Pessoas: o que elas sabem? Elas sabem coisas? Vamos descobrir!

Recentemente vi um documentário da Nat Geo sobre terraplanistas, vulgo as pessoas que acreditam que a Terra é plana. Nada de novo no fronte: teorias insanas sem fundamentação e uma desconfiança patológica de todas as fontes de informação disponíveis. Mas, aquilo tudo me fez considerar algo muito mais essencial sobre a natureza da sociedade humana: as pessoas parecem não saber muita coisa sobre o mundo. E curiosamente, isso explica muita coisa…

No documentário, a equipe vai até uma convenção de terraplanistas para conhecer melhor os proponentes da ideia. Todos parecem munidos de inúmeras evidências baseadas em pesquisas pessoais e de outros defensores da teoria, e ainda mais desconfiança sobre os dados disponíveis sobre a “redondeza” do planeta. Para eles, estão todos mentindo. Como o grau de conhecimento científico dessas pessoas parece baixo, a entrevistadora segue a mesma linha que eu provavelmente seguiria: cedendo o ponto que a Terra é plana apenas pelo argumento, qual seria a razão de esconderem esse fato da população? Aparentemente não muda o funcionamento do mundo, muito menos as estruturas de poder.

E é aí que a verdadeira fundamentação dos terraplanistas vem à tona: religião. O conceito de Terra plana, segundo eles, é evidência de criação divina, trazendo o planeta para o centro do universo e tratando todo o cenário celeste como mera decoração para os filhos de Deus. Isso explica o motivo pelo qual acreditam que a informação é escondida das pessoas, como se estivessem sendo perseguidos por ateus malignos. Ainda é insanidade, mas é uma com a qual já convivemos há milênios. Se você quer saber mais sobre os terraplanistas, tem um texto da Sally só sobre esse assunto aqui, porque agora eu tenho que deixa-los de lado para continuar o ponto deste texto.

A implicação da verdadeira motivação dos terraplanistas torna a ideia ainda mais assustadora: só não são mais famosos por um erro grave de comunicação. Quando se posicionam como alternativa à ciência, eles não conseguem alcançar a maioria das pessoas, afinal, a maioria das pessoas não tem paciência nem para a ciência “principal”, quanto mais para suas alternativas. Se estivessem se vendendo como religião, teriam muito mais suporte. E digo mais, se outros movimentos anticientíficos como os contrários à vacinação percebessem isso, teríamos problemas sérios. É só achar uma passagem na Bíblia sugerindo que vacinas são perigosas e uma enxurrada de gente entraria no barco.

Parece que o conhecimento moderno sobre a realidade é algo sólido, mas a verdade é que é tão frágil ao ponto de quebrar diante dos caprichos de qualquer cidadão médio. Milhares de estudiosos durante a história humana construíram tijolo por tijolo a ideia de um planeta redondo até finalmente virar uma certeza, mas essa noção pode ser confrontada por qualquer um, a qualquer momento. Não há como forçar uma pessoa a compartilhar do conhecimento humano acumulado se ela não quiser. A realidade é realmente relativa, cada um percebe como quiser.

E isso vai bem mais fundo do que acesso à informação: novamente usando o exemplo dos terraplanistas, o movimento só voltou a tomar força com o advento da internet. O ser humano com mais capacidade de trocar ideias e uma disponibilidade de informação sem paralelos em qualquer era anterior pode muito bem fazer a escolha de usar isso para aprender mais sobre a NASA falsificando fotos e vídeos do espaço! Para quem não foi estimulado a buscar seu conhecimento de fontes seguras e pensar de forma crítica, qualquer teoria dá no mesmo.

E nem mesmo mais estudo resolve esse problema de vez: existem médicos que passaram décadas estudando para praticar homeopatia! A pessoa teve ao seu dispor muitas das melhores ferramentas de aprendizado que a humanidade já concebeu e decidiu seguir por um caminho bizarro do mesmíssimo jeito. Colocar todo mundo na escola ajuda em vários índices de qualidade de vida, mas não garante nenhuma proteção contra esse tipo de ignorância. Mesmo nos países mais evoluídos do mundo na atualidade, ainda temos uma boa parcela de pessoas que saem do sistema educacional sem a menor noção do que aconteceu ali. No Brasil os números são mais alarmantes, mas nem de longe temos o monopólio da ignorância.

A conclusão que eu passei anos ignorando por não achar agradável é que a maioria das pessoas não são simplesmente burras, elas não se importam com o mesmo padrão de conhecimento que eu e muitos dos nossos leitores se importam. Não é extremamente relevante para o cidadão médio estar vacinado contra a ideia da Terra plana. E, vamos ser honestos: não muda nada na vida do cidadão médio mesmo. Se não existe o interesse de conectar as informações que se acumula para montar uma visão de mundo própria, boa parte do conhecimento científico moderno é de pouca ou nenhuma utilidade para quem vive uma vida… normal. Ele só está lá.

Quase todo mundo que você vai conhecer sabe pouquíssimo sobre qualquer coisa que não impacte sua vida imediatamente. Muita gente sequer entende o que está lendo, quando consegue ler. Não tem uma base mínima para conectar informações, é pega de surpresa com facilidade porque não consegue prever muita coisa no futuro, não aprende com erros e quase sempre tem uma certeza terrível sobre o pouco que tem na cabeça. Algumas dessas pessoas mandam em você. Esse tipo de burrice limita, mas não o suficiente para essas pessoas continuarem suas vidas e fazerem parte da sociedade.

Mesmo conversando com pessoas mais estudadas, que passam longe de demonstrarem estupidez, eu percebo uma grande distância entre o que eu valorizo como conhecimento do que boa parte das pessoas. A tentação de me achar um gênio por isso é grande, mas como eu aprendi a duras penas na vida, a resposta nunca é “porque eu sou um gênio e as outras pessoas são estúpidas”. Adoraria que fosse, mas nunca é. A verdade é que fora o estritamente necessário para saciar os nossos desejos mais primais, todo o resto do conhecimento é de nicho. Ou seja: só é realmente valorizado por quem já tem uma propensão a gostar disso.

Desde a física quântica até mesmo o formato do planeta, não existe nada nos forçando a ter interesse nisso. Não é inerentemente interessante ou mesmo útil para o ser humano. Precisa de contexto, precisa poder ser aplicado e precisa chegar numa área da mente muito pouco conhecida, a que gera empolgação por algum tema muito específico. Pode-se argumentar que no quadro geral alguém muito interessado na cura do câncer é mais valioso que alguém que conhece todas as escalações do Corinthians nos últimos 30 anos, mas não que sejam manifestações de coisas diferentes.

Por isso, não tem nada protegendo o cidadão médio de achar que a Terra é plana, que vacinas causam autismo ou mesmo que água destilada é remédio para todas as doenças. Porque não há diferença entre essas crenças e as baseadas no conhecimento científico sério moderno quando entram dentro da cabeça de uma pessoa qualquer. A empolgação pelo conhecimento é a mesma, o contexto da informação que é diferente.

E quando eu disse que tinha até medo de chegar nessa conclusão, é porque isso basicamente anula a esperança que com esforço suficiente, todas as pessoas podem chegar num mesmo nível de conhecimento. O conceito de certo e errado parece inescapavelmente pessoal, e muito embora existam sim consequências para as pessoas que vão na contramão do conhecimento científico estabelecido (acreditar que vacina faz mal não impede seu filho de morrer de doenças preveníveis), tem tanta gente nesse mundo, e estamos ficando tão melhores em mantê-las vivas independentemente de quão responsáveis sejam que a tendência é que o próprio conceito de realidade científica vá se esvaindo com o tempo.

O médico não vai deixar de salvar quem deixou de tomar o remédio certo, o engenheiro vai usar os conceitos da física para fazer a casa de quem acha que a Terra é plana… essas pessoas continuam sendo viáveis no mundo, independentemente da loucura que acreditem. Afinal, somos tão bons nisso que as religiões estão aí desde que o mundo é mundo. Pouca gente se importa com o mesmo tipo de conhecimento que a gente, e não existe solução para isso. E se há uma conclusão aqui, é a de que o mundo nunca dependeu de consenso para seguir em frente, e provavelmente nunca vai precisar. É complicado demais esperar por tanta gente, então o melhor que fazemos é aprender o que mais nos interessar, tentar se manter na busca da realidade e tirar as vantagens que pudermos disso.

Em terra de cego…

Para dizer que sempre fica mais desanimado depois de um texto meu, para dizer que não entendeu nada e quer que se foda, ou mesmo para dizer que eu obviamente estou sendo pago para escrever isso: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Achei o texto ótimo, mas não vamos nos distrair da realidade insofismável de que as pessoas em geral são BURRAS PRA CARALHO.

  • Talvez o grande ideal da teoria da terra plana fosse acreditar na possibilidade de sair do planeta pulando pela borda,e, o desejo profundo de que isso fosse fosse possível acabou descartando as evidências científicas.

    • Primeiro: Miss Jackson, papo sério, eu nunca quis fazer a sua filha chorar.

      Segundo: Pode ter um fundo de verdade nesse desejo suicida dos terraplanistas, considerando que um deles construiu um foguete na garagem de casa e queria subir nele para provar que a terra era plana.

      • Ele foi e fez essa proeza, se lançou mas o foguete não foi muito longe. Se o experimento tivesse dado mais errado, o cara teria sido mais um na série mil maneiras de morrer. Infelizes com o maluco do foguete que, quase morreu e não conseguiu comprovar sua teoria, os terraplanistas planejam fazer um cruzeiro pra achar a borda da terra.

  • Olha.. taí um texto com assunto assertivo pra porra.
    Assisti um documentário em que os alunos das escolas e universidades do CANADÁ realizarmos um manifesto, que foi acatado pelos responsáveis pela educação no país, em que conseguiram incluir na grade de estudos (ou currículo escolar) a matéria do “criacionismo”, pois, segundo os alunos, eles não tinham que engolir a estória do evolucionismo, queriam ter acesso no que, de fato, acreditavam….quase caí das pernas….
    Os professores, orientadores, coordenadores, pedagogos e afins, estavam em choque com tamanho retrocesso.
    Heidi as pessoas como elas são, e no que crêem….:(

    • Uma das realizações mais tristes de quem está de saco cheio do Brasil é que o ser humano varia muito pouco em média.

  • “A conclusão que eu passei anos ignorando por não achar agradável é que a maioria das pessoas não são simplesmente burras, elas não se importam com o mesmo padrão de conhecimento que eu e muitos dos nossos leitores se importam”

    Gostei dessa frase, é algo que reflito já algum tempo: as pessoas até tem “neurônios”, são capazes de raciocinar, mas não querem. Simplesmente fazem vistas grossas ao conhecimento, à realidade, seja ao que for, tudo tendo em vista apenas a sua própria visão de mundo, sua própria verdade. Triste isso. Parece que, para alguns, conhecer outra visão das coisas dói demais.

    • É verdade. Estava eu tentando explicar o que eu faço pra minha mãe mas ela disse que não queria ouvir.
      Ela fica com muito medo pelo negocio ser “arriscado” mas tem preguiça de aprender.

      • Agora fiquei curioso, você é um espião internacional? Se sim, não deveria contar para sua mãe mesmo. Se não, o que você faz?

    • Se você tenta seguir um padrão de reconhecimento da realidade baseado em método científico, “bom senso” e a relação entre as coisas, está num caminho bem complicado. Suas certezas são demolidas constantemente e você vai vendo o TAMANHO do que falta para aprender. Não dá pra culpar demais quem quer fugir disso. Para alguns de nós, compensa, mas eu ainda não sei o que desencadeia isso… talvez se descobrirmos, ajude outras pessoas também.

  • Patrocínio: George Soros

    Tem gente que parece mesmo que só existe no mundo pra consumir, cagar e procriar.
    Mas contanto que sempre exista uma cota mínima de pessoas interessadas em conhecimento pra empurrar o mundo pra frente, a humanidade ficará bem.

    • O mundo que temos hoje avança por causa de uma minoria, mas é mantido viável pela maioria. Consumir, cagar e procriar gira a economia…

  • “Quase todo mundo que você vai conhecer sabe pouquíssimo sobre qualquer coisa que não impacte sua vida imediatamente. Muita gente sequer entende o que está lendo, quando consegue ler. Não tem uma base mínima para conectar informações, é pega de surpresa com facilidade porque não consegue prever muita coisa no futuro, não aprende com erros e quase sempre tem uma certeza terrível sobre o pouco que tem na cabeça. Algumas dessas pessoas mandam em você. Esse tipo de burrice limita, mas não o suficiente para essas pessoas continuarem suas vidas e fazerem parte da sociedade.” eu tenho muito medo de me tornar essa pessoa. me esforço bastante para nunca passar por isso.

    • eu tenho muito medo de me tornar essa pessoa

      O que normalmente já impede que você seja. A parte de “ter certeza terrível sobre tudo” é essencial para uma pessoa dessas consiga se manter nesse mundo.

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