Rede privada.

Para a alegria de alguns e o desespero de outros, não estamos sozinhos nesse mundo, principalmente no digital. Sally e Somir detestam evasão de privacidade, mas pensam diferente quando ela vem de pessoas próximas. Os impopulares postam suas opiniões.

Tema de hoje: é justo reclamar com uma pessoa próxima que evade sua própria privacidade nas redes sociais?

SOMIR

Não, e tenho essa opinião porque eu defendo muito o meu direito de não evadir minha privacidade. Parece contraditório, mas tem um fundamento: suas posições e opiniões não valem só quando são vantajosas, na verdade, a maior prova de consistência numa ideia é aceitar as consequências negativas dela. Se eu acredito em liberdade de escolha sobre o quanto de informação uma pessoa pode colocar na internet sem ser pentelhada por isso, o que no meu caso significa não colocar essas informações e não ser tratado como se estivesse escondendo alguma coisa, mas no caso das pessoas que evadem significa aceitar que é isso o que ela quer fazer, e é o direito dela.

Está tudo relacionado com a “posse da informação” e toda responsabilidade que vem dela. Eu reclamaria muito com quem evadisse a minha privacidade, porque essas informações são minhas por direito. Em momento nenhum dei permissão para amigos, namoradas ou familiares ficarem colocando dados pessoais meus nas redes sociais. Gosto assim e serve de condição nas relações que tenho. Acho um saco ser questionado sobre os motivos disso porque já sou bem grandinho para dar satisfação para os outros sobre algo que não os afeta. Aceitou, aceitou, não aceitou eu me afasto. Direito meu, consequência minha.

Então, no sentido oposto, se algum amigo, namorada ou familiar estiver evadindo a privacidade deles na internet, não vou cobrar satisfações ou exigir explicações da mesma forma. Acho uma escolha pior do que a minha, mas é uma escolha mesmo assim. Não estamos falando de usar drogas ou qualquer outro comportamento socialmente reprovável, evadir a privacidade na internet não só é a norma como é desejável nos dias atuais. Pessoas como eu vivem com uma certa desconfiança por não ter minha ficha completa disponível para qualquer curioso, eu penaria se estivesse procurando emprego, por exemplo.

A pessoa que está lá postando tudo o que pensa e faz sem filtros o faz achando a coisa mais natural do mundo. Não dá só para ter sua opinião e esquecer o que o resto do mundo acha. Para a pessoa evadindo sua privacidade, você reclamando é uma coisa bizarra, parece que está pegando no pé dela sem motivo algum. As pessoas já reagem muito mal a críticas quando sabem que estão erradas, imagina então quando pensam que está tudo bem e tem o suporte da imensa maioria da humanidade na questão? Você vai falar com as paredes e parecer antipático à toa.

É meio que nem gritar com o cachorro depois dele ter mijado no lugar errado. A pessoa que evadiu sua privacidade nem concebe a ideia de se preservar no meio digital. Ela vai achar que você odeia ela. Tem algumas ideias nessa vida que são complexas o suficiente para que não se possa explicar. Parece uma bobagem, mas a noção de consequências de longo prazo na exposição e o risco de acreditar nessa ilusão de felicidade da internet são coisas que ou a pessoa entende sozinha, ou te acha maluco por sugerir.

Sem contar que é um daqueles casos que não adianta tentar proteger a pessoa das consequências: se você encher a paciência dela para ela se controlar na rede social, vai vazar por algum outro lugar. O ser humano tende a ter essa vontade de aparecer e receber validação do outro, eu aprendi a saciar a minha de uma outra forma (como por exemplo com o desfavor) mas a maioria das pessoas não tem paciência, tempo ou mesmo capacidade de se expressar de qualquer outra forma. Posta foto da viagem mesmo para alguém elogiar ela. A pessoa vai sossegar por alguns dias, mas vai voltar a ter o comportamento. Sem aprendizado a pessoa só reage a um condicionamento. Ela sequer vai perceber quando fizer algo parecido que não seja explicitamente o que você reclamou. Se você reclamou de uma postagem com uma foto na situação A, ela jamais vai relacionar o mesmo comportamento na situação B. “Você disse que não queria foto de balada, eu estou na praia nessa!”. E nas duas fotos, a pessoa estava mostrando notas de dinheiro para ostentar.

Eu estou presumindo muita burrice nos outros? Sim. Porque somos todos muito burros para o que não gostamos de fazer. Quem quer evadir sua privacidade não gosta de moderação na rede social, é justamente o oposto do que a faz feliz. Pode ter certeza que a capacidade cognitiva da pessoa regride imensamente nesses casos.

E tem mais: consequências geram aprendizado. Se a pessoa quer fazer besteira e se arreganhar na internet, só vai mudar quando tomar uma chamada de atenção da vida. Nenhuma reclamação é mais poderosa do que se foder de verdade por fazer uma coisa. Se eu já escrevi aqui muitas vezes que acredito na responsabilidade compartilhada de quem, por exemplo, grava um vídeo íntimo que é vazado depois, como é que vou mudar de ideia nesse caso? As pessoas tem o sagrado direito de brincarem com fogo se estiverem só se queimando. Se for uma pessoa próxima sua fazendo isso da qual você pode se afastar, é tranquilo. Pula fora se estiver ruim.

Se for alguém que está preso a você de alguma forma, azar. Tenta se proteger o máximo, porque é só o que dá pra fazer. É a vida dela, e você não tem controle sobre isso. Se não me encherem o saco pelas minhas escolhas, que façam as suas. Liberdade é uma merda, mas é a melhor merda que existe.

Para me chamar de bunda-mole, para dizer que eu não devo ter ninguém para pensar assim, ou mesmo para dizer que a minha descrença no ser humano é invejável: somir@desfavor.com

SALLY

Se uma pessoa próxima e vinculada a você evade a própria privacidade em redes sociais, é justo reclamar?

Sim, se isso de alguma forma te afeta ou te prejudica, claro que é justo reclamar. Pode ser que a pessoa sequer tenha percebido que o que ela fez te afeta ou te prejudica, sabe como é, pessoas não costumam ter bola de cristal, então, a melhor atitude é sempre conversar e expor o seu lado.

É óbvio que ninguém aqui vai meter um cano de revólver na boca da mãe e dizer “não quero mais você postando essas inconveniências no Facebook, entendido?”. Não estamos falando de obrigar ninguém a nada, em última instância, as pessoas são livres e fazem o que elas querem. Estamos falando de reclamar, de chamar para conversar e expor por qual motivo aquilo te chateou ou de alguma forma te fez mal.

Desta conversa pode surgir uma conscientização da pessoa e ela parar de fazer o que quer que esteja te chateando ou pode haver uma resistência, com a pessoa dizendo que não quer parar de fazer aquilo. Em todo caso, você vai ter a certeza de que a pessoa teve todos os subsídios necessários para tomar a sua decisão: ela já está sabendo como você se sente o que deve fazer para evitar que você se sinta desta forma.

Esse papo de “cada um faz o que quer” é lindo, mas vivemos em sociedade e muitas vezes estamos entrelaçados a algumas pessoas sem escolha. Você não pode trocar de mãe, de filhos, de pai/mãe dos seus filhos, etc. Famílias tem que aprender a conviver da melhor forma possível. Se algo está incomodando, a coisa certa a fazer é sentar e conversar, mesmo que, no final das contas, a postura da pessoa não mude. Não é sobre o resultado final ou sobre convencer alguém de algo, é sobre as pessoas saberem como você está se sentindo.

Vejo muito esse erro utilitarista: “Ah, eu falei e não adiantou nada, não valeu a pena ter falado”. Calma, criatura. As pessoas processam a informação no seu próprio tempo, não no tempo que você gostaria. Talvez aquela informação fique maturando na cabeça da pessoa e, em algumas semana ou meses você perceba uma mudança de atitude ou até uma solução meio termo para o impasse. O que não pode é permitir que outra pessoa te faça mal sem que ela sequer desconfie disso e sem mostrar sua contrariedade.

Não acho admissível que alguém te faça mal e você apenas enfie o galho dentro, não reclame e faça de conta que está tudo bem. Seria fingir uma coisa que não se é, que não se está sentindo. A pessoa quer fazer algo que te magoa ou incomoda? Pois bem, para aquela ação, haverá uma reação. Fingir que está tudo bem é ir contra você mesmo. Não precisa brigar, não precisa gritar, não precisa chorar, não precisa ameaçar, não precisa xingar, não precisa bater. Estamos falando apenas em reclamar, em mostrar descontentamento.

É aquele velho ditado: o combinado não sai caro. Deixado bem claro o que te incomoda, o problema passa a ser de todos os envolvidos, pois se são pessoas que tem interesse em continuar convivendo com você, elas vão se empenhar para tentar encontrar alguma solução, nem que seja intermediária, para não te causar mal. Não é um cabo de guerra pelo ato em si, estamos falando de algo maior: se uma pessoa que te quer bem não se incomoda em te fazer mal, bem, tem algo errado aí, hora de ligar uma luz de alerta.

Muitas vezes a pessoa que evadiu a privacidade em redes sociais sequer tem a real noção do perigo que isso significa. Talvez ela o faça mais por inconsciência do que por qualquer outro motivo. E, independente do motivo, se te afeta de alguma forma, é totalmente legítimo reclamar. Não é legítimo forçar a pessoa a nada, não é legítimo ameaçar a pessoa, mas porra, se nem reclamar a gente puder quando for prejudicado, que bosta de vida nos espera?

Não somos obrigados a aturar fingindo estar tudo bem uma escolha alheia que nos prejudica. Convivência já é difícil quando a gente alinha as coisas e faz um esforço máximo para não pisar no calo de ninguém, imagina então quão difícil ficaria se sequer percebêssemos o que chateia o outro e não pudéssemos fazer coisas para minimizar o dano…

É fundamental deixar bem claro para as pessoas com as quais você convive quais são as suas linhas que não devem ser cruzadas, quais são os seus limites, até onde elas podem ir. Se você deixa claro que certo tipo de evasão de privacidade te faz mal e, ainda assim, a pessoa o faz, me parece mais do que justo que você reclame, não da evasão em si, mas sim da pessoa ter optado por fazer conscientemente algo que te causa dano ou sofrimento. Soa, no mínimo, como falta de consideração.

Ainda que a pessoa não entenda, ainda que a pessoa discorde do seu ponto de vista ou dos seus motivos, o sofrimento é real. Porque diabos alguém vai querer infligir a uma pessoa querida um sofrimento real? Complicada essa postura de que, para respeitar o limite do outro, você precisa concordar com ele. Respeito a gente tem por não querer ver a pessoa sofrendo, por não querer causar um mal ao outro, não por concordar ou discordar dos seus motivos e argumentos. Não suporto esse tipo de pessoas “só respeito aquilo que eu concordo”, haja egocentrismo.

Se sua mãe posta o endereço da sua casa e a senha do cadeado que tranca o portão de casa no Facebook, ela está prejudicando a família toda. Todos têm o sagrado direito de reclamar. Se sua esposa posta foto dela indo buscar o filho na porta da escola, está dando a dica de onde a criança estuda e quais são os seus horários e sim, isso prejudica a família toda. Vai fazer o que? Trocar de mãe? Desfazer um filho com aquela pessoa? Só faltava essa, quem está fazendo a merda não pode ser contrariado com uma reclamação de quem está se fodendo todo!

Olha, eu sou pelo sagrado direito de reclamar, sempre que a pessoa se sentir de alguma forma prejudicada. Eu não sou obrigada a me sentir prejudicada em silêncio, para não incomodar as madames que me prejudicam. A privacidade é da pessoa, mas a evasão pode respingar feio em mim.

Para dizer que deveria existir a opção de desfazer um filho com alguém, para dizer que você é a favor de reclamar mesmo quando não tem razão ou ainda para dizer que você é o que evade a privacidade: sally@desfavor.com

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Comments (2)

  • Fico com a Sally nessa. Embora não tenha nada a esconder, tomo muito cuidado com o que faço e com o que digo em redes sociais, tanto que nem foto no meu perfil tem. Por isso, eu não gostaria nem um pouco de descobrir – possivelmente da pior maneira – que fui exposto de uma forma que não queria por alguém próximo que, evadindo sua própria privacidade, também inadvertidamente revelou algo meu que deveria permanecer particular. Como ela própria disse, muitas vezes quem se mostra muito na internet acha que não tem nada demais e nem imagina as conseqüências. Só que, a partir do momento em que a postura dessa pessoa próxima de alguma forma me afeta, temos um problema. E eu acho que é justo apontar o motivo do incômodo, conversar e, quem sabe tentar chegar num acordo.

    • Ninguém consegue prever completamente a maldade ou escrotidão humana, então, melhor se preservar e cobrar de quem te quer bem que te preserve também.

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