Limpador de bunda.

O que você é, um profissional ou um limpador de bunda?

Desculpa começar assim, no susto. Vou explicar melhor. Quando a pessoa foca em se aprimorar para ser o melhor naquilo que faz (e falo em sentido amplo, desde o vendedor de churros até o neurocirurgião) e é procurada pela excelência do trabalho que apresenta, é um profissional. Quando o reconhecimento e a procura pela pessoa se baseia nos malabarismos que ela faz para entregar o que é pedido ou atender demandas não razoáveis, mil desculpas, mas é um limpador de bunda.

Por motivos que eu desconheço, no Brasil, existe algum tipo de mérito em ser um limpador de bunda: aquela pessoa que se vira, que dá um jeito, que entrega algo solicitado em um prazo desumanamente pequeno (fatalmente comprometendo sua qualidade de vida e a excelência do seu trabalho), que se presta a tudo para não dar uma negativa. Esta pessoa é requisitada pelo excesso de disponibilidade, não pela excelência no seu trabalho. É muito cômodo contratar alguém assim, você não precisa, por exemplo, se organizar para solicitar o que quer, pode pedir tudo na última hora que a pessoa faz.

Qualquer pessoa pode ser limpador de bunda: um empregado, um autônomo, até mesmo o sócio de uma empresa. Não está vinculado a um cargo específico e sim a uma postura que indica baixíssima autoestima. A pessoa parece pensar que pelos seus méritos ela não tem um diferencial, então precisa caprichar na disponibilidade para manter seu emprego ou seus clientes. Vou contar um segredo para vocês: limpadores de bunda são usados, mas não são respeitados e seu futuro é medíocre.

Adotar a postura de limpador de bunda não apenas desvaloriza seu passe profissionalmente, como ainda é um convite para que as pessoas abusem de você, cada vez mais. Por mais sacrificada que seja uma pessoa, uma hora cansa ou se torna insustentável atender a todas as merdas que aparecem. E quando você não o faz, ainda que por ser humanamente impossível, todos ficarão putíssimos. Não abra esse precedente, não seja um limpador de bunda. Você não vai conseguir reconhecimento por isso.

Você nem mesmo vai garantir seu trabalho ou seus clientes com essa atitude, pois ser limpador de bunda, no Brasil, não é um diferencial. O que mais tem é limpador de bunda no mercado de trabalho. Muito pelo contrário, quem tá bem-sucedido, quem é verdadeiramente respeitado, é a pessoa que se valoriza e baseia seu trabalho em seus méritos técnicos.

O limpador de bunda, ganha, no máximo, um afago temporário ou um elogio interesseiro de quem teve sua vontade atendida, assim que surge uma nova “missão urgente” ele é novamente questionado se não atender. Não barganhe reconhecimento, você pode fazer muito melhor do que isso.

Não espanta que ser um limpador de bunda seja tão difundido no Brasil, a terra onde o aluno estudioso é desmerecido e ridicularizado, a terra do jeitinho, da malandragem e da malemolência. É muito mais fácil trilhar um caminho profissional sendo um limpador de bunda, pois a pessoa não tem que se aprimorar, se atualizar nem se arriscar, basta apagar incêndios e fazer para ontem o que se pede. Além disso, o que não falta nesta terra do atraso e dos contatos são bundas para limpar. Boa parte dos chefes brasileiros não sobrevivem sem um bom limpador de bundas.

Justamente por ser uma prática tão banalizada no Brasil, a postura de limpador de bundas, para muitos, é tida como algo normal ou até como a única postura possível. E esta é a função do texto: te dizer que você não precisa ser um limpador de bunda, que isso não dá certo a longo prazo e que você vai ser mais respeitado e vai ganhar mais dinheiro se adotar uma postura diferente.

Todo mundo é capaz de se firmar profissionalmente, seja como pipoqueiro, seja com engenheiro, sem precisar recorrer ao “atalho” (que na verdade é um beco sem saída) de ser um limpador de bunda. Talvez no local onde você está hoje não exista outra opção, e, nesse caso, eu recomendo que você comece a se mexer para procurar algo melhor, mas saiba que existe sim possibilidade de sucesso sem precisar se rebaixar a isso.

Se você está começando no mercado de trabalho, guarde este texto e releia de tempos em tempos. Não é do dia para a noite que se vira um limpador de bunda, é gradual, muitas vezes a gente vai fazendo concessões e nem percebe o que está acontecendo até que seja tarde demais. Saiba que não dá para contar com o bom senso ou consideração no mercado de trabalho e que, inevitavelmente, será indispensável colocar limites, dizer “não” e chatear ou desagradar chefes ou clientes. Não tenha medo, não vai ser prejudicial a você, muito pelo contrário. Você será mais valorizado e respeitado.

Se você já está no mercado de trabalho e já caiu na armadilha de ser limpador de bunda, vou ser sincera com você: é muito difícil sair disso sem consequências quando já virou um hábito. Acho improvável que você consiga sair sem perder seu emprego ou seus clientes. Por isso, sugiro que comece algo em paralelo e aos poucos vá fazendo a transição gradualmente, para que um dia você possa cortar esse cordão umbilical do demônio sem ficar na merda.

Falo por experiência própria. Como já passou um bom tempo, posso contar esta história em segurança. Trabalhei por anos em uma empresa muito famosa que certamente todos aqui conhecem ou já consumiram o produto. Minha chefe era uma pessoa louca, mas não “louca” no sentido ordinário da palavra. Uma pessoa que já havia passado por inúmeras internações em clínicas psiquiátricas, que já precisou ficar dopada e contida com uma camisa de força. Louca de hospício mesmo, porém muito amiga do dono da empresa.

Com o tempo e sem me dar conta, fui cedendo até me tornar a limpadora de bunda oficial desta louca, que ocupava o cargo mais alto na empresa depois do dono. Sim, ela gerava produtividade, às custas de medo e antidepressivo para quem trabalhava com ela.

Trabalhei bem com ela por quase um ano, até perceber que tinha cedido demais e que tinha me tornado sua limpadora de bunda oficial. Acontece, aconteceu comigo, acontece com muita gente. O problema não é acontecer, o problema é acontecer e você acreditar que está preso nessa armadilha pro resto da vida só porque ela aconteceu.

Quando me dei conta da merda na qual me coloquei, comecei a preparar minha rota de fuga. Somir me ajudou muitíssimo e começamos a trabalhar juntos, em paralelo.

No primeiro ano, meu trabalho para o Somir foi totalmente gratuito, estávamos construindo uma base, uma estrutura de algo que até então quase ninguém fazia. Precisávamos de aprendizado na tentativa e erro para só depois poder cobrar por nosso trabalho. Enquanto isso, continuei limpando a bunda da desequilibrada na base de muito sacrifício, pois depois que você vê o absurdo da situação, não consegue desver. O que me ajudou foi saber que eu tinha um Plano B, uma luz no fim do túnel.

O tempo foi passando, meu trabalho com o Somir foi ficando alinhado. Já éramos capazes de entrar no mercado de igual para igual com os melhores, talvez porque o que escolhemos fazer foi muito novo e havia poucos “melhores” disponíveis à época. Era hora de cortar o cordão umbilical com Miss Manicômio.

A empresa tinha uma reunião mensal importante onde era preciso apresentar um relatório de mais de cem páginas e, adivinha quem fazia? Eu. Apesar da maioria das informações que eu precisava para esse relatório estarem disponíveis já no dia 15, ela nunca me passava nada, por mais que eu pedisse, lembrasse, formalizasse por e-mail com cópia para os sócios.

Apenas no último dia do mês, na véspera, 17h ela me dava os dados para que eu monte um relatório com mais de cem páginas. E, esclareço: não era para me sacanear. É uma pessoa extremamente desorganizada com tudo, inclusive com sua própria vida. Gostava muito de mim na época, mas só sabia funcionar tendo a bunda limpada. Uma pessoa que não se trata bem, não tem qualquer condição de tratar bem os outros.

Importante dizer que não fiz nada para sacaneá-la e não lhe desejo mal, só desejo que sua saúde mental melhore, pois ainda tenho boas amigas trabalhando para ela. Porém, eu não estava mais disposta a ser uma limpadora de bunda, então, quando recebi os dados na véspera da reunião, às 17h, depois de sinalizar infinitas vezes que não havia condição de fazer algo em um espaço de tempo tão curto, fui para casa e dormi, pela primeira vez em cinco anos, oito horas de sono.

No dia seguinte comuniquei que não foi possível preparar o relatório, pois, conforme exaustivamente informado, o prazo era impossível. Obviamente, a pessoa que já era louca, ficou num nível que parecia discurso da Dilma Roussef, só faltou saudar a mandioca. A primeira consequência foi me “rebaixar”, me colocando para fazer um trabalho que eu detestava, meramente braçal, sem qualquer necessidade de intelecto. Como eu continuei não limpando mais a bunda da pessoa, mesmo nesta função mais simples, acabei demitida. Confesso que foi antes do que eu esperava, mas de longe foi uma das melhores coisas que já me aconteceram na vida.

Apesar de todo o sofrimento que este processo trouxe, veio também um aprendizado valioso: você não precisa ser limpador de bunda de ninguém e, se por um acaso você acabou caindo nessa armadilha, pode se mexer para sair dela.

Hoje, mesmo sendo minha própria chefe, me mantenho vigilante para aceitar apenas em casos muito excepcionais fazer concessões que roubem meu tempo de lazer, de sono ou que de alguma forma me desrespeitem ou me violentem. Acreditar que isso é necessário para sobreviver profissionalmente é uma puta crença limitante e me sinto na obrigação de vir aqui atestar que não é necessário porra nenhuma. Se o cliente que algo no prazo X, me entrega material no prazo Y, se não, não será feito e ponto final. Procure outra empresa que limpe sua bunda, pois a minha não vai.

Pode parecer arrogante, mas não é. É ter autoestima e saber o valor do seu trabalho. Não me obriguem a repetir a caralha da frase de que sua mente cria realidade e que você recebe o que você emana. Não é sobre o pensar ou o falar, é sobre o sentir. Como você se sente a seu próprio respeito (e isso não é racional) é o que determina o que vai aparecer na sua realidade.

Por isso, faça algum trabalho para fortalecer sua autoestima se julgar isso necessário, para sair do medo, do medo da falta, para estar mais inteiro e alinhado, de modo a não se colocar mais em um cenário de limpador de bunda. Não basta saber racionalmente que não deve e não quer limpar bundas, você tem que sentir isso de tal forma que passa a SER isso.

Sair da condição de limpa-bunda dá trabalho e requer coragem e estratégia. A boa notícia é que todo mundo é capaz e os resultados positivos são melhores do que a gente imagina. Inclusive me coloco à disposição de quem precisar de ajuda para sair dessa situação horrível nos comentários deste texto, já estive lá, sei bem o inferno que é.

Caso você esteja nesse barco (furado) agora, escute com bastante atenção: seu pior inimig é você mesmo. Metade das pessoas se ferra por pensar que não dá para sair (você pensa que não dá porque sua autoestima está no lixo, por passar seus dias limpando bunda, mas dá) e a outra metade se ferra pois chega no seu limite, protagoniza o áudio do “Seu Armando” e manda todo mundo tomar no cu (seja inteligente, prepare um Plano B e nunca saia de lugar nenhum mandando tomar no cu, saber sair bem é muito importante).

Não importa em qual dos extremos você está, eu te entendo, eu já transitei por ambos. Respire fundo e lembre que você tem uma coisa que a pessoa de bunda suja que te explora não tem: inteligência. Se a pessoa fosse inteligente não precisaria de alguém para limpar a bunda dela. Use sua inteligência e saia sem comprometer sua renda, sua qualidade de vida e sem fazer inimigos. Dá. Acredita em mim: dá.

Em última instância, este texto tem uma função global: se todos os limpadores de bunda acordarem, quem está em qualquer cargo de liderança e não consegue dar conta da responsabilidade que lhe compete fatalmente vai cair. Só temos tantos despreparados no mercado por sempre ter uma meia dúzia de limpa-bunda segurando tudo. Pessoas vão cair, empresas vão falir… seria uma faxina bem bacana na sociedade. Faça sua parte e nunca (ou nunca mais) seja um limpador de bunda. Por você e pelo todo.

Para dizer que era limpador de bunda e não percebia, para dizer que seus funcionários limpam sua bunda e você não percebia ou ainda para pedir que eu jogue na roda as redes sociais da maluca: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • Esse blog ja foi bom quando tratava majoritariamente das idiocrassias do Brasil (personalidade, culturas e politica). Mt assunto esquizofrênico, feminino e terapia de casal ultimamente.

  • Sally, eu acho que você tem toda razão. A gente é tratado como se deixa tratar. Esse conceito vale para tudo, desde a relação entre amigos, namorado, família até para questões profissionais. Os abusos acontecem de forma lentinha, meio que na camaradagem, “me quebra um galho aqui”, “me faz um favor, acolá” e quando você se dá conta, estará sofrendo assédio moral. Cortem o mal pela raiz, antes de chegarem ao ponto de mandar o infeliz ir tomar no cu. Respeitem-se! Valorizem-se!
    Uma coisa que eu levo muito em consideração é como os franceses se comportam. Meu primo me contou que um açougueiro pediu demissão porque o chefe dele o mandou ir cortar carne sem pedir por favor. Claro que a realidade brasileira é outra, mas sejamos mais como os franceses, respeitemo-nos!

    Por favor, Sally, continue escrevendo sobre a importância do autorrespeito, do amor próprio, da importância de ser correto e saber se impor, seus textos mudaram a minha vida, só contribuíram para eleva a minha auto-estima.
    Estou sofrendo assédio moral por parte de um colega de classe, quando falo a respeito (os limpadores de bunda) me dizem para não levar a adiante a minha reclamação, porque ele pode me prejudicar no futuro. Ao contrário, eu penso que se eu não levar adiante a denúncia estarei sendo conivente com o comportamento psicopata do adultinho chiliquento.
    Só continue escrevendo
    Bjs

  • Todo mundo que eu conheço que um dia caiu em si e se descobriu um limpador de bunda no trabalho saiu mandando tomar no cu…

  • Excelente texto! A maioria desses bunda suja que atolam seus funcionários com hora extra desnecessária acabam nem pagando o que devem a esses trabalhadores, que muitas vezes se sujeitam a essa condição com medo de serem demitidos. É preciso acabar com a romantização do trabalho em excesso, da farsa de sentir importante por não ter tempo, da mentira de tampar o buraco da solidão com mais trabalho desnecessário. A maioria desses filhos da puta que pagam pra ter a bunda limpada são pessoas que se atolam de trabalho pra fugir de um casamento ruim (ou alguma outra outra situação) e não querem se afundar sozinhos e fazem questão de arrastar o resto do mundo. Ninguém precisa participar disso, ninguém precisa trabalhar em excesso. Seu trabalho não é mais urgente do que você!

    • Pois é. As pessoas (tanto chefes como clientes) tem que se organizar e passar adiante as tarefas de forma organizada e decente. O fato de pagar (mesmo que caro) não desobriga a ser gente.

  • Como todos andam muito imediatistas e decidem tudo de ultima hora, inevitavelmente vão se criar muitos limpa bundas. Abrir o olho pra isso é extremamente importante, tem gente que percebe por bem e tem gente que percebe por mal (estressado com os prazos desumanos, doente, sem vida).

    Eu já fui muito limpa bundas, principalmente com projetos. Talvez ainda seja um pouco, mas vamos trabalhando com firmeza pra melhorar.

    As pessoas tem que começar a se organizar melhor, ter mais disciplina com horários. Eu odeio procrastinar e isso me faz muito feliz, pq oq que faço posso fazer sem ajuda de terceiros (limpa bundas) e é entregue sem correria. Se todo mundo soubesse que não dói se programar e fazer as coisas antecipadamente o mundo ia ser OUTRO.

    • Sim. Eu não tenho dúvidas que quem mais sofre (mesmo que não perceba) é quem tem a bunda limpada. Não tem como não perceber, mesmo que em um nível inconsciente, que é vergonhoso um adultinho precisar disso.

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