Berço esplêndido.

O Brasil vive uma polarização política única em sua história, com muita gente pensando nos rumos desta nação e preocupada com o que pode dar errado. Medo de fascismo, de comunismo… não faltam ameaças na mente do brasileiro de um cenário terrível caso o outro lado tome controle. Já falamos aqui sobre os perigos de aceitar esse exagero ideológico, mas que tal falarmos sobre como este país é uma criança perto da maior parte dos outros, e uma das mais mimadas?

Se formos comparar a história do Brasil com a grande maioria dos outros países do mundo, não só nossos 500 anos são pouco perto das civilizações milenares que comandam o mundo atualmente, como as dificuldades enfrentadas nesses poucos anos são bem menores do que as enfrentadas em média pelas outras. Pelo menos as que conquistaram algum poder. Como o que aprendemos nas nossas escolas é basicamente só a história do Brasil, quando você começa a buscar um pouco mais de conhecimento sobre os outros povos e países, pode se chocar com o tamanho do desastre que foram os últimos séculos para a maioria deles.

Não é meu ponto aqui dizer que colonização e escravidão foram pouca coisa, o Brasil tem seu histórico de barbáries sim, mas não na escala incrível que vemos ao redor do planeta. Boa parte de Europa, Oriente Médio e Ásia passaram os últimos milhares de anos num estado quase que perpétuo de guerra, com raros períodos de paz. Cada um desses povos tem histórias e mais histórias de genocídios, escassez e desastres naturais que fariam qualquer brasileiro arregalar os olhos, mesmo os que vivem a violência sem fim daqui.

Está fácil viver no Brasil de hoje? Não, claro que não. Mas história conta na capacidade de um povo de lidar com seus problemas. Nossos comportamentos são muito hereditários. A experiência que o brasileiro passa para o seu filho é a de um sistema que não funciona na maioria das vezes, com pouca ou nenhuma união em prol de causas maiores, e especialmente a de tentar conseguir vantagens para si mesmo sempre que puder. Essa famosa índole do brasileiro, que o brasileiro conhece muito bem, mas fica puto da vida quando um estrangeiro apronta, é resultado direto da história desse povo.

O brasileiro não tem muito de sofrimento coletivo no seu DNA social. Sim, sempre foi um país muito desigual, com muita exploração, mas temos que diferenciar uma situação feito uma guerra ou uma catástrofe natural de um sistema corrupto. Enquanto as primeiras geram um senso de união e uma urgência para a resolução, o problema mais comum da história brasileira semeia apenas desconfiança e desinteresse do cidadão médio na coletividade.

É uma espécie de ciclo vicioso: povos que precisam reconstruir tudo de tempos em tempos ficam muito focados em aproveitar os momentos de bonança já prevendo as dificuldades. Os que vivem num marasmo de injustiça acabam empurrando com a barriga, até pelo medo de serem punidos pelo esforço quando alguém mais esperto toma os frutos do seu trabalho. Não é só temer perder as suas posses para os vizinhos, é a certeza que vai produzir riquezas sozinho e ficar cercado por pedintes.

É uma informação extremamente impopular nos dias atuais, mas é justamente isso que acontece em regiões da África nos dias atuais: construir algo não é incentivado porque coloca um alvo na cabeça da pessoa imediatamente. Existem vários relatos de pessoas que vão para lá fazer caridade com a mentalidade “não dê o peixe, ensine a pescar” e voltam completamente desiludidas com os fracassos. As coisas não avançam porque assim que uma pessoa aprende a empreender e ganha um pouco mais, é como se virasse mais uma instituição de caridade para a população local. A família vem e consome todos os recursos sem se preocupar com a continuidade do negócio, seja uma fazenda ou uma fábrica.

E eu nem entendo por que é politicamente incorreto falar disso, até porque não é uma questão da cor da pele desse povo, é um comportamento humano reprodutível em qualquer outra configuração genética, desde que um povo não tenha sido moldado por milênios de sofrimento coletivo que só podia ser resolvido com esforço coletivo. Puxei o exemplo da África para falar do Brasil também: embora a mentalidade de empreendedorismo já tenha mais espaço por aqui, estamos em média só um passo na frente. O brasileiro já consegue focar mais no amanhã no que tange sua família e amigos próximos, mas é completamente cego sobre a coletividade, o Estado e suas instituições.

Crie uma instituição de caridade e vai aparecer algum político tentando desviar dinheiro público através de você. Tente incentivar o voto consciente e veja o povo te ignorando por dentaduras e favores em geral. O Brasil não tem mentalidade coletiva porque nunca precisou criar uma. Não fosse a exploração e a desigualdade de renda, teríamos aqui recursos mais do que suficientes para abrigar e alimentar boa parte da humanidade. Os 200 milhões de habitantes são fichinha para esta terra. Tanto que nossa agricultura alimenta boa parte do mundo do mesmo jeito.

Mas qual a vantagem de construir algo para o coletivo no país dos espertos? Não é o grau de desapego com o futuro visto em sociedades modernas ainda mais recentes que a nossa como algumas na África, mas é impensável para povos como o europeu, por exemplo. Por lá, não pensar no futuro significava a morte há milênios atrás. Um continente que congela uma parte do ano forma humanos predispostos a passar para os filhos um forte senso de comunidade e planejamento. Tanto que os povos que estavam numa linha média entre a estabilidade do equador e o frio incessante do polo norte acabaram colonizando quase que o mundo todo.

Eles estavam séculos e séculos na frente do resto da humanidade. Não é inteligência genética ou qualquer papo de superioridade racial, foram as condições nas quais esses povos foram criados. Ensinados a tratar o mundo como uma luta constante pela sobrevivência, onde a evolução constante da cultura e da tecnologia não eram só desejáveis como essenciais para a sua existência.

Isso, aliado com o espaço limitado no continente, fez com que esses povos ficassem em guerra constante por milênios. Em poucos lugares do mundo houve uma combinação tão perfeita de facilidades e dificuldades para a evolução social como na Europa. Eles ficaram tão bons nisso que às vezes até esquecemos que o continente praticamente acabou duas vezes no começo do século passado em duas guerras maiores que quaisquer outras na história, e ainda estão liderando o mundo em muitos aspectos.

Se o Brasil passasse por um décimo da Primeira Guerra Mundial que a Alemanha passou, por exemplo, ainda estaria em ruínas. Quer dizer que o alemão nasce superior? Não, claro que não. Quer dizer que aquele povo é especialista em reconstruir terras arrasadas. Foi treinado para isso segurando os avanços do império romano e depois assumindo o vácuo de poder deixado pelo seu fim. Franceses e ingleses treinaram guerra entre si sem parar antes de sair para conquistar a maior parte do planeta.

A chegada do europeu nos continentes que não tiveram essa mesma história de violência e sofrimento foi equivalente a chegada de uma civilização alienígena. Nada tinha preparado o povo das Américas, da África, Ásia e Oceania para aquilo. O único povo que tinha um pouco de experiência era o do Oriente Médio, por isso sua cultura ainda é tão prevalente no resto do mundo (vulgo as maiores religiões do ocidente e avanços intelectuais como a matemática). O resultado já conhecemos: só depois da Segunda Guerra Mundial que a maioria dos países se tornou livre dos colonos europeus. E tudo em grande parte pela devastação quase que completa do continente europeu.

E não se enganem, os EUA não são tão exceção da regra assim: o país cresceu imensamente estando envolvido nas guerras europeias e aprendendo a se unir por um senso de dever coletivo relacionado aos europeus. A imensa guerra civil deles também ajudou nesse sentido. Os EUA tem uma área tão rica quanto a brasileira, mas além de terem sido tratados como colônia de desenvolvimento ao invés de pura exploração (os ingleses sempre foram melhores nisso, vide Canadá, Austrália e cia.), ficaram em sincronia com a Europa e seus acontecimentos na maior parte da sua história.

Já países como o Brasil, cuja colonização pelos portugueses foi uma das coisas mais bizarras da história, ficaram largados às moscas por séculos. Metade da nossa colonização foi feita à força com escravos africanos que também viviam numa situação parecida de estagnação social por milênios. Sem contar os índios, que simplesmente não tinham motivos para mirar numa sociedade como a dos europeus. Nessa mistura de gente que nem sequer sabia o motivo pelo qual mudar seu modo de viver, que não encarava guerras em larga escala ou passava necessidade por motivos naturais, cria-se o Brasil.

Eu sei que parece bizarro dizer que as coisas foram fáceis para o Brasil, mas nem é o ponto de descobrir quem sofreu mais, até porque é complicado bater os escravos africanos nesse ponto, é o argumento que todo esse sofrimento não aconteceu de uma forma que fomentasse a mentalidade de construção coletiva e planejamento para o futuro. Foi um sofrimento infrutífero que manteve esse povo parado no tempo. E com o passar do pouco tempo de Brasil, as coisas nunca mudaram tanto assim. O sofrimento continua sendo individual por problemas de pequena escala espalhados por todos os lugares. Ainda não há incentivo para evolução de outra forma. E talvez nunca aconteça da mesma forma que aconteceu para os europeus, a realidade geográfica e humana é muito diferente aqui.

Se vamos evoluir de alguma forma, não vai ser com as fórmulas do passado. O Brasil e tantas outras ex-colônias em situação parecida vão ter que achar seu próprio caminho. Eu ainda não sei qual é, mas com certeza não está conectado com ideias de séculos passados concebidas na Europa. Não somos eles, nunca seremos. E considerando o quanto eles penaram para chegar nesse ponto, talvez seja uma coisa boa.

Para me chamar de racista por apontar um problema na África, para me chamar de racista por dizer que os europeus dominaram o mundo, ou mesmo para me chamar de racista de qualquer jeito por dizer que obviamente não foi a cor da pele que definiu nada disso: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Multiculturalismo é um fracasso, várias pessoas de culturas e etnias diferentes juntas nunca vão entrar em acordo em nada. Nos últimos anos a maioria dos barracos causados por política aconteceram em países que vivem se gabando de serem multiculturais: Reino Unido e o Brexit, Estados Unidos e o Trump, Brasil e Bolsonaro… Por isso que se fala tanto em “crise da democracia”. Sem falar nos infinitos barracos étnicos em países africanos e sul asiáticos, onde tem várias etnias juntas que vivem se matando e explodindo.
    Dificilmente se vê essas coisas em países mais homogêneos como a Noruega ou o Japão.

  • Somir, sabe aqueles textos tão bons que depois de ler a gente fica pensando consigo mesmo: “eu queria ter escrito isto”? Pois é, esta sua postagem de hoje é um desses textos. Te dou os parabéns e ainda digo “muito obrigado”. O “parabéns” é por ter exposto, de forma clara e precisa, muita coisa que eu também penso, mas que sempre tive receio de dizer em alto e bom som em conversas porque temo ser mal interpretado e arranjar dores de cabeça desnecessárias com BMs e “ofendidos profissionais” em geral. E o “obrigado” é por me dar a certeza de que não sou o único a ter essas idéias. Bom saber que não estou sozinho…

    • Innen Wahrheit

      E eu queria comentar a mesma coisa… Só o receio de manifestar-se a respeito é que não me faz sentido. Não tenho observado os tais BMs e ofendidos profissionais com tanta moral assim hoje em dia para se opor à autocrítica sugerida por essa perspectiva – e isso pode ser algo bom se o propósito for promover uma mudança de mentalidade que nos conduza a algum avanço.

  • Posso fazer um comentário bem deprimido e que espero sinceramente estar errada? Às vezes eu fico pensando se existem países condenados a se manterem subdesenvolvidos. Caridade não parece ser um caminho tão eficiente assim, olha quantas instituições e pessoas se movimentam pra ajudar países pobres e tudo continua mais ou menos na mesma. Vão lá, ficam por um tempo dando uma arrumada, vão embora e o pouco que conseguiram arrumar é novamente desarrumado. Haiti feelings.

    E lembrando que os países desenvolvidos não estão esperando o resto do mundo se desenvolver, eles continuam se desenvolvendo enquanto outros países ficam nesse ciclo vicioso sem fim de subdesenvolvimento. Americano vai colonizar Marte antes dos países pobres sequer conseguirem levar água potável pra 100% de sua população. Crianças europeias já aprendendo programação em algumas escolas enquanto a maioria dos paquistaneses não sabem nem o que é internet. Temo as possíveis consequências desse abismo que a cada dia parece que fica maior.

    E pelo amor de Pilha, vamos parar com essa lenda de “Brasil é rico, o problema é a má distribuição”. PIB é diferente de PIB per capita, que é o que realmente mostra o quão rico o país é. Não preciso dizer que a posição do Brasil não é tão boa nesse ranking, certo?

    Fontes:
    https://www.bgr.in/news/69-percent-pakistanis-dont-know-what-internet-is-lirneasia-survey-dawn-age-15-65-pta/
    https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_GDP_(nominal)_per_capita

    • Adorei seu comentário, Hikaru. Belo complemento ao texto do Somir. Mas o que você disse também me deixou deprimido…

  • Viajei para a Finlândia muitos anos atrás. A diferença é gritante. Não é muito difícil de encontrar casas com mais de 50 anos que foram construídas e que são passadas de geração pra geração. Só reformam alguma coisa quando realmente precisa, senão nem se dão ao trabalho. Lá eles cuidam muito bem do seu próprio patrimônio sem descartar nada. Desperdiçar comida nem pensar. Creio que o histórico do país e o clima (o inverno dá -30 graus fácil, fácil) foram um dos fatores que contribuíram para a construção dessa mentalidade deles.

    Muito diferente daqui do Brasil em que muitos acreditam que ainda existe “almoço grátis”, que o governo sempre vai dar tudo e que os recursos são infinitos. Até em época de racionamento de água (ou qualquer outra coisa) você encontra gente esbanjando do mesmo jeito.

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