Legal ou não?

Ser viciado em qualquer coisa é uma péssima ideia, nisso Sally e Somir concordam. Mas quando o ponto é a legalidade do vício, surge uma overdose de discordância. Os impopulares entregam sua dose.

Tema de hoje: O que é pior, ser viciado em uma substância lícita ou em uma ilícita?

SOMIR

É pior ser viciado em algo lícito. Evidente que o melhor dos mundos é não ser viciado em nada, mas considerando que a premissa do texto de hoje é ser viciado em algo, o pacote geral do vício numa substância lícita parece ainda mais perigoso do que o da ilegalidade. E tem tudo a ver com as consequências de ter um vício no curto e no longo prazo.

O vício só existe por uma questão de vantagens reduzidas com o passar do tempo: o corpo humano não aceita qualquer substância externa, faz de tudo para que não coloquemos para dentro muito de qualquer coisa. Quanto mais você consome de algo (legal ou ilegal), mais ser corpo aprende a anular os efeitos dessa substância. Seja álcool ou heroína, a cada vez que você consome, a sensação de prazer e saciedade fica menor. E é nessa adaptação fisiológica que começa o abuso, precisa consumir mais e em intervalos menores para manter o vício funcionando. E infelizmente a necessidade daquela substância não diminui de acordo com a eficácia dela, o cérebro aprende a funcionar de um jeito e não gosta de mudar.

Muito embora algumas drogas sejam danosas para o organismo, em doses corretas elas não são nada demais. Temos preparação para lidar com basicamente todos os remédios e venenos do mundo. Tanto que a medicina existe. O verdadeiro problema do vício é a manutenção dele e os danos no longo prazo que realizam. E aí vale a pena considerar o argumento de que quanto mais difícil manter o vício, menor a probabilidade dele chegar nessa etapa realmente problemática.

Substâncias viciantes legais como álcool e cigarro tem a “vantagem” de estarem disponíveis em qualquer lugar do mundo, e normalmente por um preço pra lá de aceitável. Se você passar do limite e entrar no vício, não tem mais nenhum fator externo considerável te segurando. Até mendigo consegue sustentar minimamente um vício desses. As consequências tenebrosas para a saúde e qualidade de vida em geral vão ser alcançadas sem muita dificuldade.

Já no caso da substância ilícita, o buraco é bem mais embaixo. Sim, não é o fim do mundo conseguir drogas ilegais no Brasil, mas também não é como ir até a padaria da esquina… a ilegalidade cobra um preço extra. Literalmente. Drogas ilegais são bem mais caras, mesmo as mais disponíveis como a maconha. A droga legalizada chegou num ponto tão avançado de produção de escala que no caso do cigarro, basicamente todo o preço é imposto do governo. E dinheiro conta nessa história de vício. Mesmo nos meus maiores perrengues financeiros da vida, sempre coube um maço de cigarro, por exemplo.

O viciado na droga ilícita fica exposto a um mercado desregulado, onde cada um cobra o que quiser e explora o viciado diretamente. Se o traficante quiser, muda o preço na hora só para você. Tudo bem que as pessoas fazem coisas horríveis para conseguir dinheiro de droga, mas vamos pensar um pouco: se TODO viciado começasse a cometer crimes para pagar suas drogas, o mundo parava de funcionar em semanas. A maioria não faz QUALQUER coisa pelo dinheiro da droga, até porque são necessários estágios mais avançados de vício para a pessoa perder a noção completa da sociedade.

O que é uma ótima barreira para o consumo excessivo. Se o dinheiro regula o consumo, um pouco que seja, o cérebro tem menos oportunidades de gerar a resistência e o ciclo fica mais lento. Se o maior problema é o vício, o que reduz o seu consumo tem que ser visto como positivo. Além de preço, o próprio entorno do comércio de drogas ilegais tem seus limitadores: em algum momento na cadeia de distribuição estão presentes bandidos realmente perigosos. Se der uma vontade no meio da noite, só quem já perdeu a vontade de viver que vai subir de alegre um morro ou se enfiar no meio de uma favela procurando por droga. Tem lugar aberto 24 horas em lugares seguros vendendo drogas lícitas, é muito mais fácil continuar abusando com toda essa disponibilidade.

E tem todo o fator psicológico: a pessoa com um vício legalizado pode passar a vida sem notar o problema, até que a saúde finalmente cobre o preço. Quem está na droga ilegal sabe o tempo todo que tem algo errado. Mesmo o maconheiro mais ativista sabe que vai pra cadeia se fumar um baseado na frente de um policial minimamente mal-humorado naquele dia. Todo mundo sabe o que é legal e ilegal. A pessoa viciada no que é legalizado pode até se enganar que não tem problema nenhum, gerando o pior do problema com o consumo frequente e abusivo. A droga legal te permite continuar fazendo parte da sociedade, tirando essa punição que o drogado ilegal tem que pagar.

Como todo o meu foco aqui é que o pior é não conseguir reduzir o consumo ou sair do vício, todos os problemas das drogas ilegais reforçam meu argumento. Usar drogas ilegais é como ser gordo com uma namorada marombeira: você sabe que está errado e o tempo todo vai correr risco de perder a relação por causa disso. Já as legais é como ter uma namorada tão ou mais gorda que você: é tão fácil estar errado que vira um modo de vida. Vai fodendo a sua vida e a vida das pessoas ao seu redor de forma bem mais silenciosa, sem sustos que te fazem reavaliar as suas escolhas.

E só para completar: cigarro e álcool fazem mais mal para o mundo do que qualquer outra droga ilegal, de longe. O resultado fica claro no sistema de saúde e na quantidade imensa de crimes cometidos por pessoas alcoolizadas em relação às que usam drogas ilegais. A facilidade do acesso contribui imensamente para o problema humano.

Sempre pior quando a coisa ruim é fácil também.

Para perguntar qual a substância ativa da internet, para dizer que o pior é viver demais, ou mesmo para dizer que para quando quiser: somir@desfavor.com

SALLY

O que é pior, ser viciado em uma substância lícita ou em uma ilícita?

É pior ser viciado em uma substância ilícita, pois, além do vício em si, o fato se der ilícito gera outros riscos extras, como cadeia e todo tipo de violência. Porra, é bem simples: é pior porque é CRIME, cacete! Além de viciada, a pessoa passa a ser uma criminosa.

O que você prefere, que seu filho vá à farmácia para comprar algo para se entorpecer ou que suba o morro, vá a comunidade barra pesada ou a qualquer beco, gueto ou submundo da criminalidade para comprar drogas? O vício em si já é bastante ruim, quando se acrescenta traficante violento que mata em caso de discussão ou dívidas, a equação me parece um pouco pior.

Sim, ser alcoólatra é uma merda, mas ao menos a polícia não te prende se te encontra abraçado a uma garrafa de cachaça no meio da rua. Por pior que seja, e todo vício é horrível, não gera prisão. E, meus amigos, prisão no Brasil é algo tão tenebroso que arrisco dizer que é tão ruim quando um vício.

Na boa? Viciado é viciado, ele vai atrás do que o viciou até o inferno. Não é o fato de ser proibido que o impede. Se viciado tivesse controle, se ilegalidade impedisse um viciado, não veríamos gente subindo morro com TV nas costas para trocar por droga. O fato de ser proibido ou ter acesso mais complicado não impede viciado de nada. Impede sim que eventualmente pessoas experimentem e se viciem, mas, percebam que no tema de hoje falamos na condição de “ser viciado” e não na de “correr o risco de ficar viciado um dia”.

Comprar uma substância entorpecente no supermercado é mais seguro do que enfrentar zonas barra pesada, onde pode haver confrontos com a polícia, roubos, sequestros e milhões de formas de violência, e não apenas pelo entorno. Se você fica devendo ao supermercado, o supermercado não manda te torturar ou te assassinar. É sempre melhor andar dentro da lei, da normalidade, do que se esgueirar por onde o Estado não entra. Pelo menos há alguma garantia, ainda que pequena, de seus direitos individuais.

Além disso, quando se é viciado em uma substância lícita, não se corre o risco de transportá-la consigo. Um fator a menos de abordagem e prisão. Também não é preciso consumir escondido, se enfiar em buracos sem lei, sem polícia, sem vigilância para poder consumir impune, se expondo, por tabela, a qualquer consequência negativa que um lugar sem lei possa gerar.

Se outro bêbado parte para cima de você em um bar para roubar sua bebida com uma faca, pode ter certeza que pessoas do estabelecimento vão intervir. Já em um beco escuro, em um lugar sem lei, duvido muito.

O estigma de quem é viciado em uma substância lícita também é menor. É uma pessoa que, assim como você e eu, fez uso de algo permitido, mas não soube ou conseguiu se controlar. Há identificação: poderia ser você, poderia ser eu. Já quando a pessoa faz uso de algo ilícito, o erro antecede ao uso: a pessoa já fez besteira quando decidiu cruzar a linha da legalidade e experimentar, antes mesmo de efetivamente provar a droga.

Reparem no peso das palavras: alcoólatra x drogado. Um alcoólatra é uma vítima do organismo, um drogado é, até segunda ordem, um vagabundo delinquente. Nem entro no mérito se é justa esta classificação, provavelmente nem seja, apenas estou apontando que ela existe. Bem ou mal a sociedade pensa que, se um dia aquele marido, funcionário ou pai recair, é só uma recaída, não comete crime, por isso seria menos grave.

Mesmo sabendo que todo vício é nocivo, ao menos quem é viciado em substâncias lícitas usa substâncias que passaram por algum controle de qualidade. Acho improvável que você encontre uma marca de cachaça que venda bebida com bosta de vaca ou um xarope para tosse que contenha chumbinho. Já drogas ilícitas, não passam por qualquer fiscalização, muito pelo contrário, são adulteradas e misturadas ao máximo para dar mais lucro ao traficante.

Outra coisa, não é o melhor dos motivos, mas é um fator: drogas proibidas são mais caras, justamente por serem proibidas, portanto, mais difíceis de conseguir. É mais raro ver um alcoólatra levando a televisão de casa para trocar por pinga, certo? Isso porque bebida é lícita, e, com a concorrência de mercado, existem bebidas de vários preços. A pessoa consome o que pode pagar. Droga não, traficante cobra o que quer, dane-se a síndrome de abstinência do usuário. E pessoa em síndrome de abstinência não deixa de consumir se não tiver dinheiro: ela vende seus pertences, ela assalta, ela comete crimes se preciso for.

Se por um lado a droga lícita é mais fácil de conseguir, por outro a sociedade exerce um controle maior no uso. Em muitos estabelecimentos, quando percebem que o cliente está em um grau de degradação alcoólica grande, não continuam servindo a bebida. Ou o deixam dormir por lá. Ou o colocam em um táxi e o mandam para casa. Há um mínimo de cuidado, escorado na punição prevista para omissão de socorro. Vê se traficante vai fazer isso. É cada um por si, é terra sem lei, se tiver uma overdose lá dentro o corpo vai ser enterrado em uma cova rasa para não trazer problemas.

E, finalmente, por algum motivo as drogas são ilícitas. Em sua maioria, elas tem um potencial destrutivo maior do que as lícitas, tanto na capacidade de viciar, como na capacidade de destruir seu organismo. Por isso convencionou-se proibi-las, em função de problemas graves que traziam à saúde e segurança pública. Uma pessoa que fumou crack está totalmente fora da realidade, em outro mundo, é capaz de fazer qualquer coisa, até de matar, por não discernir as consequências dos seus atos.

Dificilmente alguém fique viciado em álcool ou em remédios para dormir em um único gole ou dose. É um processo, é gradual, dando ao usuário mais tempo e oportunidades para romper com este processo. Já drogas pesadas… basta uma única vez para que o corpo experimente o vício, caso a pessoa tenha essa propensão.

É bem simples: o que você prefere: estar na merda sem cometer crime ou estar na merda cometendo crime?

Para dizer que bom mesmo é se viciar em cogumelos que são encontrados de forma gratuita na natureza, para dizer que hoje em dia tanto faz ser licita ou ilícita pois tá tudo uma zona ou ainda para dizer que o Pilha deveria responder a esta questão: sally@desfavor.com

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Comments (9)

  • Ilícitas, claro. Antes de ler os textos, a primeira coisa que pensei foi que as drogas lícitas tem mais ou menos um padrão, algum controle de qualidade. As ilícitas podem conter sabe-se lá o quê, seja para render mais, para viciar mais rápido, para potencializar o efeito, etc. Então lí os textos, o Somir foi pelo viés da facilidade na aquisição tornar o vício mais cômodo. A Sally abordou as questões de legalidade, segurança e capacidade destrutiva. Os argumentos da Sally foram mais contundentes.

    Ainda tem outro tipo de droga lícita que vocês não mencionaram: as prescritas. Se couber como adendo, vou escrever sobre um episódio pessoal. Há 15 anos atrás, por conta de um tratamento médico, precisei fazer uso por 10 meses de um remédio a base de morfina. Ainda hoje, mesmo sem ter contato com esse remédio por todo esse tempo, eu ainda sinto falta dele a um nível que se eu tivesse acesso a ele, eu realmente não sei se eu conseguiria evitar fazer uso. No meu caso, existem dois freios: 1) a consciência de que a dependência química provavelmente vai persistir até o fim da minha vida, e 2) a dificuldade em convencer um médico a te prescrever algo que você não precisa. E eu ainda sou ‘certinho’ demais para tentar por vias ilegais.

    E olha que foram só 10 meses. Imagine a enorme dificuldade que deve ser para alguém que usa drogas mais pesadas por anos e anos se livrar do vício e não sofrer recaídas.

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