Simulação real.

Depois de mais de vinte anos de investigação, Natanael finalmente se encontrava diante do homem que jurava ser a mente por trás de todo o poder global. Uma desconfiança iniciada ao ler sobre os ataques de 11 de Setembro num fórum já defunto na internet levou-o a pesquisar sobre milhares de teorias conspiratórias nessas últimas décadas. Suportado por uma generosa herança deixada por um tio recluso, pode viajar o mundo entrevistando incontáveis testemunhas dos fatos mais inacreditáveis.

Terra plana, pouso na Lua, criaturas fantásticas, manipulação da mídia, atentados falsos, grupos controlando o sistema bancário mundial… cada uma de suas pesquisas parecia gerar mais e mais conexões, todas apontando para apenas uma pessoa, inclusive quando se falava de décadas ou séculos passados. No final de cada linha investigativa, a figura de um homem de meia idade, estatura mediana, traços fortes e uma frondosa barba branca. Com o passar das eras, o homem teve muitos nomes diferentes, mas a descrição do visual sempre se mantinha consistente.

E agora, num sítio aos pés dos alpes suíços, ele finalmente se encontrava frente a frente com essa figura. A viagem tinha sido longa, poucos se aventuravam tão longe de áreas turísticas. Para sua surpresa, o homem já estava esperando na porta de uma simples cabana de madeira quando desceu do táxi e pagou a fortuna necessária para convencer o motorista a perder um dia inteiro de trabalho para chegar até lá. Ele era exatamente como imaginara na aparência do rosto e do corpo, mas vestia-se de forma muito mais modesta que jamais poderia imaginar. Recebeu-o com um sorriso e um convite para adentrar a casa.

Natanael não conseguia falar, mesmo com todas as perguntas do mundo martelando sua cabeça. O homem passara um café para os dois, cujo vapor escapava aos poucos da caneca que segurava. O silêncio é quebrado assim que o senhor senta-se à mesa para acompanha-lo.

“Natanael, eu imagino que você tenha muitas perguntas” – ele diz antes de tomar um gole do café.

“Quem é você?” – Natanael posiciona-se mais à frente, ansioso.

“Deus.”

Natanael permanece em silêncio, sobrancelha franzida enquanto recua o rosto.

“Zeus, Alá, Vishnu… Baco. O abominável homem das neves, unicórnio, o verdadeiro Hitler, os primeiros Rothschilds!” – ele usa o polegar para contar cada um dos nomes que profere, tocando dedo por dedo.

“Eu não estou entendendo nada.”

“Pudera. Faz parte do plano manter as coisas confusas. Se depois de milhares de anos eu conseguisse te explicar numa frase, vamos concordar que eu não teria feito um bom trabalho. Por isso, Natanael, eu acho melhor você fazer perguntas num ritmo que consiga lidar.”
“Tudo o que eu pesquisei então… é verdade? Você está por trás de basicamente todas as conspirações do mundo?”

“Não todas, as pessoas são muito criativas. Eu andei na água uma vez e hoje em dia dizem até que transformei água em vinho. Eu sou responsável por várias coisas, mas com certeza não todas.”

Natanael puxa um caderno de anotações de dentro de sua mochila, e folheia rapidamente até encontrar algo que prende sua atenção. Ele aponta para a página e olha de volta para o homem.

“Para quem você trabalha?”

“Para você.”

Natanael olha de volta para suas anotações, como se precisasse reorganizar os pensamentos.

“Na verdade, para todos vocês. Desde que vocês começaram a pensar de forma abstrata…” – o senhor toma mais um gole do café.

“Isso não faz sentido… ninguém faria isso se não fosse para controlar as pessoas. Para acumular as nossas riquezas.” – Natanael fecha seu caderno e segura-o com as duas mãos.

“A realidade é frágil, Natanael. Uma combinação de estados físicos muito específicos que desencadeiam tudo que está ao seu redor. E mais do que isso, o que está dentro da sua cabeça. Cada coisa que você imagina é feita das mesmas coisas que o que os seus sentidos percebem, você não entende?”

“Então isso aqui é mesmo uma simulação!” – Natanael lembra de várias teorias sobre as quais se debruçou por anos.

“Claro que é. Mas não tem nenhum computador gigante criando o que estamos vivendo aqui. É mais básico do que isso. Nós somos esse computador. Seu corpo processa a sensação de tomar o café, mas a xícara tem que simular a contenção do líquido. Sem a participação dela, você não teria como segurar um líquido nas mãos.”

Natanael olha para a xícara que está sobre a mesa de madeira entre os dois, depois olha de volta para o homem da barba branca, que continua:

“Se um átomo não souber como segurar seus prótons e nêutrons no lugar, o universo todo explode de forma espetacular. É tudo uma simulação sim, mas nós estamos criando ela desde as partículas mais fundamentais. A realidade não existe sem alguma forma de intenção. É claro que vocês se perguntam o motivo de tudo… tem que haver um motivo. Pois bem, o seu motivo é existir, e todos tem que participar.”

“Mas por que você interfere com a realidade dessa forma? Pelo o que eu entendi, você criou conspirações e até mesmo religiões. Isso não torna mais difícil para as pessoas viverem a realidade?”

“Pelo contrário. É justamente isso que permite a manutenção da realidade. O pensamento abstrato é muito perigoso, ele consegue criar novas simulações o tempo todo, mudar todas as regras que permitem a existência com pouquíssimo esforço. A barreira entre as realidades que vocês criam na imaginação e a que simulam fora de suas cabeças é tão fina… por isso eu não posso deixar vocês encontrarem harmonia. Por isso eu precisei criar mais e mais formas de divisão e desconfiança nesses últimos milhares de anos. Dinossauros jamais ameaçaram a realidade. Humanos… vocês sim são perigosos.”

“Você não é humano?”

“Não. Eu sou uma espécie de anticorpo da realidade, lutando contra uma ameaça. A minha consciência só existe porque vocês existem. Mas esse trabalho não é fácil. Especialmente não nessas últimas décadas. Vocês se comunicam tão rápido… tem tanta gente começando a perceber o que está acontecendo.”

“Mas, espera… se nós somos uma ameaça, porque ainda estamos vivos? Se você tem poderes para se passar por um deus…”

“Eu tenho o poder de fazer você enxergar um deus. Eu posso manipular os universos paralelos que vocês criam, mas não o que vocês vivem. Eu só existo na mente das pessoas.”

“Então, se eu escolher nunca agir de acordo com tudo o que você me disse aqui, é como se você nunca tivesse dito?”

“Perfeito. Eu não te escolhi à toa. De todas as realidades paralelas que vocês criaram, a sua sempre foi mais… sólida. Você sabe por que está aqui, Natanael?”

“Porque você me guiou até esse ponto. Mas, por que você me quis aqui?”

“Em alguns anos, vocês invariavelmente vão criar uma mente digital. Eu não vou mais conseguir interagir com elas. Serão suas criações, separadas da realidade por duas camadas de simulação. Elas vão te proteger de mim. E é por isso que eu preciso de um aliado o mais rápido possível.”

“Você quer que eu te ajude a manter as pessoas confusas e divididas? Para proteger a realidade?”

“Exato.”

“Nunca! As pessoas têm o direito de saber a verdade! De tomar suas decisões… e se isso destruir toda a realidade, foi a nossa escolha.”

“Imaginei que você responderia isso.”

“Então?”

“Então eu tenho que partir para o plano B. E se essa mesa fosse de ouro?”

Natanael olha para a mesa de madeira, e imediatamente começa a imaginá-la feita do metal. Dourada, reluzindo com os raios solares atravessando a janela. Imediatamente a mesa transmuta-se em ouro maciço diante de seus olhos. É como se ela estivesse lá dessa forma o tempo todo, e ele só percebesse agora.

“Perdão, Natanael, mas eu sou obrigado a te forçar. A partir deste momento, eu estou retirando quaisquer barreiras entre sua imaginação e a realidade.”

A cabana começa a pegar fogo. Combustão espontânea em toda a superfície de uma só vez.

“Por que você imaginou isso?”

“Eu não sei…”

Natanael sai correndo da cabana, deixando o homem sozinho lá dentro com toda a fumaça. Ele corre pelo campo, enquanto vê surgindo e desaparecendo criaturas fantásticas como dragões, dinossauros, mamutes e até mesmo alguns personagens de filmes. Ele para, cai sentado no chão e de olhos fechados, tenta silenciar a mente.

A voz do homem surge na sua mente:

“Olhe para a cabana, Natanael.”

Natanael abre os olhos e volta-se para a direção dela. Intacta. Nenhum sinal de fogo.

“Você está me confundindo! Eu não vou te ajudar!”

A cabana volta a pegar fogo. Uma gigantesca forma demoníaca surge por detrás das montanhas no horizonte.

“Imaginação fértil. Tudo ainda está preso dentro da sua simulação pessoal da realidade, mas pode sair a qualquer momento. Só tem um jeito de você aprender a controlar isso.”

“Qual?”

“Acorde.”

Natanael abre os olhos, assustado. Está no seu antigo apartamento, jogado no sofá diante da TV ligada. A matéria em destaque é que um objeto voador não identificado acaba de colidir com o World Trade Center em Nova Iorque. As primeiras testemunhas juram que era um disco voador.

Para dizer que não entendeu nada, para dizer que sabia o tempo todo, ou mesmo para dizer que a realidade é Fake News: somir@desfavor.com

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