O grande culpado.

No final das contas, a humanidade toda parece convergir para uma mesma ideia: que existe algum culpado pelos seus problemas. Sejam eles econômicos, sociais, morais… tudo o que parece errado com o mundo acaba personificado. Dependendo da escala do problema, pode ser apenas uma pessoa ou um grupo inteiro de seres humanos. Mas que alguém está causando tudo de ruim na sua vida, isso é basicamente certeza.

Se este fosse um texto de auto-ajuda, eu imediatamente seguiria com “e esse alguém é você”. Não podemos negar que esse é um caminho viável para lidar com essa ideia, mas por si só não explica muita coisa. Muito embora sejamos responsáveis por muito do que acontece em nossas vidas e mudanças internas gerem grandes resultados na qualidade de vida, há um limite para o quanto se consegue fazer sozinho. O primeiro passo de qualquer mudança começa com você, mas mudanças significativas exigem muito mais do que primeiros passos.

Se este fosse um texto de qualquer um dos grupos extremistas que dominam a narrativa global atualmente, eu poderia seguir com “e esse alguém é o homem branco, judeu, negro, mulher, gay, bilionário, muçulmano…”. O que não faltam culpados pela coletividade dos problemas da humanidade a cada momento. E na verdade, grupos de pessoas parecidas realmente tendem a seguir comportamentos próximos, multiplicando seu impacto no mundo. Mas já deveríamos ter passado dessa fase de culpar “judeus” (entre aspas porque muda de tempos em tempos, hoje em dia homens brancos meio que herdaram o título) por tudo, não é muito realista que retirar um grupo específico de pessoas do mundo e esperar que os problemas desapareçam. A humanidade é bem mais complexa do que isso, dinâmicas de poder existem independentemente de raça, sexo ou religião, quando um grupo sai do poder, outro costuma assumir o espaço.

Mas este é um texto de alguém tentando despersonificar o problema, por assim dizer. O que isso quer dizer? E se só pelo argumento, pensássemos por um tempo que os problemas que vivemos não são culpa de uma pessoa ou grupo específico, mas uma propriedade básica da realidade? No mundo das partículas fundamentais, existem forças guiando as interações entre elas. Eletromagnetismo, força nuclear, ligações químicas… tecnicamente, nenhum átomo tem vontade própria, por exemplo. Ele funciona como funciona porque as leis da física determinam o que pode ou não acontecer. Um átomo de urânio não pode mudar as leis da física para si ou para outros átomos, e mesmo que por mágica todos os átomos de urânio desaparecessem, as leis da física continuariam valendo para os outros do mesmo jeito. A existência de um específico não muda as leis que regem o todo.

E se aplicássemos isso para seres humanos? Não no sentido que podemos entender claramente o porquê de as pessoas agirem de uma forma ou de outra, isso é tão complexo que as ciências sociais estão se debatendo há séculos para chegar numa conclusão. Mas no sentido de que mesmo sem saber claramente quais são as “leis da física do comportamento”, aceitar que elas existem, afinal, é mais possível que existam do que não existam. Eu poderia até forçar uma redução determinística para dizer que todo o comportamento humano é baseado nas mesmas regras que regem a física e a química, afinal, somos feitos de matéria; mas seria basicamente desistir de tentar entender o mundo humano. O grau de complexidade necessário para explicar os problemas humanos pelas interações subatômicas passa muito do limite do que podemos fazer atualmente.

Talvez no futuro torne-se trivial mudar o comportamento de alguém pela manipulação da matéria cerebral, mas estamos pensando no agora. E o agora está bem longe desse ponto. Portanto, faz mais sentido nos concentrarmos no que nos faz procurar culpados pelos problemas da humanidade e ter tantas opiniões diferentes. Será que não faz parte do que é ser humano ter esses problemas? E se desigualdade, injustiça, violência e egoísmo forem apenas o resultado de um problema básico de coordenação entre seres humanos?

Os nossos cérebros são máquinas formidáveis, não tenho dúvidas sobre isso. Mas por mais que estejam num grau de refinamento muito maior que o de outras espécies, não quer dizer que sejam perfeitos. Muito longe disso. Alguns estudos já sugeriram que o ser humano médio tem uma capacidade reduzida de interações com outras pessoas. Raramente passando de algumas dezenas delas. Imagine se você realmente tivesse que saber sobre a vida e disponibilizar atenção para cada um dos seus milhares de amigos de redes sociais? Não é factível, ninguém tem tempo para tocar a própria vida e ter relações valiosas com tanta gente ao mesmo tempo. O cérebro consegue manter um certo número de pessoas “vivas” dentro de si a cada momento, passe disso e o melhor que você consegue é ter uma memória vaga sobre algumas delas.

Começa a acontecer uma limitação numérica mesmo. A mente humana é capaz de se coordenar com um número bem limitado de pessoas, é complicado resolver um congestionamento na rua, imagine só resolver os problemas sociais da humanidade? 7 bilhões passa demais do nosso limite. Mas mesmo assim, ainda queremos personificar o problema: a teimosia de aplicar para uma escala macro uma forma de pensamento micro vai gerando cada vez mais divisão entre as pessoas. Você começa a enxergar escolhas e decisões conscientes onde elas simplesmente não podem existir. Pensamento conspiratório do mais inocente: milhares ou milhões de pessoas simplesmente são incapazes de se coordenar. No máximo conseguem seguir regras parecidas em escalas diferentes de intensidade.

O que meio que define a vida em sociedade: seguir regras parecidas em escalas diferentes de intensidade. Um país é o ápice da capacidade humana de coordenação, e como podemos ver bem, nenhum deles consegue ser perfeitamente homogêneo. Aceitamos o caos de opiniões dissidentes e desequilíbrios em nome de uma sensação mínima de segurança. O melhor que conseguimos foi aceitar a falta de coordenação e viver em função disso. Se as pessoas não conseguem se organizar melhor do que isso, como é possível que exista um grande culpado pelos nossos problemas? Quem está conseguindo ir contra toda a natureza humana e gerar esse grau de escolhas conscientes em grupo para causar sofrimento alheio?

Se a resposta da auto-ajuda te interessa: você pode agir diferente. Se a resposta do extremismo te interessa: insira grupo mais odiado aqui. Mas, se você, como eu, se interessa mais pela resposta que realmente pode resolver os problemas, amanhã eu falo sobre deixarmos de ser humanos.

Para dizer que não acredita que vai ter continuação até nesses textos, para dizer que a culpa não é sua, ou mesmo para dizer que está feliz e não se preocupa com isso: somir@desfavor.com

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Comments (1)

  • “Talvez no futuro torne-se trivial mudar o comportamento de alguém pela manipulação da matéria cerebral”
    Isso me lembra daquela notícia dos cientistas chineses que (supostamente) clonaram uns macacos após editarem seus genes para induzir problemas mentais. Assustador, e nem sou da turma do chapéu de alumínio.

    “amanhã eu falo sobre deixarmos de ser humanos.”
    Opa, transhumanismo? Vocês ainda não tinham escrito sobre isso. É o futuro inevitável.

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