Crime ficcional.

Desde o começo deste ano, a ONU estendeu os protocolos do seu Comitê sobre os Direitos da Criança para incluir qualquer tipo de obra ficcional que sexualize menores de idade. Apesar de ser um texto generalista, tinha um alvo bem claro: a indústria de quadrinhos e desenhos japoneses, que continuava vendendo revistas, vídeos e jogos com crianças (desenhadas, não reais) em histórias claramente pornográficas.

Pelas últimas notícias sobre o tema, a ONU teve um relativo sucesso: embora ainda exista a produção e a venda desse material por lá, muitos distribuidores, especialmente os internacionais, já estão deixando de estocar e vender esses produtos. Muitos sites já baniram completamente o material, e ele é considerado pornografia infantil da mesma forma que fotos e vídeos de crianças reais em diversos países do mundo, inclusive no Brasil. Para a média da ONU, que quase sempre é ignorada, foi uma vitória retumbante.

A gente aqui de fora pode olhar isso de duas formas distintas: na primeira, é bacana que o cerco aos pedófilos esteja cada vez mais apertado, porque quem consome esse material claramente tem problemas nesse campo. Na segunda, você dá um passo dentro de um campo mais desconfortável: independentemente do conteúdo, será que existe crime sem ter vítimas? Estamos falando de uma página de revista onde alguém desenhou uma criança fazendo sexo. Com certeza não é uma ideia agradável, mas… é um desenho. Uma personagem ficcional.

A primeira forma é como a ONU e seus funcionários enxergam a situação: a existência desse material gera incentivos para a exploração sexual de crianças reais. Para eles, há a correlação direta entre consumir essa forma de pornografia e ações diretas contra crianças. E com bastante lógica até, acreditam que atacar a produção desse material é muito mais eficiente do que ir atrás dos consumidores. Corta pela base. Como a função desse comitê é literalmente proteger os direitos humanos de crianças, é compreensível que tentem derrubar uma indústria que acreditam dificultar seu trabalho.

Mas é aí que precisamos tomar uma decisão difícil: estamos dispostos a criar exceções às regras que regem o resto da sociedade para enfrentar um problema específico? Porque a segunda forma de pensar no tema, a de que não existe crime sem vítimas, é a que define basicamente todo o sistema de legalidade vigente no mundo. Você pode desenhar duas pessoas ficcionais se matando numa página de revista em quadrinhos sem ser equiparado a um assassino. Você pode escrever um livro detalhando um estupro sem correr o risco de ser preso pelo crime de estupro. Você pode cometer praticamente qualquer barbaridade na ficção e não ser acusado do crime real.

Mas quando falamos de crianças ficcionais fazendo sexo, a regra muda. Só nesse caso. É muito fácil ignorar esse tipo de arbitrariedade porque a “vítima” dessa proibição não gera nenhuma simpatia no cidadão médio. Pouca gente vai se expor para defender os direitos de quem lê histórias em quadrinhos pornográficas com crianças! Novamente, compreensível. É tão fácil dar de ombros para os problemas de quem não nos identificamos. Mas é assim que as maiores imbecilidades da humanidade começam. Primeiro eles atacam um grupo que não fazemos parte e não nos importamos, depois atacam outro que não fazemos parte e não nos importamos também… mas eventualmente, eles chegam até nós, e aí é tarde demais.

Embora seja inegável que a humanidade passou por uma fase extremamente confusa sobre sexualidade infantil no último século e que virtualmente todas as ações contra a exploração delas nesse campo tenham sido válidas, decisões como essa recente da ONU já estão se espalhando por um campo mais ideológico. Há pouco menos de um século, era comum que uma menina se casasse aos 11 anos de idade e já tivesse filhos aos 13. Elas eram tratadas como adultas a partir do casamento. Quando as condições do mundo melhoraram e liberamos as crianças para serem crianças por mais tempo, muita gente continuou presa nessa mentalidade antiga. Foi isso que corrigimos nessas últimas décadas: antes dos 18 ninguém pode ser tratado como adulto. Foram atitudes baseadas nos direitos das crianças, por uma decisão coletiva de que o mais justo e valioso para a humanidade era dar tempo para as pessoas crescerem sem toda a pressão da vida adulta. Era sobre as vítimas.

Só que o jogo começa a mudar no começo deste século. A cultura global entra numa fase diferente, com um foco maior em antagonizar quem considera explorador do que propriamente defender quem está sendo explorado. A indústria da lacração é a prova cabal disso: o interesse é no ataque e não na defesa. Não é sobre defender “as mina”, é sobre punir “os cara”. Lacra quem ataca e causa problemas para o dito opressor. E é esse ranço de mentalidade distorcida que eu enxergo nessa caça aos quadrinhos e desenhos pornográficos japoneses.

Porque na prática, são obras ficcionais como qualquer outra: não causam dano a nenhuma pessoa real. Mas causam prazer a uma classe de pessoas que são consideradas ruins pela sociedade. Foi-se o tempo de não interferir com a vida de quem não interfere na sua: desenhos de crianças só são equiparados a crianças reais porque isso é uma forma de atacar quem você não gosta. Explicita essa mudança de paradigma sobre se importar mais com quem você considera explorador do que propriamente com a vítima. Desenhos não são pessoas, desenhos não podem ter direitos humanos. Mas isso não importa, porque qualquer argumento furado passa quando você odeia a pessoa acusada.

E a gente cai nessa armadilha. Não porque somos mal-intencionados como os lacradores, mas porque não temos empatia com os consumidores desse material. É fácil comprar a ideia de que permitir o consumo desses desenhos leva ao abuso de crianças reais, porque parece lógico o suficiente quando você quer que pedófilo se exploda mesmo. Eles que se explodam, mas… eles que se explodam quando vão gerar precedentes que podem chegar a nós eventualmente? Será que vamos ter o controle como sociedade para quebrar essa regra básica de não ter crimes sem vítimas só nesse caso?

Eu argumento que não. E que a mesma gente que bateu nessa classe antipática já está batendo no resto da humanidade. Pessoas perdem empregos por piadas na rede social. O cidadão médio já tem que tomar um cuidado muito maior com as expressões que usa e evitar hipérboles, ironias e outras figuras de linguagem porque elas estão sendo julgadas como declarações reais de intenção. Crimes sem vítima são parte da nossa cultura atual.

Quem consome quadrinhos de crianças em situações sexuais não está abusando de uma criança quando faz isso. Talvez esteja mais propenso, mas não pode ser tratado como tal se não o fizer na prática. A resolução da ONU não prende ninguém, mas os países que a seguem podem. A justiça brasileira te trata como um pedófilo perigoso se vir um desses desenhos na sua casa. Eles que se explodam, certo? Ok. Só que o precedente já está aí. Você não precisa causar dano a outro ser humano para ser tratado como um criminoso. O Estado pode presumir que você vai fazer algo errado e te punir antecipadamente. Mas… eles que se explodam! E quando chegar na gente? O pessoal do STF vem bater na porta da sua casa se você der a entender que quer o mal para eles na rede social, não vem?

E se alguém desenhar uma história onde um soldado invade um tribunal de um país inventado e mata todos os juízes? Será que não dá para usar a mesma lógica dos quadrinhos pornográficos? Quem produz e consome é porque quer fazer na vida real, não? E se alguém escrever na rede social que gostaria que os travestis morressem? Ou desenhar uma charge com o Lula morrendo? Ou dizer na rua que o Bolsonaro não deveria ter sobrevivido à facada? Como lidamos com isso num mundo onde um desenho de uma criança é efetivamente uma criança? Nesse mundo ficção se iguala à intenção e pensamento pode ser crime.

Jamais acredite que um absurdo cometido contra alguém que você não gosta nunca pode chegar até você. Estamos caminhando a passos largos para uma sociedade de censura, e esses desenhos japoneses são o canário moribundo na mina. Se vamos combater isso vai depender muito de quanto estamos dispostos a lutar pelos direitos das pessoas reais antes que seja tarde demais, mesmo que no fundo queiramos que elas se explodam…

Para me chamar de defensor de pedófilo, para dizer que nunca vai acontecer com você, ou mesmo para dizer que todo mundo se exploda: somir@desfavor.com

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Comments (22)

  • Rafael Gustavo Reinert

    não adianta querer mudar a opinião dos anti-lolicon, o negocio é fazer meme, eu conflito com eles no twitter, mesmo com argumentos bons eles continuam, parecem robôs, querer proibir algo fictício pela imoralidade representada abre precedentes para maiores censuras

  • Correção: no Brasil nao consideramos lolicon como crime, os juristas ja explicaram isso, a parte da lei anti CP que fala Sobre simulação se refere a usar um Menor real para fazer a simulação, pois o objeto do ECA é o menor real

  • *Olha a imagem da capa*

    Sauce??

    *entendedores entenderam*

    Pensando um pouco, esse argumento de não-empatia a pedófilos é meio furado. Se fosse assim, teriam proibido também os assassinatos e estrupos ficcionais, porque né? Quem se importa com assassinos e estrupadores?

  • Teremos a “polícia do pensamento” conforme Orwell, mas vamos lacrar muuuuuito até piorar, ops, aprimorar!
    Queridos Homos Sapiens, RIP.

  • Acho que se o crime for a apologia à pedofilia, a vítima é a sociedade. É um terreno pantanoso, passa muito pela moral e pela política. Eu entendo que se deva desencorajar a divulgação desse tipo de material, devendo ser algo tipo campanha contra o fumo: “Se você faz uso desse tipo de material, provavelmente sofre de um transtorno mental e necessita de atendimento por profissional especializado. Procure ajuda!” O site deveria ter um termo específico de autorização para comprovação de maioridade (cartão de crédito) e que a identificação do consumidor seria encaminhada à polícia. Nada de exibição pública das imagens, esse tipo de pornografia deveria ter nome específico (pedomangá, pedohentai). Bater punheta não é crime, molestar crianças é. Quer usar este produto legalmente? Será monitorado. Se usar ilegalmente, será preso. Eu criminalizaria a posse e o comércio ilegal. Legalizaria o comércio discreto e o monitoramento dos usuários.

    • O abuso sexual contra menores ocorre independentemente dessa indústria. Talvez o Japão seja um dos lugares onde a questão sexual seja mais reprimida, principalmente por fatores de natureza socioeconômica.
      A minha opinião quanto a hentai, bem… Que essa censura é tiro n’água e só vai servir pra mais marginalização, dado que quem faz esse tipo de trabalho de mangás no geral é gente na base da pirâmide social.
      Isso pode inclusive ajudar a piorar os indices de abuso sexual, incluindo aqueles cometidos contra crianças e adolescentes.

  • Innen Wahrheit

    Oi Somir,

    O que me pareceu é que de fato não há crime no ato de consumir esse tipo de material, mas ao mesmo tempo a produção dele poderia ser interpretada como apologia. Isso faz sentido?

    • Se fosse só o caso de lutar contra o material seguindo as leis de mercado, com boicotes e represálias para produtores e consumidores, eu provavelmente nem teria entrado nesse tema. A questão é que essa mentalidade começa a se tornar legislação de crime de pensamento, e o caminho mais simples para fazer isso é começar por uma classe detestada da sociedade.

      A lei brasileira já permite que um juiz possa condenar uma pessoa por pornografia infantil baseado num desses desenhos. Basta ele querer interpretar o “outros meios” da letra da lei como tal.

      Se tudo isso acabasse nos desenhos de crianças fazendo sexo, dava para fazer vista grossa. Mas não está acabando… está vazando para outros aspectos da nossa sociedade. Ser contra a apologia ao sexo com crianças é positivo, mas e quando for contra a apologia à existência de apenas dois gêneros? As leis estão mudando…

  • Tem algo muito errado acontecendo, em sentido amplo, quando uma sociedade começa a ter problemas pra discernir entre realidade e ficção e pautar seu senso de justiça apenas pela intenção. Tá feia mesma a coisa, não sei dizer que possível solução teria pra isso.

    • Uma das ideias básicas da existência do Estado é não se meter onde não é necessário. Isso não é nem questão de liberalismo e querer Estado mínimo, é algo que vale até mesmo para os sistemas de governo mais controladores: cada vez que o Estado decide que tem que regular algo, tem que mover recursos para isso e agir de acordo com as outras regras que coloca em seus cidadãos. Quando perdemos a noção do real e do virtual, o Estado começa a entrar onde não faz o menor sentido estar…

      • Isso me faz lembrar também da discussão que existe no lado oposto da coisa. Explico: muito se fala, na academia, sobre os benefícios da ficção, da leitura, do poder que ela tem de criar universos ficcionais e mesmo do poder que ela tem em nosso cérebro enquanto aparato cognitivo e mesmo o poder que ela tem de nos fazer imaginar, viajar, etc, e o quanto isso é necessário para o bem estar da mente humana e da saúde psíquica.

        Mais ainda, há pesquisas e pesquisas por aí sobre isso na teoria literária e na estética da recepção, só que querer prever ou controlar os possíveis sentidos e consequências da leitura, daí também já é demais. Não há como prever se o sujeito vai se matar depois de ter lido Goethe, ou se vai matar a velha depois de ter lido Crime e castigo.

        Mas eu trago isso justamente pra pensar: poxa, se se fala tanto dos benefícios, como lidar quando as pessoas passam a confundir realidade com ficção e querem pautar limites de ética e moral confundindo os dois?

    • Talvez até valha um texto depois: quem está puto com isso está caindo numa armadilha parecida. As mulheres e gays que eu conheço não são extremistas nesse “nível Twitter”. Ninguém nasce lacrador… e entender isso é a chave para não ser engolido por essa guerra cultural.

      • Geralmente não é muito preciso usar o próprio círculo social como termômetro. No caso Twitter que você citou, qualquer post genérico “homem branco ruim” costuma chegar a 20, 80, 100 mil likes e retweets, no meio pode estar até um desses seus conhecidos, disfarçados. Essa é a próxima geração a chegar na idade de votar e tomar decisões grandes na sociedade.

      • Quando se imagina o “Fim do Mundo”, sempre se pensa em algo grande, dramático, violento e espetaculoso: uma guerra que desemboque numa hecatombe nucelar, uma doença desconhecida incurável que se espalha rápido, um excesso de poluição que torne a vida no planeta insustentável, um grande desastre natural, um meteoro gigantesco atingindo a Terra em cheio, uma invasão alienígena… Mas talvez o mundo acabe mesmo é por causa de alguma coisa bem prosaica e da forma mais desglamourizada, silenciosa e indigna possível…

  • Opa! O tema que sugeri!
    A verdade é que se não proibir álcool, fumo e putaria, o humano médio não tá nem aí. Nem vale mais a pena se preocupar com isso, é mais uma coisa que não temos poder pra mudar. Quando o humano médio perceber, se perceber, talvez seja tarde demais, já estará numa cela por ter chamado x filhx pelo pronome errado e elx foi mandadx pra uma instituição administrada por drags, com refeições de leite de soja e maggot sausage.
    Recentemente um moleque de uma escola britânica foi suspenso por 3 semanas por falar em sala de aula que só existem 2 gêneros. Essa Inquisição lacreana chegou até naquele velho do interior do cu do mundo que postava vídeo brincando com amoeba. No caso das lolis asiáticas, vai ser o de sempre: se as estatísticas de abuso infantil estagnarem ou aumentarem vão jogar a culpa no homem branco e pronto.

    • se as estatísticas de abuso infantil estagnarem ou aumentarem vão jogar a culpa no homem branco e pronto.

      E tem essa: não existiam dados confiáveis sobre a correlação antes, e não vão existir depois. Porque não é sobre o resultado. Ninguém vai fazer a pesquisa depois para saber o quanto essas atitudes ajudaram. Proíbe o desenho porque “parece certo” e missão cumprida. Crime de pensamento e pronto.

      • Essa história toda de “crime de pensamento” me faz pensar que, se as coisas continuarem do jeito que estão, talvez a nossa sociedade possa, num futuro assim nem tão distante, se tornar um mix das imaginadas em três clássicos da ficção científica: “Minority Report” (com gente sendo presa “preventivamente” pelos crimes que ainda só pensava em cometer por causa de”denúncias” feitas por videntes), 1984 (a existência de um “Grande Irmão” que tudo vê, tudo sabe, que em tudo se imiscui e tudo tolhe e/ou proíbe) e O Processo (uma pessoa tendo que responder a um tortuoso processo judicial sem saber sequer do que está sendo acusado).

      • Xiiiii… Que burrada! E eu demorei um pouco pra perceber meu equívoco. Na lista de livros que mencionei no meu comentário anterior, “O Processo” também ficou classificado como ficção científica! Os outros dois – “Minority Report” e “1984” são mesmo ficção científica, mas “O Processo”, não é. Foi mal…

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