Fantasia para garotas.

Aproximando-se de 2.5 bilhões de dólares de bilheteria no mundo, a conclusão da saga cinematográfica dos Vingadores já deve ter sido vista por quase todo mundo que estava ansioso(a) por vê-la, mas fica o aviso de potenciais spoilers. Não que eu vá analisar o filme, mas algo nele me chamou a atenção: o que configura fantasia aceitável para mulheres e homens.

O filme é uma ode à competência dos estúdios Marvel no que se propôs a fazer nessa última década: fazer filmes bem feitos e divertidos. Mas acima disso, realistas. Sim, eu sei que estamos falando de seres que voam, naves espaciais e mágica em geral, mas é sobre o tom do filme. Não é nada estilizado para parecer sombrio ou infantil. Basicamente, adicionam elementos fantásticos na realidade que estamos acostumados e colocam uma câmera para captar os acontecimentos. Roteiros simples, personagens bem definidas e basicamente nenhum interesse em criar algo mais artístico.

Informação que pode ser útil: personagem é substantivo feminino. Nem sempre eu estou falando de uma mulher quando escrevo “a personagem”, ok?

Uma fórmula que obviamente funcionou. A criança de hoje tende a conhecer uns 20 super-heróis a mais do que a criança de duas ou três décadas anteriores. Os filmes tornaram-se tão populares que tiraram as histórias em quadrinhos de um nicho de fãs e as colocaram no imaginário popular de bilhões. E nesse pacote obviamente vieram as mulheres. Antigamente, elas tinham até orgulho de não saber nada sobre essas nerdices, mas hoje em dia os estúdios estão gastando horrores para entregar mais personagens para elas.

E evidentemente, mais protagonismo. O universo atual da Marvel já estava estabelecido com protagonistas masculinos, refletindo o público que os estúdios esperavam ter desde o começo, não dava mais tempo de virar esse barco. O que, é claro, não impediu uma tentativa de último minuto: adicionar a Capitã Marvel na história e estabelecê-la como alguém incrivelmente poderoso na reta final da história. Eu honestamente esperava mais feminismo na história, no final das contas, foi até leve. Sim, Capitã Marvel aparece meio que do nada, parece que poderia ganhar do Thanos na base da porrada e resolver o problema todo do filme de uma só vez, mas os roteiristas tiveram a decência de finalizar a história com as personagens que a começaram. Tony Stark começou essa fase do universo Marvel, Tony Stark a finalizou. Perfeito.

Mas, com tantos bilhões em jogo, evidente que as coisas vão continuar em movimento. A Marvel deve começar a próxima fase em breve, e em 2019 o cenário é bem diferente de 2008, quando foi lançado o primeiro filme do Homem-de-Ferro. Agora todo mundo já sabe que colocar mulheres no primeiro plano da história tende a ser lucrativo, e que basta não exagerar demais na lacração que ela pode ajudar a vender mais ingressos. Não sei se vai dar certo centrar a nova fase no buraco-negro de carisma que é a atriz que faz a Capitã Marvel, mas com certeza vamos ver um elenco mais diversificado (vulgo com poucos homens brancos) daqui pra frente.

Então, começa a corrida por estabelecer pelo menos metade dos novos Vingadores como mulheres. Vamos começar a pensar em como criar super-heróis para meninas? Eu sei como eu gostava dos meus: quando era mais novo, eu queria poderes ilimitados, provavelmente porque você se sente muito fraco quando é criança e a fantasia de poder tudo o que não te deixam fazer seja muito saborosa para ignorar. Com a adolescência, personagens poderosos, mas com um monte de problemas na cabeça e na vida ficaram mais interessantes: refletem a fase da vida, onde você ainda se sente impotente, mas quer se sentir refletido em alguém com todos os seus hormônios em guerra nuclear. Depois de adulto, personagens que usam mais o cérebro e tem que vencer grandes desafios e tragédias pessoais começaram a ficar mais interessantes. Somos mais cínicos, já aceitamos muito mais limitações e com certeza já passamos por problemas bem mais duros que os do começo da vida.

Será que isso se repete para mulheres? Realmente faz diferença se ver representado ali. Pra mim foi fácil: quase todos os heróis também eram homens e brancos. Entrava na pele deles e conseguia curtir as histórias numa boa. Como as histórias eram criadas para homens jovens em sua maioria, as mulheres das histórias sempre tinham algo de diferente deles: confusas, imprevisíveis e muitas vezes, chatas e reclamonas. Pode me chamar de machista, mas quando você vê o mundo como homem, mulheres parecem assim mesmo, não precisa nem ser verdade. As heroínas que usamos hoje foram criadas por esse ponto de vista. E as mulheres que mais nos divertiam nos quadrinhos não parecem divertir as mulheres da mesma forma. O que deve ser compreensível. Do ponto de vista da mulher, mulher não precisa ser essa caixinha de surpresas confrontadora que precisa ser domada ou conquistada para mostrar seu melhor lado. Do ponto de vista da mulher, mulher é mulher, oras.

Mas, estamos só começando nisso de criar personagens do mundo dos quadrinhos para mulheres. Não é só colocar peitos num herói genérico, é criar algo que elas consigam se identificar. E isso é bem mais complicado do que simplesmente colocar mulheres para escrever essas histórias: os homens que escrevem esse tipo de fantasia nos dias atuais não só foram criados acompanhando o refinamento dos roteiros de histórias em quadrinhos desenvolvidas para eles, como passaram por todo o processo de vivenciar cada herói de acordo com sua fase de vida. Por mais nerd que seja uma roteirista nos dias de hoje, ela simplesmente não passou pela mesma experiência. Pode ter lido histórias desde pequena, mas com as personagens boladas para homens. Se as coisas seguirem da forma esperada, em uma ou duas gerações já teremos mulheres totalmente preparadas para criar histórias e personagens dentro dessa nova lógica. Mas agora?

Agora, de uma certa forma, todas as mulheres ainda são crianças no mundo dos super-heróis. Eu deixei de achar uma personagem como a Capitã Marvel interessante lá pelos 12 anos de idade. Super-homem com ovários. Fantasia de poder ilimitado demonstra sinais de fadiga rapidamente. A personagem fica sem conflitos reais e não há senso de conquista verdadeiro nas suas vitórias. Para as meninas que estão descobrindo o universo Marvel agora, deve ser uma delícia ver essa personagem, afinal, nada como uma outra menina que pode tudo. Crianças são mais parecidas entre si mesmo considerando sexos diferentes, mas dali pra frente esse mundo da fantasia de poder feminina vai precisar evoluir bastante.

Para um moleque entrando na adolescência, basta colocar uma personagem com muita agressividade e dificuldades de controlar seus poderes para gerar identificação imediata, a quantidade de força que você adquire da infância para a adolescência chega a ser assustadora para um homem. Você passa de ser um merdinha para alguém que pode enfiar a porrada em muita gente, muito rápido, e está sempre meio puto sem saber o motivo. Meninas podem ter algo parecido, mas com certeza tem seus desafios próprios. Eu não gostaria de estar na pele de quem muda basicamente o formato todo do corpo num estalar de dedos. Seja como for, é muito provável que ainda não tenhamos heroínas realmente eficientes para mulheres nessa fase da vida.

E na vida adulta, sem chance. As heroínas da Marvel e da DC ainda são fantasias infantis: poder gigantesco e quase sempre tomam decisões boas. Tem uma cena no filme dos Vingadores onde várias das mulheres super-poderosas se juntam para fazer um ataque ao Thanos, e não tinha uma ali que tivesse feito alguma besteira ou burrice nas histórias dos outros filmes. Bastiões do bom-senso, só se dão mal quando algum homem faz algo de errado. Na fantasia da Marvel atual, mulher não erra e só sofre por ser vítima de outra pessoa (as vilãs que viraram casaca sim, mas só no passado vilanesco). Faltava uma fantasia de poder ilimitado, e Capitã Marvel veio assumir a cota. É, na melhor das hipóteses, condescendente.

Sim, eu sei que existem vários exemplos de personagens femininas interessantes e realistas em outras partes da ficção, mas estamos focados nesse universo de quadrinhos, baseado em fantasias de super-poderes. Ainda tem chão até essa realidade sair da infância, mas isso precisa acontecer antes que fique feio. Escrevi tudo isso para não arremessar na sua frente um argumento sem bases: neste exato momento, parece que a fantasia de poder da mulher é ser útil. Personagens bidimensionais com poderes ilimitados, incapacidade de cometer erros e moralmente inquestionáveis parecem o sonho de quem é um inútil na vida. A infantilidade dessa representação “lacradora” atual é evidente, e os “nerds virgens” reclamando não estão com raiva de mulher, estão é achando que toda vez que uma protagonista mulher entre numa história, a qualidade desaba. Capitã Marvel é a coisa mais sem graça dos Vingadores.

Todas as histórias lacradoras que a Marvel está soltando nos quadrinhos, cheios de mulheres, gays e muçulmanos estão vendendo mal. Não só porque não representam bem a maior parte dos consumidores, mas principalmente porque a fantasia de poder criada perdeu a graça para eles no começo da adolescência. Capitã Marvel não é um problema por ser “mais forte que os meninos”, e sim porque o roteiro dela é uma porcaria mesmo considerando uma história de super-heróis. E quando vemos roteiristas fazendo qualquer coisa diferente dessa fantasia infantilóide de poder ilimitado e impossibilidade de erro, como por exemplo a Daenerys do Game of Thrones para pegar o gancho do texto de ontem, os lacradores ficam putos da vida. Gostavam quando ela ganhava todas as batalhas e era a única voz da razão, mas foi só ser sugada para um mundo mais “real” onde as coisas dão errado que a coisa azedou e os roteiristas odeiam mulheres.

A Marvel vai ter que fazer uma escolha difícil nos próximos anos: lacre ou lucro. O público que gerou seus bilhões está consumindo o desenvolvimento das histórias em quadrinhos das últimas décadas, com histórias mais complexas do que as da era clássica e menos fantasias de poder ilimitado. Foi isso que gerou as personagens tão queridas dos Vingadores, não a criancice de criar deuses de roupas coloridas. Esses heróis erram, perdem e sofrem. O que basicamente não acontecia em histórias totalmente focadas para o público infantil como boa parte dos quadrinhos dos anos 50 a 70. Não foi o Super-Homem que ganhava todas as brigas e estava sempre certo que se tornou um sucesso anos depois. A coisa é bem mais complicada do que isso.

Mas, se continuarem olhando para a lacração com tanta vontade, vão cometer um erro que nada tem a ver com rejeição do homem branco por personagens que não se parecem com ele: vão cometer o erro de infantilizar demais as histórias para acomodar os interesses de quem quer ver sua “justiça social” em todos os lugares, não importa o quão interessante seja a história. E aí, pessoas como a Brie Larson vão continuar dando chilique dizendo que está sendo boicotada por gente preconceituosa, quando na verdade é o resultado de reduzir demais a idade média de quem se anima por esses filmes. Focar em criança dá muito dinheiro, mas não vai gerar os bilhões intermináveis com os quais os estúdios Marvel estão acostumados. Nem mesmo as mulheres vão ter paciência para ver mulheres ridiculamente perfeitas nas telas. Vai ser um sucesso no Twitter e na Netflix Kids, mas não vai ser mais o que se esperava em termos de bilheteria.

Mulher não é criança. Mulher não deve ser tratada como criança. Esse tipo de representação pode ser lucrativo por mais algum tempo, considerando que a maioria delas não teve contato com o mundo dos quadrinhos de super-heróis na infância e essa fantasia de poder ilimitado ainda é novidade, mas adultos enjoam disso rapidamente. A turma que faz barulho nas redes sociais tende a continuar pressionando por mais e mais mulheres sendo representadas dessa forma infantil, não porque querem isso como entretenimento, mas porque querem ser validados nessa visão limitada da realidade que domina a Lacrolândia. Visão maniqueísta, escapista e arrogante.

Oremos para os deuses do capitalismo para mostrar a verdade para a Marvel assim que a festa terminar e os primeiros fracassos de bilheteria surgirem. Mas, quem estou enganando? Vão achar que é o fim da moda dos super-heróis, e não que eles mataram o gênero reduzindo a idade mental de quem aprecia em algumas décadas…

Para dizer que eu tenho que fazer sexo, para dizer que não aguenta mais nerdice aqui, ou mesmo para dizer que eu me sinto ameaçado pelo poder de uma personagem imaginária (não sou religioso, ok?): somir@desfavor.com

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Comments (7)

  • Também pode ser conhecida como “Mary Sue”.

    Aconteceu com a Rey do Star Wars, Anastasia Steele do 50 Tons, Bella Swan do Crepúsculo, talvez até com a Katniss do Jogos Vorazes ou a Hermione do Harry Potter. Nunca tá errada ou comete falhas, e mesmo quando isso acontece, seus problemas se solucionam de forma mais mágica que o clichezão Deus Ex Machina…

    • “Tony Stark tira a onda
      Que é cientista espacial
      Mas também é Homem de Ferro
      Elétrico!
      Atômico!
      Genial!
      Dura armadura, Homem de Ferro…
      É lenha pura, Homem de Ferro… “

  • Olha, pra adolescente mulé, o superpoder com problemas no controle é despertar atenção e todo mundo parecer disposto a atender os seus desejos, mas cheio de segundas intenções. O superpoder da sedução / manipulação, com a contrapartida negativa do assédio. O ponto fraco é o romantismo sem critério, fazendo a heroína se apaixonar por babacas (no caso, vilões). Acho que seria um ponto de partida para uma heroína mais adolescente. Se você tiver bastante engov, sugiro que leia Crepúsculo e 50 tons de cinza para ver o lado açucarado e irrealista da adolescente média. O grande conflito é ter um amor especial, não ter o poder pra meter porrada nos adversários. Então ela pode meter um pouco de porrada, pra satisfazer a ideia de que podem tudo o que um homem pode, mas o fato é que não querem o que um homem quer.

  • Eu caguei se personagem tal é mulher ou qualquer uma das mil minorias que existem hoje e suas milhões de intersecções. E se o capitalismo se apropriou do “safe space” dos nerds antigos pra fazer entretenimento pra quem bullynava esses nerds, paciência. Vão arrumar outro refúgio, até o ciclo recomeçar.
    E nenhum personagem sobrevive se a única característica é ser minoria militante, nenhum espectador vai simpatizar com um zumbi que repete coisas militantes genéricas que a mídia, as empresas e o governo já passam o dia todo esfregando na nossa cara (e ainda se acham oprimidos apesar de terem tanto apoio…).
    Considerando o nível de saco cheismo geral, talvez os roteiristas, ao menos os espertos, deem uma freada no excesso de militância. Ou não, vai ver eles querem vencer pelo cansaço mesmo.

  • Quando alguém começar a falar que os comics SJW naufragaram por suposto preconceito dos leitores, vou mandar o link desse texto. Se bem que eu meio que duvido que entendam, ou que sequer aceitem a explicação

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