Jornalista de verdade.

Posso começar este texto com basicamente qualquer notícia, mas vou aproveitar para trazer um tema político dos EUA, já que continua sendo minha teoria que o Brasil eventualmente acaba seguindo os padrões culturais de lá. Recentemente saiu o relatório de Robert Mueller, um investigador do FBI que analisou oficialmente por dois anos um possível complô do então candidato Donald Trump com os russos durante a eleição presidencial de 2016. E apesar de boa parte da mídia americana tratar o tema como certeza por esses dois anos e colocar muita confiança na imparcialidade de Mueller, o relatório inocentou Trump. Ele não conspirou com os russos. O que só reforçou a retórica de “Fake News” vinda de seus apoiadores. E agora, como lidar com jornalistas e figuras públicas em geral que passaram esse tempo todo acusando o presidente?

Bom, os republicanos e conservadores em geral estão na fase do “não disse?”, mais tirando sarro da grande mídia do que necessariamente pedindo cabeças. Para eles, nem chega a ser grande surpresa: quem comprou a ideia de que boa parte da mídia mente durante a campanha presidencial não teve que se deparar com um fato novo. Já o lado que costuma bater no Trump parece desnorteado pelo fato: tinham certeza que o homem laranja conspirou sim para roubar a eleição de Hillary, e tinham muita esperança que Mueller exporia a verdade. Não faltaram elogios para o investigador nesses últimos dois anos. Quando o resultado da investigação chegou, não conseguiram lidar com isso. Um lado mais civil se sentia obrigado a aceitar o resultado, mas evidentemente causou muita frustração e desconfiança. Jornalista da MSNBC quase chorou ao vivo falando do tema!

Ambos os lados lidaram com o problema de duvidar da realidade apresentada diante de seus olhos. Os defensores de Trump acharam um absurdo sequer começarem a investigar o fato, dizendo que era basicamente um boato ganhando o poder de acusação, mas com o resultado, apossaram-se do fato da investigação não ter dado em nada para fazer sua propaganda política; os detratores fizeram o caminho oposto. Antes a investigação era válida e baseada na realidade, agora o resultado soa como uma traição e ninguém decidiu mudar de lado do que já acreditava, estão apenas tentando lidar com a informação para achar um ângulo favorável. É a natureza da divisão política em ação: a pessoa acredita no que quer e escolhe o que quer do bufê de fatos disponíveis ao seu redor.

Mas, não nos enganemos: em qualquer país, a maioria sempre vai ser composta por pessoas que não se interessam muito pelo ambiente político, no máximo assumindo alguma simpatia por um candidato ou outro. Por mais que a ideia de “Fake News” tenha entrado no ambiente cultural atual, não é como se tivesse uma cara muito bem definida. As pessoas parecem conscientes que existem mentiras passeando pela internet, mas não são muitas que tem a capacidade de separar o joio do trigo. Normalmente é necessário ter informações sobre o tema de antemão para perceber uma mentira. Claro que existem formas de presumir o que não combina com a realidade e pegar atalhos nesse processo, mas mesmo esse bom senso mínimo tem seu custo: se você não tem um interesse elevado por atualidades e curiosidade genuína para se aprofundar numa quantidade enorme de assuntos diferentes, é muito difícil formar esse bom senso.

Curiosamente, essa deveria ser a característica básica de um jornalista. Alguém capaz de intuir o que tem maior probabilidade de ser verdade e fazer pesquisas eficientes para apresentar informações objetivas e suficientemente seguras para o público. Todo mundo erra, todo mundo pode ser enganado, mas convenhamos que se alguém deveria ter uma proteção maior contra isso, deveria ser justamente o profissional dessa área. Mas hoje em dia ninguém é mais criticado por soltar informações falsas do que o jornalista. Oras, algo deu muito errado nesse processo! O jornalismo morreu? Não podemos mais confiar na imprensa? Todos têm alguma motivação política?

Permitam-me ser o advogado do diabo, ou… do jornalista, por alguns momentos: repito que somos humanos, somos falhos e ninguém está acima de ser enganado. Talvez a primeira coisa para pensar aqui seja que imputar ao jornalista a obrigação de não errar seja uma expectativa irreal. Quem nunca foi influenciado a acreditar em algo errado por mentiras ou mesmo coincidências? Sim, jornalistas são cobrados num nível diferente, afinal, deveriam ser mais capacitados para lidar com esse tipo específico de problema. Um encanador tem que saber mais sobre instalações hidráulicas do que o cidadão comum, um médico tem que saber mais sobre doenças e tratamentos do que seus pacientes… e evidentemente um jornalista tem que saber melhor separar boatos de fatos do que aqueles que se informam através dele. Mas tudo tem limite. Jornalistas erram. Buscar a verdade objetiva é tão complicado que filósofos continuam se formando até hoje…

Se você for prestar atenção mesmo, os maiores culpados pelo volume de informações falsas circulando por aí não são os jornalistas: é aquele seu tio que repassa QUALQUER coisa que recebe no WhatsApp. É quem reporta opinião como fato em rede social, é quem solta boatos por ignorância ou interesse nos ouvidos de quem estiver ao seu redor. Muito embora as Fake News tenham alcance maior quando apresentadas por jornalistas da grande mídia, elas são uma gota no oceano de desinformação no qual vivemos atualmente. A verdade (segundo o meu argumento aqui) é que o próprio conceito de verdade começou a ficar borrado.

Mas não porque começamos a mentir ou errar mais, mas pela quantidade avassaladora de informação disponível por aí. A história é recheada de eventos onde uma mentira tomou proporções assustadoras, os cidadãos de antigamente acreditavam piamente em uma quantidade enorme de bobagens no seu dia a dia. A diferença? Agora ficamos mais desconfiados. A quantidade de informações verdadeiras não diminuiu, longe disso. Ninguém pode ser mais bem informado do que o cidadão moderno, com acesso sem fio ao conhecimento acumulado da humanidade. O que mudou, consideravelmente, foi a capacidade do ser humano de simplesmente aceitar a informação que lhe é apresentada. Antigamente não existiam Fake News porque as pessoas simplesmente acreditavam nas notícias. Aliás, notícias e boatos quase que por igual.

Sim, é preocupante que não existam mais barreiras para exercer a profissão de jornalista, mas não é como se isso fosse mudar tanta coisa assim: os maiores culpados pela insanidade de informações conflitantes rodando por aí são comentaristas, colunistas, comediantes, advogados, médicos, garis… todo mundo tem uma voz. Mesmo quem mal consegue escrever consegue repassar notícias falsas. Mesmo quem não entende 90% das coisas que lê consegue empurra um boato para frente. Eu sei que irrita a ideia de que jornalistas estejam sendo preguiçosos ou tendenciosos com o trabalho de informar as pessoas, mas preste atenção em quem realmente fala as besteiras, mesmo em sites grandes: é a blogueira feminista do Universa e suas matérias sobre como todo mundo que não é ela é uma pessoa horrível e insensível, é o tiozão reaça do WhatsApp soltando boato de meio parágrafo no Antagonista…

A mídia americana está vivendo um momento confuso porque por lá já aconteceu o processo de politização completa do jornalismo. Você assiste o canal de TV do seu partido, visita os sites e vê os canais de YouTube de quem já concorda com você. No Brasil, o processo ainda não está completo, a maioria das grandes mídias não assume um posicionamento, na esperança de poder tirar vantagem de quem quer que esteja no poder a cada mandato. Mas a mídia online já está basicamente cooptada por esse pensamento: todo mundo parece estar defendendo algum ponto de vista e escolhendo as informações que passa com esse objetivo em mente. A verdade nunca foi monopólio dos jornalistas, cada pessoa sempre teve a possibilidade de acreditar em qualquer asneira que quisesse. O que vemos atualmente é uma mistura de politização excessiva dos meios de comunicação, seguindo o padrão americano, e o óbvio de bilhões de pessoas com capacidade de disseminar informações em tempo real para qualquer lugar do mundo.

A verdade sempre foi confusa, mas nada nos preparou para este momento: ficar dando chilique por causa de Fake News dificilmente reduz o impacto de uma mudança tão grande no conceito de comunicação humana. Talvez exista um lado positivo em tudo isso: antigamente tudo era verdade por falta de informação suficiente para contestá-la. Atualmente nada é verdade porque tem informações vindo de todos os lados, com interesses políticos altamente envolvidos. Nessa hecatombe da realidade causada pela internet, pode ser que a demanda por pessoas capazes de filtrar tudo isso em busca da verdade, mesmo que errando às vezes, comece a aumentar novamente. O jornalismo pode renascer, não mais só como investigadores e coletores de informação, mas como profissionais altamente treinados nessa espécie de arte do bom senso. Limpando informações de tendenciosidades, prestando atenção nas fontes e apresentando apenas o que alcança um padrão mínimo de qualidade.

Acredito que esse movimento não vá começar pelo Brasil, afinal, estamos apenas começando a sentir o gostinho de politizar a mídia e faturar os tubos com isso, mas se as tendências da civilização ocidental continuarem aparecendo por aqui com algum atraso, eu já vejo coisas interessantes acontecendo na mídia online americana e europeia: meus feeds de notícias, canais de YouTube e afins já começam a mostrar mais e mais jornalistas de centro. A demanda está aumentando, e francamente, é muito mais agradável e eficiente do que ficar saltando entre mídias de direita e esquerda o tempo todo para conseguir montar um cenário mental decente. Não é otimismo baseado na bondade do ser humano, e sim em tendências de mercado que começam a ficar mais aparentes. O dinheiro vai começando a ir na direção do centro do espectro político, ainda bem devagar, é claro, mas é bem possível que ele consiga ressuscitar o jornalismo dessa forma. Não agora, mas nos próximos ciclos. Porque se tem uma coisa que eu acredito, é que a humanidade não fica parada até mesmo para evitar o tédio, esquerda ou direita sempre cansam o povo depois de um tempo. Os jornalistas estão morrendo porque perderam o foco durante essa revolução da comunicação, mas nada impede que renasçam em figuras de filtragem de informação num futuro próximo.

Claro, considerando que um computador não aprenda a fazer isso primeiro… semana que vem tem mais um texto de Transumanismo!

Para dizer que não acredita em nada, para dizer que só acredita no que já acredita, ou para dizer que desconfia de tudo o que não acredita: somir@desfavor.com

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Comments (24)

  • E aí Somir… e agora que o full report (não só o summary) foi divulgado mostrando que NÃO ERA BEM ASSIM e que o Trump OBSTRUIU SIM a Justiça Americana (https://edition.cnn.com/2019/04/18/politics/obstruction-charge-trump-mueller/index.html) e TENTOU FAZER CONLUIO com os russos (https://www.vox.com/2019/4/18/18484965/mueller-report-trump-no-collusion)?

    É foda quando a gente pula a largada para “confirmar aquilo que a gente já acredita”, né? É foda porque você tava criticando os caras de fazer isso e… bem, foi o que você fez.

    Fico no aguardo do seu texto de retratação. Porque, né, você não é um hipócrita que acusa os outros de fazer as coisas que você faz. Certo?

    • Texto de retratação? Ha! Sua sorte é que eu me amarro numa crítica passivo-agressiva. Vou morder a isca. Você parece ser um pouco inocente sobre a mídia americana… seus links são puro clickbait lançado no dia que dava mais dinheiro fazer isso. E link da Vox é tenso, hein? Eu poderia te mandar um da Fox News dizendo o contrário. A mídia americana é insanamente partidária, o que era o ponto do texto, inclusive a reação EMOCIONAL de vários jornalistas sobre o caso.

      Vou te dar um link mais recente, da própria CNN, dizendo que nem os democratas acham que dá para fazer algo com o Trump depois do relatório completo. ( https://edition.cnn.com/2019/04/22/politics/nancy-pelosi-impeachment/index.html) Mantenho que o grau de certeza apresentado pela mídia “liberal” americana não se sustentou na realidade. Ficaram com cara de bosta e agora estão tentando se agarrar a qualquer coisa.

      Mas eu não tenho saco para entrar no seu joguinho azedo, vamos ficar amigos, veja esse vídeo do Last Week Tonight: https://www.youtube.com/watch?v=YMBj_tU7HRU
      Nem eles, que não tem medo de nada, estão dizendo que “mostrou que OBSTRUIU SIM e TENTOU FAZER CONLUIO”. Aliás, achei hilário como provavelmente só não deu ruim de verdade por incompetência e desobediência dos asseclas do Trump. Eu não tenho nada investido no Trump estar certo ou errado, só estou dizendo que você veio para cima do meu texto baseado em mídias partidárias, me passando as conclusões deles e não os fatos. O fato é que não vai dar em nada, sendo Trump uma pessoa boa ou ruim, erraram feio ao dizer que seria o fim dele e propagar uma conspiração gigantesca que nem existiu na prática.

      E se quiser ficar reclamando ao invés de conversar, o espaço continua livre.

      Aquele abraço.

  • Até o momento, Somir respondeu a TODOS os comentários.
    A Retrospectiva Bizarra de Março de 2019 poderia ter esperado e fechado com chave de ouro.

  • Acredito no pouco que acredito, inclusive que a abordagem (acima) foi completa; e aguardo “com gosto” pela semana que vem.

  • No Brasil isso não vai acontecer tão cedo: posar de neutro, sendo, na dúvida, contra qualquer governo, é o “modus operandi” de qualquer meio jornalístico. Quanto mais voltado ao grande público, mais hipócrita.

    Já na internet, assumir lado já é o padrão. Sabe como é, público restrito, segmentado à exaustão, sempre será mais “cooptado” por quem defenda suas teses de forma bastante apaixonada (e irracional).

    • Ou avançamos para um mundo mais centralizado repetindo o padrão do passado, ou avançamos para uma realidade de inúmeras bolhas de informação cada vez mais radicais e desconectadas. Acredito que ambos os caminhos levam a menos embates.

  • Zero pena. A maior parte deles merecia estar na rua procurando sobra de comida na lata de lixo. Queria saber se jornalista sempre foi essa casta de arrombados que se acham seres superiores e agora se revelaram ou isso só começou em anos recentes.

    • Tem uma coisa a se considerar: o número de “jornalistas” aumentou exponencialmente nesses últimos anos. Talvez quem esteja começando a cair seja justamente quem nunca deveria ter entrado na profissão…

  • Observação. Investigação. Dedução. Apuração. Cruzamento de dados de várias fontes. Não deixar preferências ou interesses contaminarem o relato dos fatos. Tudo isso dá trabalho e leva tempo, mas TEM que ser feito. Sempre! E essa tarefa é árdua, exigindo muito cuidado e uma capacidade intelectual que a maioria das pessoas simplesmente não consegue ter. O grande problema, no entanto, é que a “facilidade” da internet somada com a sempre crescente pressão por mais informação e coma atual politização/polarização exacerbada da sociedade transformou todo mundo, de repente, em jornalista também. Ou, para usar uma frase sua: “antigamente tudo era verdade por falta de informação suficiente para contestá-la. Atualmente nada é verdade porque tem informações vindo de todos os lados, com interesses políticos altamente envolvidos.”

    E eu espero mesmo que haja um aumento no número de jornalistas de centro conforme você citou no final do seu texto, Somir. Mais ainda: recorrendo outra vez a uma analogia desfavoriana, gostaria que o tal movimento de pêndulo na sociedade do qual sempre se fala por aqui cessasse daqui a algum tempo devido justamente ao que você expôs no último parágrafo. Explicando melhor: em Física, um pêndulo pára de balançar quando fatores dissipativos como resistência do ar e atrito aos poucos se sobrepõem ao impulso inicial que o movimentou. Assim sendo, imagino que seria bom se essa “tendência de mercado” rumo ao centro do espectro político mencionada por você fizesse precisamente o papel de “fator dissipativo” contra o “impulso” representado pela disputa Esquerda x Direita e o pêndulo da sociedade enfim atingisse um estado de equilíbrio, sem pender nem para um lado nem para o outro.

    Por outro lado, não creio que um dia computadores ou mesmo super inteligências artificiais desapaixonadas consigam aprender a filtrar informações e eliminar tendenciosidades para se chegar à “verdade”. Porque essa é uma atividade demasiadamente humana para caber em algoritmos. Ah! E eu já mandei o link da postagem de hoje pra algumas pessoas que acho que precisam ler…

    • Por outro lado, não creio que um dia computadores ou mesmo super inteligências artificiais desapaixonadas consigam aprender a filtrar informações e eliminar tendenciosidades para se chegar à “verdade”.

      Fácil com certeza não é. Mas vai depender bastante do que definirmos como verdade. O argumento em prol da “algoritmização” é que a paixão do ser humano pode ser justamente o problema. Se a verdade não é um conceito absoluto e depende mais de concordância e relevância, talvez uma máquina possa trabalhar com isso. Mas, fica para o próximo texto mesmo.

  • A tendência aqui no BR seria que a mídia tradicional (Globo a frente) tenda a puxar os eventuais jornalistas de centro aqui para o seu staff. Tem um lado bom nisso, mas tem um ruim.

    • Tudo vai depender do modelo de negócios da informação daqui pra frente. Ser independente tem muitas vantagens, mas saber fazer algo bem e ganhar dinheiro com isso são duas coisas bem diferentes… tomara que exista um modelo de negócios consistente para quem escolha não ir para as grandes empresas.

  • O ideal é ser alienado e deixar esses malucos se matando sozinhos. A vida é curta, você morre e a política fica.
    Falando em política americana, você pretende escrever algo sobre o Yang? Tem um pessoal desiludido com o Trump que está apostando suas fichas nele.

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