O ser humano indiscutivelmente alcançou um status especial no planeta pelo estágio de evolução que alcançou, mas Sally e Somir passam essa questão por um juízo de valor. Os impopulares decidem o valor da vida.

Tema de hoje: em qualquer circunstância, e em abstrato, uma vida humana vale tanto quanto uma vida animal?

SOMIR

Em abstrato? Sim. Sem preferências obrigatórias pela nossa espécie. Se estivéssemos usando exemplos concretos daria para argumentar para qualquer um dos lados, o pior exemplo do humano contra o melhor do animal faria a maioria das pessoas concordar com a vida animal tendo mais valor. E comparando um animal qualquer com uma pessoa que você no mínimo não detesta, a maioria tenderia à pessoa. Nada de novo aqui. Mas se é para considerar as médias, nenhuma vida é inerentemente mais valiosa que a outra.

É comum que um ser humano tenha em sua mente algum modelo de ordem consciente da realidade percebida. Para muitas pessoas, isso é a religião que seguem. Um sistema mais ou menos previsível de valores, punições e recompensas que faz o Universo ser um lugar onde exista bem, mal, justiça e injustiça. E eu chamo de ordem consciente porque para fazer um julgamento, é obrigatório ter feito uma escolha clara sobre os parâmetros desejados para essa realidade.

Na sociedade humana, pelo menos idealmente, somos contra o abuso e exploração daqueles mais fracos, seja no físico, no psicológico ou mesmo no poder exercido pelas relações sociais. Desejamos que as trocas entre pessoas sejam baseadas em valores equivalentes e que tenhamos o direito a ter propriedades. Não é a regra de todas as sociedades historicamente, mas parece ser o consenso nos dias atuais. Seja como for, é praticamente impossível achar alguém que não carregue consigo a noção de que existe um conjunto de valores básico para a realidade.

Só que na verdade, não há. O átomo não faz escolhas, ele segue leis da física. As interações entre matéria/energia não são baseadas em valores baseados no convívio continuado de uma espécie capaz de pensamento abstrato, a realidade é essencialmente “preguiçosa” e sempre tende à entropia, vulgo o caminho mais fácil entre dois pontos. Se você conseguir desligar mesmo que por um momento esse modelo de ordem consciente que criamos para vivermos em sociedade, vai perceber que todas essas questões de mérito e valor estão só na nossa cabeça.

Em abstrato MESMO, nenhum átomo é mais especial que o outro. Até mesmo a diferenciação entre humanos e animais começa a se tornar abstrata. Até o conceito de vida pode ser relativizado: estar vivo não é fundamentalmente diferente de estar morto dentro das leis da física, todos os processos básicos de funcionamento da realidade continuam valendo. Os valores de uma vida estão dentro de nossas cabeças enquanto estamos vivos.

O que criticamos muito aqui é a “traição” do conjunto de valores da humanidade quando uma pessoa vota num candidato que salva cachorros ao invés de um que quer melhorar o sistema de saúde. Gente que se importa mais com um animal de estimação do que com o filho, por exemplo. Ou mesmo ativistas imbecis que atrapalham pesquisas médicas para dar liberdade para coelhos… isso é horrível, mas somente dentro desse nosso modelo de ordem consciente da realidade. Queremos que as pessoas continuem seguindo o conjunto de valores que colocam o ser humano em primeiro lugar.

E é claro que isso se torna muito complexo: quando você gasta o seu dinheiro com ração para seu animal e não para alimentar uma pessoa necessitada, não deixa de estar traindo esses valores também. Normalmente é muito difícil seguir um conjunto de valores com perfeição, eventualmente você vai incorrer em contradições. Mas nada de tão terrível assim, quando eu escrevo aqui que é absurdo dar mais valor para um animal do que para uma pessoa, estou considerando também uma faixa de quão aceitável pode ser esse comportamento. Na média, humanos em primeiro lugar, mesmo que falhemos em manter consistência total.

O que não quer dizer que sejamos obrigados a pensar dessa forma. Ainda não se pode controlar a mente de alguém ao ponto de impedir que ela se rebele contra esse modelo. É totalmente factível que você perceba o seu cachorro como uma vida mais valiosa do que a de outra pessoa, não tem nada nesse pensamento quebrando a realidade em si. É um caminho totalmente aceitável para as sinapses que acontecem no seu cérebro, tanto que acontecem. Num universo baseado na escolha do caminho mais simples entre dois pontos, não podemos fazer pouco de nenhuma conclusão alcançada pela mente humana: se existe é porque venceu uma batalha contra virtualmente infinitos outros caminhos.

É mais difícil e até mais louvável ser consistente na defesa desse conjunto de valores humanistas, mas não é nem de longe a única opção. Uma vida humana tem tanto valor quanto quisermos que tenha. Tanto que em diversos momentos da nossa história usamos essa mesma vida humana como moeda de troca para saciar os desejos daqueles que estavam no poder. Fazemos isso há milênios com os animais, e não é uma regra da realidade que isso aconteça. São escolhas. Abusamos e ajudamos ambos os lados de acordo com a situação. Voltando ao exemplo de cuidar do seu animal de estimação: você gasta tempo e recursos que poderiam ser usados em pessoas com esse animal, então inevitavelmente está relativizando o valor da vida dessa pessoa aleatória que poderia ser ajudada no lugar.

Em abstrato, todos os valores são resultado de um modelo de ordem consciente moldado pelo conjunto das mentes que tem efeito sobre a sua, mas essencialmente a sua visão da realidade. Dentro da sua cabeça não tem certo ou errado, isso só surge em medida de comparação com outros seres humanos, afinal, somos uma espécie social. Animais irracionais não fazem juízo de valor nesse grau de complexidade, por isso não os tratamos como responsáveis. Humanos podem ser responsáveis por nascerem assinando um pacto social complexo que vão demorar décadas para entender. Mas tudo isso está só na nossa cabeça.

Para o Universo, basta não violar a entropia. O resto é resto.

Para dizer que não entendeu nada, para dizer que entendeu o que queria entender, ou mesmo para me expulsar do pacto: somir@desfavor.com

SALLY

Em qualquer circunstância, e em abstrato, uma vida humana vale tanto quanto uma vida animal?

Em abstrato, uma vida humana vale mais do que uma vida animal. Eu sei que falando em concreto, em casos particularizados, vai ter quem prefira a vida do seu pet amado à de um estuprador, por isso fizemos essa ressalva do “em abstrato”. Por ser humano, eu acredito que a vida vale mais do que a de um animal e, francamente, é questão de bom senso, nem deveríamos estar discutindo isso. Fiquei surpresa quando o Somir aceitou o tema.

Não se trata de “superioridade”, eu nem mesmo acredito que exista hierarquia. É que eu realmente acho que um ser com polegar opositor, cérebro e sentimentos complexos tem mais valor para o mundo do que uma formiga. Ele pode aportar mais ao mundo. Se vai de fato aportar ou não, não sabemos, pois o exemplo é em abstrato, porém, dentro do mundo das possibilidades, eu não tenho coragem de dizer que um humano vale menos do que um animal que sequer reconhece seu reflexo no espelho, não é capaz de empatia e não pode fazer absolutamente nada para melhorar a sua vida ou a vida dos demais seres vivos.

Não é ser melhor, não é ser superior, não é ser mais merecedor. Estamos falando de VALOR. Valor é o que o conjunto de habilidades daquele ser proporciona. Em uma metáfora tosca: um belíssimo vaso de gesso ainda vale menos do que um horrível vaso feito de ouro. Então, se poupem e me poupem do discurso de defesa dos animaizinhos. Amo eles, merecem respeito, dignidade e amor, mas porra, não dá para dizer que vida de bicho tem mais valor do que vida de gente.

Tenho certeza que em algum lugar do mundo tem um cão que salva vidas porque detecta câncer, um golfinho que aprendeu a se comunicar com humanos ou um gorila que salvou um bebê, mas porra, estamos falando em abstrato aqui, como regra geral. Pegar o pior humano e compará-lo com o melhor animal gera um falso positivo. Na vida, sempre trabalhem com a regra geral, se acontecer uma exceção, que bom, um bônus. Mas, spoiler, o que acontece quase sempre é a regra geral. Humano médio x animal médio.

Talvez por estarmos muito decepcionados ou pessimistas esquecemos do que o ser humano é capaz em matéria de bondade ou produtividade. Tem muita gente ruim no mundo, mas também tem muita gente boa, que cria coisas maravilhosas e impulsiona nosso desenvolvimento como espécie. Não é a toa que o ser humano é a espécie que mais deu saltos evolutivos até hoje, que chegou mais longe em matéria de conhecimento, habilidades e capacidades.

Tudo que temos hoje em matéria de saúde, qualidade de vida e conforto foram criações humanas. Então, sem essa de abraçar os animais como tendo mais valor, a menos que você seja coerente e esteja disposto a levar uma vida compatível com essa sua admiração: cagar no mato e dormir no chão.

E não pensem vocês que animais são criaturas puras, boas e abençoadas. Animais tem maldade sim. Animais escravizam o coleguinha, por puro sadismo. Estupram fêmeas. Se ameaçam, caem na porrada, são cruéis uns com os outros em circunstâncias que os biólogos já aceitaram ser fruto de pura maldade, sem qualquer propósito que se justifique. A diferença é: eles não podem fazer nada para melhorar a vida humana. O ser humano pode. Por isso vale mais na minha escala de valor.

Acho até meio mongoloide projetar a própria decepção de escolhas erradas em toda a humanidade. Tenho verdadeiro pavor de gente que idolatra bicho pelo simples fato de que o bicho não pode lhe fazer mal. Isso não faz do bicho bom, isso faz do bicho incapaz. Se você escolhe tão mal quem entra na sua vida que precisa se cercar de incapazes de te fazer mal, bem, o problema está mais em você do que na raça humana.

E com isso não tiro o valor dos animais, eles têm seu valor sim. Só que defendo a premissa de que, o ser humano, por ser capaz de um pensamento mais complexo e de criações extremamente úteis evolutivamente falando, vale mais do que uma codorna que só anda, come e caga. Elas têm o seu papel, mas porra, se é para medir valor, sejamos realistas, a vida humana vale mais.

Nem por isso tem que matar, torturar ou maltratar bicho. Todas as vidas merecem respeito. Uma coisa não é excludente da outra. Não estou dizendo que a vida humana mereça “mais respeito”, estou dizendo que, na minha opinião, ela tem mais valor pela capacidade de um ser humano de colocar seu conhecimento em prática e proporcionar melhoras para sua espécie, para outras e para o mundo. Não é pra sair chutando pombo na rua, mas porra, também não é para dizer que a vida de um pombo vale mais do que a de uma pessoa, né?

Pense em tudo que animais, em abstrato, como categoria, já fizeram por você. Agora pense em tudo que o ser humano, em abstrato, como categoria, já fez por você e me diga, com sinceridade, quem tem mais importância. Se não fosse pelo ser humano, nem viva eu estava, então, desculpa, muito amor e respeito pelos animais, mas não tenho como igualar a vida de uma pessoa à de uma galinha.

Você pode até gostar mais de bicho do que de gente, mas se nega que uma vida humana tem mais valor provavelmente está usando um critério infantil e egoístico: prefiro quem não tem a capacidade de magoar, fazer mal, sacanear. Pois adivinha só: na vida tudo tem dois lados, quem tem a capacidade de fazer muito bem, também terá a capacidade de fazer muito mal. Ou pega o pacote, ou nada feito. Se contentar com menos para não correr riscos é medíocre.

Bicho pode ter os predicados que for, mas ainda é bicho. Humanos tem sim mais valor do que animais se você valoriza uma civilização, ciência, medicina e tecnologia, sem os quais, diga-se de passagem, eu não estaria viva. Então, hora de deixar o romance de lado e começar a encarar as coisas de forma realista: bicho acima de ser humano é um discurso lindinho, mas não se sustenta.

Para dizer que realmente este assunto nem deveria ser discutido, para ignorar tudo que eu falei e citar seu pet ou ainda para dizer que ninguém vale nada: sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • O ser humano tem autoconsciência, coisa que nenhum animal jamais vai ter. Quero ver um animal compor uma sinfonia ou escrever um clássico da literatura.

  • Entendo o que a Sally quer dizer apontando para o fato de que os humanos, por terem evoluído, são capazes de mudar algo no mundo em vez de simplesmente existir, mas fico com o Somir nessa. Concordo especialmente com o que ele diz que, “em abstrato MESMO (…), questões de mérito e valor estão só na nossa cabeça”. Recolhendo-nos à nossa própria insignificância e olhando-se – bem – friamente para as coisas, percebemos que, no fundo, todos os seres que habitam este planeta são nada mais que formas de vida baseadas em átomos de carbono reunidos segundo leis fundamentais do universo que a ciência ainda não compreende totalmente. E, por esse ponto de vista, acho que não há como uma vida valer mais do que outra.

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