Profissão paciência.

Toda profissão tem potencial de encheção de saco. Mas algumas se destacam. Sally e Somir concordam que trabalhar com criança deve ser o grau mais alto de teste de paciência, mas não com qual especialista sofre mais. Os impopulares fazem manha.

Tema de hoje: qual a profissão que demanda mais paciência?

SOMIR

Professor de criança/pré-adolescente. Basicamente toda profissão que te exige contato constante com seres humanos em formação é um grande desafio, especialmente num país onde elas são tão malcriadas. Se por um lado eu consigo imaginar o porquê de a Sally ter escolhido a que escolheu, me custa acreditar que alguém sofre mais para manter a compostura do que um professor, especialmente os de escolas públicas.

Vamos começar com o básico: convívio diário com crianças em longos períodos de tempo. Eu costumo dizer que detesto criança, mas tem uma hipérbole aqui: não é que eu queria maltratar nenhuma delas, só não tenho o pacote de hormônios necessário para aturá-las no longo prazo. Eu enchi o saco dos meus pais e professores como qualquer outra criança, e valorizo quem tem a energia necessária para lidar com uma delas de forma decente. Mas isso não muda o fato que crianças são difíceis, isso é, difíceis se você quiser fazer as coisas direito e criar adultos viáveis na sociedade.

Criança tem pouco conhecimento, pouco refinamento e tende a ser muito egoísta por não ter o senso do “outro” bem desenvolvido na cabeça ainda. Pode-se argumentar que isso descreve o brasileiro adulto também, mas basta ler o desfavor por algumas semanas para descobrir como detestamos isso de qualquer jeito. A diferença é que a criança não teve tempo mesmo para desenvolver características desejáveis no convívio humano. Não dá para criticá-la ou puni-la da mesma forma que você pode fazer com um adulto. Em tese, todas deveriam ter salvação. Na prática…

Um professor ou uma professora tem que aguentar todos os problemas inerentes ao comportamento infantil e a soma de todas as falhas de criação pelos pais num grupo sob a sua supervisão por várias horas todos os dias. Os pais são ausentes e criam um monstrinho desesperado por atenção? Ele vai ficar atrapalhando sua aula constantemente. Falta estímulo intelectual em casa? A criança não vai entender nada do que você ensina e descontar sua frustração em comportamentos agressivos ou antissociais. E não adianta tentar corrigir esse comportamento, rigidez não é mais permitida na sala de aula e todo esforço feito na base do amor vai ser desfeito quando a criança voltar pra casa. Você lida todo dia com casos perdidos.

E pior, quando você reconhece alguma criança que tem potencial para algo maior, tem que lidar com o fato dela ser constantemente puxada para baixo pelas outras, seja por ser forçada a se adaptar ao bando, seja por isolamento. Você não vê só crianças sendo desperdiçadas por pais preguiçosos e/ou burros demais, você vê as que tinham chance definharem lentamente diante de seus olhos. E tudo isso com ferramentas pra lá de limitadas para intervir. Ou a criança tem o suporte necessário em casa, ou o professor ou professora está basicamente vendido ali, vendo o desastre acontecer. Não me espanta que tantos percam a energia de tentar algo melhor depois de um tempo. Se o profissional levantar a voz para uma criança mal educada, corre o risco de escutar duas horas de chilique de uma mãe analfabeta funcional e ainda ser demitido. A pessoa sabe que talvez a criança tenha como ser salva, mas não lhe é permitida agir nesse sentido.

Precisa de muita paciência para encarar essa realidade e voltar para o trabalho no dia seguinte. Horas de crianças berrando, brigando e debochando por problemas de criação que não são sua responsabilidade! Tem que dar uma medalha para professores que resistem a tudo isso e ainda se importam com seu trabalho depois de décadas. É um grau de doação para o bem comum que eu nem imaginaria ter. Mas sabemos que depois de um tempo, boa parte deles simplesmente desiste e começa a ficar tão ausente como os pais despreparados que colocam crianças-bomba na escola. A prova que exige tanta paciência é o número de pessoas que desistem e viram mortos-vivos depois de alguns anos de trabalho.

E vamos nos aprofundar num aspecto emocional aqui: como escola é algo diário, você vê a criança mais ou menos como os pais veem, sem filtros. Até eu que sou mais morto-por-dentro acho divertido falar com uma criança por alguns minutos, tem uma inocência e curiosidade que simplesmente não existe mais na maioria dos adultos. E enquanto ela não está confortável com você, TENDE a ser um pouco mais educada e respeitosa porque o instinto de não deixar um adulto bravo ainda está inalterado. Mas quando saem as luvas de pelica dessa relação, o lado ruim dela surge. São crianças, não podem evitar. Um profissional que vê a criança uma vez por mês tende a só lidar com o lado tolerável. O que a encara todo santo dia vai ver o pacote completo. E criança no pacote completo é que nem peido: você só atura se for seu. Imagine isso dezenas de vezes numa sala de aula? Tem que ser um santo para não tocar o terror e ameaçar violência física.

Além disso, a convivência gera laços emocionais. Você nunca precisa pensar nos problemas que essa criança passa se a vê esporadicamente. Alguém com vocação para ensinar crianças costuma ter no seu pacote também uma empatia mais bem desenvolvida. O que deve ser especialmente dolorido se você está numa escola pública de uma área carente, por exemplo. Você começa a ver como essas crianças são reflexo de uma realidade brutalizada por pobreza e ignorância. E mesmo puto com a falta de educação, sempre sabe que elas nunca tiveram uma chance de fazer melhor. Paciência depende muito da sua capacidade de acreditar que tem poder de lidar com a situação. Você tem que se distanciar emocionalmente para sobreviver, mas sem a força extra de acreditar que pode fazer um bem ali, o cérebro não te dá mais nenhuma recompensa por aturar a situação.

E pior, ainda não valorizam a profissão por aqui. Se alguém te diz que é professor, você imediatamente presume que é pobre. Os salários na rede pública são ridículos e não acredito que na rede particular sejam lá tão impressionantes salvo algumas escolas de altíssimo padrão. Tudo bem que o ensino superior virou uma festa de McUniversidades cuspindo uma profusão de graduados com dificuldades básicas de compreensão de texto, mas ainda há alguma pompa em se dizer professor de universidade. Professores do ensino fundamental tendem a ser vistos com pena. Num país onde educação é um meio de manter o Bolsa Família e escola um lugar para desovar as crianças por algumas horas por dia, fica complicado compensar as dificuldades do trabalho com o orgulho do que faz ou mesmo com a recompensa financeira pelo trabalho. Mais fácil ter paciência quando as pessoas te respeitam e você paga suas contas com facilidade no final do mês.

Parabenizo os professores que ainda se importam, mas não os invejo. Nem um pouco.

Para dizer que nem pedófilo gosta de criança, para dizer que dar aula para criança só compensaria com salário de juiz, ou mesmo para dizer que você era uma criança perfeita (claro): somir@desfavor.com

SALLY

Qual é a profissão que demanda mais paciência entre todas?

Pediatra. Acho que tanto Somir como eu concordamos que não há inferno maior do que lidar com criança nessa vida, porém o Pediatra tem um agravante: além de lidar com a criança, ele fica exposto o tempo todo a outro mal tenebroso, as mães das crianças. Haja combo infernal!

Professores lidam com mães de forma esporádica, quase sempre protocolar: reuniões, bilhetes, conversas sobre um problema pontual. Pediatra não, o infeliz está exposto a uma das raças mais irracionais (mães) em um de seus momentos mais irracionais (filho doente). O Pediatra, meus queridos, é um santo que merece todo nosso respeito e honrarias.

O professor atura as crianças diariamente, mas tem algum poder sobre elas: as pestinhas estão sozinhas na escola, sem o respaldo imediato da mamãe e tem várias punições que podem ser aplicadas a elas que vão enfurecer a mamãe e gerar castigos. Por mais abusada que seja uma criança, ela sabe que se tomar uma nota baixa, uma advertência, suspensão ou até se for expulsa da escola, isso vai gerar uma reação em seus pais.

No pediatra, a criança está na condição de vítima, pois supostamente está doente, está debaixo da barra da saia da mamãe e ainda por cima está especialmente irritada ou indisposta, pelo provável mal-estar da doença. É um prato cheio para fazer birra, morder, se recusar a cooperar, gritar e fazer escândalo. E mamãe vai pensar duas vezes antes de dar uma bifa na cara de criancinha doente, não é mesmo?

O Pediatra não tem qualquer poder impositivo sobre a criança, se tiver ética. Se não tiver ética pode até ameaçar com uma injeção, mas isso é muito feio e contraproducente. E como as mamães tem cada vez menos controle sobre sua prole, não é improvável que uma criança se recuse a colaborar com ambos, tornando uma consulta um show demorado de gritos. Já vi algumas dessas, é assustador.

Lembro quando eu era pequena… o médico era quase que um Deus. Ir ao médico era um evento, você estaria diante daquela divindade suprema, à qual nada se questiona, tudo se acata e se agradece. Ser médico era um status dos mais elevados socialmente falando. O tratamento era formal, ninguém nem pensava em chamar um médico de “você”. Se entrava muda e saía calada do consultório, agradecendo por aquela divindade te receber. Era quase um templo sagrado da saúde.

Hoje? Decaiu. Mesmo consultórios particulares parecem uma fila do SUS, por causa do boom de planos de saúde. O médico atende um zilhão de pacientes por dia, exaurindo qualquer paciência que um ser humano normal possa ter. Mamães demandam, exigem, abusam do médico pois “estão pagando”, se não a consulta, o plano de saúde. Universo Umbigo.

Discutem com o médico, confrontam com um diagnóstico que viram no Google, ligam de madrugada por qualquer merdinha, como se fosse mais do que obrigação do médico ser importunado com um sorriso no rosto: “se não queria ser interrompido durante a noite não escolhesse pediatria”. Não há semancol, não há respeito, não há bom senso. A vida destes profissionais é um horror 24h por dia!

Sim, ser professor de criança deve ser uma merda, mas ao menos, você vai pra casa e a merda acaba. O Pediatra é merda 24h por dia, quando não com a criança, com a mãe da criança, que geralmente consegue ser ainda mais mal-educada que a própria criança.

Sem contar o peso da responsabilidade: ensinar a uma criança o descobrimento do Brasil é muito menos responsabilidade do que cuidar da saúde de alguém. Se o professor erra, a criança não passa no ENEM, se o médico erra, a criança pode morrer. Se uma criança não aprende algo, sempre pode ser alegado se tratar de um problema de aprendizado dela, dizendo que o resto da turma está de boa. Se uma criança não se cura de uma doença, a culpa não vai ser dela e sim do médico que a está tratando.

Diagnosticar uma criança pode ser o inferno na Terra, pois para isso são indispensáveis informações que a mãe detém, ou deveria deter. Encontre uma mãe sensata, precisa, racional e calma para prestar as informações necessárias de forma assertiva ao pediatra. Eu te desafio.

Se precisar da colaboração da criança, pode ser uma luta: ficar quieta, abrir a boca, se deixar apalpar… olha, boa sorte. Uma criança em sala de aula que não quer aprender, no pior dos mundos, você larga de lado e foda-se, que seja caixa do Mc Donalds para o resto da vida. Pediatra não, pediatra tem que conseguir informações para fazer o seu trabalho.

Fora o estado de alteração que as mamães estão quando tratam com um pediatra. Não foram poucas as notícias que eu vi de mães encestando uma porrada em médicos por acharem que não estão sendo atendidas da forma devida ou com a rapidez que elas gostariam. Uma mãe quando deixa uma criança na escola sente alívio (sejamos sinceros, ninguém admite, mas na maior parte das vezes sentem sim). Uma mãe quando falta ao trabalho para levar o filho no médico só quer que aquilo acabe logo.

Graças à convivência diária, a criança nutre algum tipo de sentimento pelos professores (adolescentes não, mas crianças sim), o que pode ser refletido em algum resquício de respeito ou temor. Pensam antes de fazer um desaforo com uma pessoa que terão que ver todos os dias do ano e que tem poder de reprova-las, coloca-las de castigo ou até expulsá-las da escola. O Pediatra não. Pode sentar o dente no dedo do infeliz, nem tão cedo vai encontra-lo novamente, até a próxima consulta, o constrangimento já passou.

O salário do Pediatra é maior que o do professor? Provavelmente sim, mas a pergunta é qual demanda mais paciência. Professor tem cinco ou seis horas de inferno por dia, lidando apenas com crianças. Pediatra tem o dia todo de inferno, inclusive quando está na sua casa, e lida com crianças e mamães de crianças. Meus pêsames.

Para dizer que um bom salário te dá paciência, para dizer que está com pena de ambos ou ainda para dizer que ao menos o professor aposenta mais cedo: sally@desfavor.com

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Comments (24)

  • Fico com o Somir nessa. Acho que ser professor exige mais paciência. É duríssimo exercer uma profissão em que seja necessário lidar com vários fedelhos ao mesmo tempo em uma sala de aula, todos os dias, com a responsabilidade de ter que ensinar alguma coisa e ainda por cima muitas vezes tentando até – por abnegação ou por necessidade – dar um pingo da disciplina que esses capetinhas já deveriam ter aprendido em casa. Tudo isso a troco de um salário ridículo e de quase nenhum reconhecimento; seja dos pais, dos alunos e da própria sociedade. E por aqui ainda há um “agravante”. Vou repetir algo que disse em 2012: “Infelizmente, no Brasil, existem três profissões cheias de gente que não se “encaixou” em nenhuma outra, quando o certo seria que esses postos fossem ocupados apenas por quem prima pela excelência. Essas profissões são: professor, funcionário público e policial. Em qualquer lugar mais civilizado pouquinha coisa, apenas os melhores é que se tornam professores, funcionários públicos e policiais, de tanto que essas carreiras são valorizadas e reconhecidas como fundamentais na construção de uma sociedade decente. Aqui, por outro lado, é na base do “não serve pra nada, então vai ser professor/funcionário público/ policial”.”

  • Se considerarmos a questão da concorrência, pior ser pediatra. Conheço um profissional consagrado que, para não perder pacientes, topa até atendê-los em sua própria casa num domingo.

    Por outro lado, tem profissões em que atender crianca pode render muitos frutos. Se um dentista se der bem com crianças, muitas vezes consegue o resto da família dela como paciente ou como fonte de indicação de outros pacientes.

      • Pediatria está uma área ingrata… ou vive de plantão, ou tem que fazer essas de ficar sempre online pras mães, e atender de fim de semana/feriado…

  • Uma pessoa que lida com umas 25/30 crianças diariamente o ano inteiro merece o céu (e lembro até hoje de uma professora que tive na infância tendo um colapso nervoso na frente da minha turma por causa da bagunça que a pirralhada tava fazendo. A mulher chegou a tirar licença. Foi tenso aquele dia).

    Sei lá… Acho que qualquer profissão que seja necessário lidar com criança me dá calafrios. Mal tenho paciência com as crianças da minha família.

  • menções honrosas para cuidadores de idosos (lidar c/ alzheimer É COMPLICADO), carcereiros e policiais militares também… Porque o que mais acontece é atender desinteligência, e aí haja saco.

    mas criança dos outros necessita o perfeito alinhamento das estrelas na constelação ‘paciência’.

  • Profissão com atendimento ao público são as mais estressantes. Vendas, recepção são trágicas. Ja trabalhei nas duas áreas e era infernal.

    Entre os escolhidos da Sally e do Somir acredito que o pediatra seja pior, pois ele receberá ligações de madrugada pq o filho enfiou giz de cera no nariz e etc.

      • Pôxa vida, Sally… Na época deve ter sido mesmo terrível, mas imagino que hoje você deva ter algumas boas histórias pra contar sobre essa fase da sua vida e, quem sabe, até se divirta lembrando.

  • “Por mais abusada que seja uma criança, ela sabe que se tomar uma nota baixa, uma advertência, suspensão ou até se for expulsa da escola, isso vai gerar uma reação em seus pais.” A reação é: a criança continua sendo vítima, pois se tirou nota baixa ou levou advertência é porque o professor é malvado, é muito exigente.
    “Mamães demandam, exigem, abusam do médico pois “estão pagando”, se não a consulta, o plano de saúde. ” O mesmo para escolas particulares.

    No fim, não cheguei a um consenso.

    • Por mais permissivo que seja uma mãe, se a criança é expulsa, sobra para a criança também, pode apostar. Isso gera o trabalho de ter que procurar outra escola, despesas extra e muitas outras coisas que emputecem as mamães. Sem contar que, nessas horas, entra o pai também, que geralmente tem mais bom senso.

  • Minha mãe é professora e ama sua profissão, da aula para crianças em alfabetização. Teve um ano em que ela trabalhou como coordenadora da escola, mas foi pra nunca mais na vida, ela teve que lidar com as mães loucas que não aceitam que seu filhinho amado tenha feito algo de errado na escola, faziam barraco, ameaçavam, era insuportável. Tanto que voltou a dar aulas e não troca seus aluninhos pelas mães de forma alguma.
    Imagina agora um pediatra que não pode fazer essa troca…

  • Falando de crianças, professor tem que ter muito mais paciência! Infinitas vezes mais!

    Falando de médicos, geriatras tem que ter mais paciência!

      • Com certeza.

        Criança vc só lida com uma mãe louca, mas que, na maioria das vezes, quer ver o filho bem e aceita quase tudo que o médico orientar. Lavar nariz com soro, dar remédio amargo, dar injeção.

        Agora pega a MESMA mãe no papel de filha de um idoso, que não aceita fazer as coisas que precisariam ser feitas, pq “eu troquei suas fraldas, vc não manda em mim”.

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