Natureza desumana.

Hoje o STF continua o julgamento sobre a criminalização da homofobia no Brasil, baseado em dados sobre o número de crimes cometidos por essa razão. Um pouco antes no ano, a mídia falou em peso sobre o alto número de feminicídios e sobre como as mulheres precisavam de mais proteção. Quem acompanha o desfavor conhece algumas das reservas que temos sobre os casos específicos, mas eu resolvi ir um pouco mais na base disso tudo no texto de hoje…

Você nem precisa procurar muito para achar dados sobre coisas horríveis que pessoas fazem com outras pessoas. A mídia se encarrega de trazer o mundo cão até nossas casas, e que jogue a primeira pedra quem não clica na maioria dessas notícias terríveis. Acredito que não existam dúvidas mais que o ser humano pode ser de uma crueldade inacreditável contra outros seres humanos dadas as condições ideais. É fácil ver todas essas notícias, olhar para o redor e se sentir num mundo horrível, que precisa ser consertado imediatamente.

E uma das poucas ferramentas que temos para agir na sociedade de forma rápida é a criação de novas leis. Em tese, ao mudar o acordo social, todos são obrigados a obedecer um novo conjunto de regras. Na prática, as leis alcançam as pessoas que se importam com as leis e os que tem mais a perder com a punição legal do que com o ato contrário a elas. A verdade é que leis são palavras num pedaço de papel, e são tão reais quanto nossa compreensão delas e desejo de agir de acordo. A realidade continua inalterada.

Um exemplo poderoso disso é a pedofilia: abusar sexualmente de uma criança é um dos maiores consensos da humanidade sobre o topo da lista de piores coisas que uma pessoa pode fazer. Basicamente todos os países do mundo tem leis severas sobre o tema, basicamente todos os grupos sociais modernos vão expulsar do seu convívio quem for pego cometendo esse ato. E mesmo assim, pessoas continuam fazendo isso ao redor do mundo dia sim, dia também.

É extremamente improvável que aqueles que cometem esse crime não saibam que tem toda a sociedade contra eles. E quando tive oportunidade de conversar com gente que ganha a vida investigando e combatendo esse crime, descobri que é basicamente enxugar gelo: pega um, surge outro. A pessoa que combate ou desiste do trabalho, ou aposenta cedo com algo quebrado dentro da alma. O problema passa de geração em geração sem solução aparente.

Quando falamos de violência contra a mulher, é exatamente a mesma coisa: cidadão sabe que é crime, cidadão sabe que vai ser odiado por quase todo mundo, mas faz do mesmo jeito. Fazem em países com sistemas penitenciários que realmente tentam ressocializar, e fazem em países com pena de morte. Fazem dentro de casa ou na luz do dia com testemunhas. É como se não importasse quais regras criarmos, não muda quem são essas pessoas.

E embora nos dias atuais a opinião média de uma pessoa com pouca educação (como o brasileiro médio) seja ambivalente sobre violência contra homossexuais e transsexuais, não estamos muito longe de um consenso sobre o absurdo de violentar uma pessoa por sua opção sexual. Com certeza já foi bem pior do que é. Estender a lei para declarar especificamente um tipo de preconceito é apelar para o bom senso de gente que não tinha esse bom senso para começo de conversa. Vamos concordar que quem não cometia crimes de ódio contra homossexuais e transsexuais já entendia a lógica da coisa. E quem cometia não tem em si o que é necessário para mudar suas atitudes por causa de uma lei. Agredir e matar já são crimes, e nessa altura do campeonato para a humanidade, a ideia está bem estabelecida nessa área.

Temos que começar a considerar algo mais grave e complicado do que as leis que escrevemos: o fato de que tanta gente simplesmente não se importa com elas. Que existem motivações mais poderosas no ser humano do que obedecer um acordo social. Alguns estudos sugerem um número de sociopatas (pessoas que não se importam com as regras da sociedade) e psicopatas (pessoas incapazes de empatia) enorme entre nós. Algo do tipo não conseguir juntar dez pessoas sem encontrar um deles. E quanto mais experiência de vida eu vou acumulando, mais eu começo a acreditar nesses dados.

Mesmo acreditando que a maioria das pessoas é capaz de viver em sociedade e ter boas relações, ainda sim existe uma quantidade enorme daqueles que simplesmente não se encaixam na mentalidade de grupo. E não estamos falando só de sociopatas e psicopatas, vários problemas psicológicos podem impactar as pessoas ao ponto de torna-las inaptas a conviver com a maioria. Não estou dizendo que todo psicopata, sociopata, esquizofrênico, borderline, asperger ou seja lá o que for não consegue fazer parte da sociedade, na verdade, a tendência é que a maioria esteja aí sofrendo mais com o próprio problema do que fazendo mal para os outros. Mesmo os psicopatas: não é a maioria que mata, eles costumam se dar muito melhor como líderes de grandes empresas. Estou usando esses exemplos não como os de pessoas que devem ser extirpadas da sociedade, mas como das inúmeras formas como o ser humano simplesmente pode ser forçado para fora do acordo social por uma questão que lei nenhuma resolve.

Eu sou psicólogo ou psiquiatra? Não. Minha opinião sobre o tema não é de especialista. O que eu estou fazendo aqui é simplesmente apontar uma tendência geral na sociedade, mesmo sem entender a fundo os problemas de cada pessoa, posso notar uma propriedade emergente da humanidade, que é a de gerar pessoas com imensa dificuldade de seguir regras sociais, independentemente do sistema político, moral ou religioso de uma sociedade. Pessoas são muito mais complexas que o grupo que resolvemos coloca-las. Até mesmo as ditas doenças mentais existem em espectros: nem todo mundo sofre no mesmo grau. Talvez seja até pior para quem não tem sintomas muito severos, porque fica o tempo todo percebendo quão perto está de simplesmente fazer parte e não conseguindo se estabelecer por lá.

Sinto muito se você não conseguiu notar a conclusão desse argumento até aqui e está esperançoso por uma ideia de resolução, porque ela não vai vir: pessoas são muito diferentes umas das outras, e muitas dessas diferenças são decididas por processos virtualmente aleatórios causados por um misto de genética e pressões sociais durante sua criação. MUITA gente nasce e cresce sem condições de seguir consistentemente as leis que tentamos estabelecer no mundo. E com o avanço da tecnologia humana, basicamente acabamos com qualquer seleção natural: não existe pressão seletiva que elimine elementos indesejados para o grupo. E pior, o grupo é tão grande que não dá mais pra saber o que é indesejado…

Numa aldeia pré-histórica, o antissocial era indesejado porque não encaixava no modelo de sobrevivência que eles precisavam. Numa cidade moderna, ele é excelente para escrever os códigos que fazem a sociedade funcionar. Pessoas com problemas psicológicos sérios morriam antes de se reproduzir, agora temos um jeito de cuidar delas e tirar benefícios para o mundo. Não estou dizendo que peitar a seleção natural é ruim de vez, provavelmente é o que permitiu a criação de gênios que mudaram nossa história para melhor, mas por entre as frestas dessa mudança de comportamento, continuam passando pessoas que não vão respeitar leis, que não vão agir da forma que consideramos ética ou moral, que vão ficar enfurecidas brigando nas redes sociais e nas ruas por qualquer ideologia de aluguel… e que vão fazer atrocidades terríveis com outros seres humanos.

Talvez acreditar que o problema é a falta de regras ajude muitos de nós a dormir de noite, mas se você pensar melhor nisso, vai perceber que o buraco é muito mais embaixo: regras só existem na cabeça de quem se importa com elas. Não são uma realidade concreta. São sete bilhões de pessoas no mundo e contando… não dá para vigiar e controlar todas.

Não com a tecnologia atual… sexta-feira continuamos com o Transumanismo.

Para dizer que eu sou o pessimista mais otimista que conhece, para dizer que o problema é ficar prestando atenção no problema, ou mesmo para dizer que tudo sempre esteve perdido: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • As pessoas tendem a pensar que a prosperidade do ocidente é infinita. Todas as maiores civilizações que este mundo já viu um dia caíram, por que seria diferente com o ocidente?

  • Então acho que sou uma humana com defeito, porque tragédias e clickbaits no geral não me atraem. Ultimamente tenho optado por ficar alienada sobre notícias pra não enlouquecer, e a internet tem ficado meio chata mesmo. Até em site de receita aparece um pseudopolitizado enchendo o saco.

    Sobre as pessoas, é dito que a criminalidade é mais baixa em lugares com maior coesão social, mas pra se ter coesão social teria que haver homogeneidade cultural e até étnica. Mas isso entra no terreno incômodo da diversidade, politicamente correto, racismo, xenofobia e afins. Não sou muito entendida no assunto, fica o input pra quem quiser pesquisar e se aprofundar.

    • Se depender disso o Brasil vai ser eternamente a pardolândia sem identidade nem espírito de nação comum, sempre será várias tribos competindo. Não existe nacionalismo por aqui e Bolsonaro é puta de ianque e judeu.

    • Innen Wahrheit

      No contexto desse “terreno incômodo”, vejo diversidade (tendência atual) e convergência (necessidade atual) como conceitos opostos, mas acho curioso ver também que quem defende o primeiro como causa vislumbra o segundo como efeito…

      (Entendeu? Nem eu…)

    • Tem gente que acha que dá para forçar a barra até o mundo aceitar uma cultura global. Por incrível que pareça, o Brasil é o melhor laboratório de diversidade que existe no mundo atualmente. Se isso aqui der certo, pode ser que funcione, mas até o momento…

  • Mal posso esperar quando essas desgraças de ditaduras, como Coréia do Norte e Cuba, colapsarem e possamos ver o que realmente se passa por lá. Acho que o maior medo dos ditadores não é só perder o poder, mas sim o resto do mundo descobrir que suas ditaduras, na prática, podem não ser tudo aquilo que a gente aqui fora pensa. Todo governo quer passar uma imagem de que é bem sucedido, seja em levar saúde e educação, seja em controlar pessoas.
    Quem se fode mesmo é a classe média, que é o único grupo que realmente vive um mundo de leis. Rico suborna pra se livrar das punições, pobre mora em favelas onde o governo já desistiu de entrar ou em cidades interioranas esquecidas.

  • “[…]quem não cometia crimes de ódio contra homossexuais e transsexuais já entendia a lógica da coisa. E quem cometia não tem em si o que é necessário para mudar suas atitudes por causa de uma lei.”

    Quando nossos queridos legisladores – e boa parte da opinião pública – enfiarem isso nas suas cabecinhas, não apenas para o assunto da violência contra homossexuais, mas também para todo o resto, finalmente deixaremos de ser o país que cria lei para tudo e não resolve nada.

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