A gente não quer só comida.

Na Índia, um grupo religioso chamado Sikh mantém um templo grandioso como tantos outros templos grandiosos por aí, mas nesse existe algo que chama a atenção: um imenso restaurante completamente grátis, aberto ao povo de forma quase irrestrita. Desde que você aceite cobrir seus cabelos com um pedaço de pano que seja (homens e mulheres), é só entrar e comer o quanto quiser, pelo tempo que quiser. Ele fica aberto todos os dias, praticamente sem parar o dia todo, e atende milhares de pessoas. Impressionante, mas tem algo que me chamou mais atenção ainda…

A quantidade imensa de pessoas trabalhando de forma voluntária para fazer toda a estrutura rodar. Se quiser ver o vídeo primeiro, está aqui. Você nota que é quase tanta gente fazendo a comida e cuidando de toda a logística de servir e limpar quanto gente comendo. E boa parte dessa gente é idosa ou tem um jeitão de dona de casa ou desempregados. Afinal, se a cozinha roda o dia todo sem parar, ainda mais considerando o tempo que demora desde o começo do processo, pessoas com empregos normais provavelmente não poderiam se dedicar tanto assim.

Não só esse lugar está alimentando muita gente, como está também dando função e propósito para muitos que de outra forma estariam inutilizados na sociedade. Faz muito sentido que as pessoas que não tem como comprar comida e vão lá para se alimentar também sejam as que podem passar o dia nesse projeto trabalhando. Uma espécie de sistema quase que autossuficiente, tirando os custos de matéria-prima. E é isso que me faz pensar em como atitudes claramente assistencialistas como essas podem sim contribuir para a estabilidade de uma sociedade.

E aqui eu deixo de falar coisas bonitas por um tempo: sejamos realistas, não tem função de alto nível de complexidade e/ou de alto retorno financeiro para todo mundo. Primeiro porque o mercado exige um desequilíbrio de oferta e demanda para gerar relações lucrativas (se todo mundo quiser e fizer as mesmas coisas, o sistema colapsa por falta de interesse em interações entre as pessoas), e também porque por uma série de motivos, temos uma maioria de pessoas nesse planeta capaz apenas de trabalhos bem simples.

Já falei disso num texto sobre Q.I. recente, mas recoloco aqui para dar um contexto: considerando os testes que são feitos, a tendência conservadora é que pelo menos um décimo da população humana esteja abaixo dos 85 pontos. O que não faz ninguém ser ruim ou preguiçoso, mas limita consideravelmente as oportunidades de contribuição delas para a sociedade. São pessoas que aprendem muito devagar, quando aprendem. Você explica pra pessoa, demonstra, tira dúvidas… e ela não consegue acompanhar. Falta… poder de processamento, por assim dizer.

E olha que dizer um décimo é praticamente ignorar a existência de países muito pobres, onde os números sobem muito acima disso. Alguns países inclusive demonstram médias gerais abaixo desse limite mínimo. Tem muita gente nesse mundo que não consegue se adaptar completamente ao mundo moderno e toda sua complexidade baseada em tecnologia avançada e comunicação global. O que não quer dizer que não exista vontade e dedicação dessas pessoas de conseguir isso. A questão que me vem aqui é que mesmo que o dito burro esforçado consiga se tornar uma pessoa excelente e até mesmo sábia de sua própria maneira, o sistema vigente nas nossas sociedades modernas está correndo mais rápido que eles podem alcançar.

E é aí que eu começo a ver uma grande solução no assistencialismo: não só dando comida e suprimentos básicos para os mais pobres, mas “empregando” essa parcela da população nessa tarefa. Cuidado humano exige conhecimento sim, mas precisa mais ainda de mão na massa, trabalho repetitivo e constante. Seja fazendo comida, lavando pratos, trocando curativos, limpando campos de refugiados… a quantidade de trabalhos disponíveis só para cuidar dos mais necessitados desse mundo é imensa. E cá entre nós, tem muita gente extremamente acima das necessidades básicas do trabalho fazendo atualmente.

Gente que sai de um país rico para cuidar de vítimas de uma tragédia num país muito pobre tem algo de muito especial sim, mas… será que são a melhor escolha no contexto? No vídeo dos indianos, podemos ver que não temos voluntários branquinhos no meio da massa, é o povo local mesmo. A sociedade cuidando de si, aplicando para cada pessoa uma função que ela é capaz de fazer e nada mais. Longe de mim reclamar de quem vai fazer trabalho voluntário muito longe de casa, que termina uma faculdade de medicina e vai direto para uma zona de guerra tratar das vítimas, mas… quando uma pessoa com curso superior está limpando uma cama de hospital, não parece que estamos desperdiçando o potencial dela?

E pior, o fato dessa pessoa estar lá evita que alguém local esteja cumprindo a tarefa. Aliás, pior ainda: evita que alguém local perceba a capacidade de organização do ser humano como algo que possa participar. Perpetua a noção de vítima quando alguém tão diferente quanto um voluntário europeu está lá cuidando das coisas, um “alienígena” que já chegou pronto. O assistencialismo que já existe é importante para muita gente no mundo, mas… não é um modelo de negócios muito bom. A ideia aqui seria fazer com que essa gente toda que não está conseguindo encaixe no mundo moderno dar um passo para trás e ajudar a cuidar do resto das pessoas que não estão conseguindo o encaixe. Trazê-los de volta, nem que seja para uma espécie de sociedade paralela.

O ser humano sem função perde a cabeça. Não importa o quanto tentem ajuda-lo, sem um propósito, mesmo que momentâneo, é praticamente impossível extrair o melhor das pessoas. Em condições iguais de pobreza, eu garanto que a pessoa fazendo pão horas a fio naquele restaurante indiano está mais completa e saudável que outra que passa o dia à toa na rua. Ela sabe o que está fazendo, ela completa objetivos e contribui para o mundo. Não é nem questão de ser bonzinho: somos seres sociais pela evolução, tem uma recompensa interna que surge quando ajudamos os outros, quando somos importantes em qualquer tarefa, por menor que seja.

Trabalhar sem receber é escravidão? Depende. Se fosse assim, todos os filhos seriam presos pelo Ministério do Trabalho assim que fizessem 18 anos de idade. Dinheiro é importante, mas propósito é o que segura a humanidade no lugar. Temos essa propensão natural de trocar energia por valor, seja ele em bens materiais ou satisfação psicológica. O mercado atual não consegue colocar salários para quem não se adequa aos requisitos mínimos para as profissões mais comuns? Deveria, mas vamos ser realistas: se não tem dinheiro, paga em outra coisa. Comida, água, teto e propósito.

Apesar de tudo, ainda produzimos comida suficiente para desperdiçar quase um terço. Pessoas ainda doam bilhões e bilhões para ajudar os mais necessitados. Fundações e ONGs de todos os tipos organizam ações humanitárias em parceria com governos pelo mundo todo. Existe uma estrutura suficiente para começar a agir de uma forma diferente e empregar essa massa de abandonados pelo sistema na própria salvação. O que falta hoje em dia é a mentalidade: entender que um propósito, por mais besta que pareça, é algo que deveria estar na base da pirâmide de necessidades básicas do ser humano. Você tem que saber por que está fazendo as coisas que faz. E não importa se é um plano para a vida toda ou para a próxima semana, o esforço morre sufocado num vácuo de objetivos.

Nesse ponto eu tenho que dar o braço a torcer e dizer que a religião saiu na frente: entenderam isso desde o começo. Cidadão passa fome feliz se achar que está seguindo um propósito maior. O ser humano não “quebrou” a evolução por acaso: a lógica das necessidades básicas não se aplica a nós da mesma forma que outros animais. Não é à toa que o templo Sikh conseguiu fazer bom uso da sua massa de “inúteis”. Ao gerar uma bolha de propósito naquele restaurante, faz com que todos que entrem lá tenham vontade não só de se esforçar, como também não assumir riscos estúpidos ou tentar fugir da realidade com vícios. Se você sente que alguém precisa de você, tende a ser mais responsável instintivamente. Ou vocês achavam que, por exemplo, mulheres morrem muito menos que homens por serem covardes? Quando a pessoa tem esse senso de importância humana, muda a forma de pensar e agir.

E se ao invés de ficar enfiando dinheiro em pequenos grupos de voluntários para cuidar de muitas vítimas de problemas naturais e sociais, mudássemos a mentalidade “capitalista” de prestação de serviço para autorregulação por propósito? É fazer refugiado trabalhar na construção de abrigos mais caprichados para os próximos refugiados, é mobilizar comunidades carentes para montar restaurantes grátis, é montar centros de reabilitação de vítimas da guerra com as vítimas da guerra. Gente local, que mora perto e tem comida e água providenciadas pelo projeto, de preferência sem sequer a ilusão de estar recebendo algo em troca.

Se tivesse emprego para todo mundo, eu até pensaria diferente, mas está mais do que na hora de admitir que não tem. Que sempre vai ter uma enorme massa de seres humanos inutilizados na sociedade, que exigem esforço do resto para serem mantidos sob um mínimo de controle, não só porque falta comida, mas porque falta algum motivo para eles saírem da cama pela manhã. Propósito está na base da pirâmide, quanto mais cedo aceitarmos isso, mais rápido fazemos as mudanças necessárias.

Para dizer que só achou legal a panela grande, para dizer que é fácil dizer isso quando não se passa fome, ou mesmo para dizer que quem se sentiria ofendido por esse texto jamais o leria: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Parece o avesso do que ocorre no Haiti, principalmente depois do último mega terremoto, foi tanta ajuda pra lá, tanta ONG, tanto assistencialismo externo, que o lugar estagnou….. não melhorou…. não conseguiu constituir um governo…. não achou um rumo, nada….
    Deve ser isso, falta de delegar aos próprios habitantes um propósito, colocar nas mãos deles essa bandeira.
    BTW….85 pontos? Atualmente eu devo estar abaixo da “linha da burrice”, como está difícil ,pra não dizer impossível, acompanhar tantas mudanças no mundo em geral.

  • O trabalho braçal ainda vai ser necessário por muito tempo. Nenhum intelectual divagador de faculdade constrói um prédio e acho que superestimamos demais nosso poder tecnológico. Sem querer desmerecer nenhuma carreira, é claro, mas como já foi dito, é inviável uma sociedade onde todo mundo tem cargos de alto nível. E tem gente que nem faz questão.

    sobre religião: as pessoas sempre vão precisar de uma, sejam as religiões tradicionais (cristianismo, islã, budismo etc.) ou as novas religiões: ideologias, celebridades, times de futebol… O ser humano precisa acreditar em algo. Aliás, o livro Sapiens faz uma excelente comparação entre religião e ideologia.

  • Conheço um lugar no interior de SP (ligado a igreja católica) que funciona assim na tentativa de recuperação de usuários de drogas, álcool e pessoas sem família. São aproximadamente 600 homens que moram em um sítio e todos trabalham nas mais diversas funções para a manutenção da comunidade: cuidado com a manutenção, auxílios diversos aos mais necessitados, fazem a própria comida e tem até uma panificadora que produz 1200 pães/dia o ano todo… Todo o alimento é doado por particulares (em volumes incríveis).
    e… adivinha??? O Ministério Público está de olho por entender que se trata de trabalho escravo…

    • Algumas dessas chamadas ´comunidades terapêuticas´ estão na mira do MP sim mas não por conta do trabalho (ele é considerado parte da terapia/recuperação) mas por conta da destinação verbas públicas (principalmente emendas parlamentares), que viraram uma troca de favores e cujo dinheiro nem sempre é destinado ao fim proposto. Há lugares sérios mas há outros que são lavagem de dinheiro pura além da conhecida compra de votos.

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