do que estou me tornando. Mas depois de ser sacaneado algumas vezes por gente que confiava muito, eu parei totalmente de me importar com qualquer um que não sejam minha esposa e o meu filho. Não fui criado assim, muito pelo contrário mas não consigo mais ter sensibilidade para seja lá o que for que outras pessoas estejam passando. Já teve gente próxima de mim querendo se jogar da ponte e eu só dizer “faz o que quiser”.

    Não me orgulho nem um pouco disso.

  • Não me envolvo, o fato se deu com minha irmã.
    A broaca me fez ir parar até na delegacia, então hoje em dia eu fecho os olhos para qualquer coisa que não afete minha segurança.
    Mesmo correndo o risco de ser omisso, não me intrometo mais.
    Aí passo por “metido, Arrogante e outras cositas mas”.

  • Não gosto de me meter na vida dos outros e também não gosto que se metam na minha; e, embora entenda o que o Somir disse sobre “só é ajudado quem quer ser ajudado “, eu fico com a Sally nessa. Mesmo que a situação nunca se resolva realmente, ou que terceiros me digam que eu só estaria desperdiçando o meu tempo com um caso perdido, eu sinto que, moralmente, sou obrigado a intervir. Mesmo que a própria pessoa não aceite, diga que não precisa ou tente se afastar de mim. E mais: querendo ou não, eu também teria que lidar com as conseqüências das ações da pessoa – e das minhas próprias – e não gostaria nem um pouco de me penitenciar pelo resto da vida por não ter feito nada.

  • Somir voltouuuuu!

    Concordo com Somir de q a mudança é interior e q nos mesmos podemos estar equivocados, mas tem erros q podem destruir a pessoa e se gostarmos dela é normal q queiramos ajudar.

    O fundamental na minha humilde opinião é o q essa pessoa significa para quem quer ajudá-la e a “moral” dela na questão .
    Tem gente q a vida é uma merda e quer se meter na dos outros. Agora, se estou me fodendo em um relacionamento ou em um emprego e a pessoa é bem sucedida nessas áreas e eu gosto dela acho q a minha probabilidade de me deixar influenciar seja grande. Do contrário, acho q é uma chatice quem se mete na vida alheia sem q a mesma peça. Eu, particularmente tento não me meter se a pessoa não me pedir.

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